Por Ghassan Kadi.
O que começou como a “Guerra da Síria” dá sinais de que poderá evoluir para uma ferida incurável, alimentada e apoiada por oitenta e três nações lideradas pela Turquia, Arábia Saudita, Qatar, Israel e OTAN, somando-se as nações pró OTAN, agora está sem dúvidas chegando ao clímax.
Genebra III está morta, como já tinham nascido mortas Genebra I e II. Desta vez, no entanto, a Síria e seus aliados estão com as cartas na mão e na realidade jogando um joguinho de gato e rato contra seus inimigos, e por que não? Afinal de contas, agora a bola está com eles e não foi fácil chegar a esta situação. É o resultado de muito sangue e sacrifício.
Dito isto, para qualquer lado que se olhe para aquilo que se convencionou chamar “Guerra da Síria”, mesmo para aqueles que acreditam sinceramente que se trata de uma revolução e escolha chamar os acontecimentos de “Revolução Síria” ou seja lá que nome se lhe dê, os eventos recentes indicam que está se chegando a um clímax, de uma forma ou outra.
O tempo dos impasses já acabou há tempos. Quando muito, os impasses foram o resultado de uma série de condições d estagnação no campo de batalha, que não permitia que qualquer dos lados emergisse como vencedor em determinadas áreas específicas, mas como o exército sírio está agora fazendo avanços de varredura em vários territórios de diferentes fronts sob a proteção aérea da Rússia, os impasses não durarão muito.
Não importa a maneira pela qual se olhe a situação atual na Síria, favorável, desfavorável ou indiferentemente, qualquer um pode ver que há sérias mudanças em curso. Tais mudanças podem eventualmente culminar em novos desenvolvimentos e o clímax para se chegar a um resultado final pode não estar longe.
Algumas das principais figuras envolvidas nas maquinações iniciais da “Guerra da Síria” já tiveram que encarar o seu próprio clímax e deram com os burros n’água. Talvez o príncipe saudita Bandar bin Sultan seja a vítima mais exemplar. Poucos conspiradores na história tropeçaram na própria espada de uma forma mais humilhante do que ele, que foi subitamente rebaixado de príncipe coroado para um virtual zero à esquerda.
Os resultados alcançados até agora pela colaboração entre avanços do exército sírio e cobertura aérea da Rússia no terreno está pouco a pouco apertando o nó no pescoço de Erdogan, deixando-o com algumas poucas opções desagradáveis. Os sauditas não estão em situação muito melhor, mas a Arábia Saudita não tem fronteiras comuns com a Síria, e a Arábia Saudita não tem curdos em seu território.
Agora que Erdogan mostrou aos curdos a dimensão de seu ódio contra eles na Síria, Iraque e no interior da própria Turquia, não pode mais fazer voltar o relógio para restaurar a situação anterior à sua “Guerra contra a Síria” para um status meramente diplomático em relação aos curdos.
Erdogan deve estar agora embaralhando suas cartas, pensando em várias opções e pesando seus riscos. Sem encontrar algum tipo de acordo com a Rússia, ele não pode livrar a cara. Mas a janela de negociações diplomáticas com a Rússia foi lacrada firmemente e os russos não se sentarão em uma mesa de negociações com ele, não depois da derrubada do SU-24 e depois que seus mercenários mataram o piloto russo ainda em seu paraquedas. Pensando realisticamente ele entende que não pode surgir de repente com uma vitória, por menor que seja, a não ser por meio de ações militares. Mas como suas maquinações no jogo militar na Síria começaram a ruir mesmo antes da intervenção da Rússia, que esperança de ganhos militares pode ter ele agora que a Rússia se encontra firmemente assentada no solo e nos céus da Síria?
Ocorre que se ele aceita o desenvolvimento dos acontecimentos atuais e permite que a Síria vença, estará enfrentando, entre outras coisas, gravíssimas repercussões internas na Turquia. De fato, tais repercussões já tiveram início, e uma rápida olhada em Diyarbakir e cercanias diz tudo.
A única opção que restaria a Erdogan seria um conflito militar com a Rússia, mas para fazer isso ele necessita de ajuda.
Os sauditas afirmaram estar dispostos a enviar tropas para a Síria para lutar “ao lado dos Estados Unidos contra o Daesh”, entre aspas. Todos nós sabemos o que isso significa na realidade. É sua maneira de dizer que pretendem usar a Turquia como rota e trabalhar ao lado das tropas turcas para atacar a Síria. No entanto, ironicamente, a Arábia Saudita, que tem um orçamento militar tão grande quanto o da Rússia, não foi capaz sequer de obter uma vitória militar no Iêmen, e provavelmente nunca será. O recente anúncio de enviar tropas para lutar na Síria, na prática soa como piada. Posto isto, Erdogan não precisa do exército saudita. O exército turco tem músculos poderosos por si mesmo, mas não o suficiente para encarar a Rússia. Nem um pouco. De qualquer forma, qualquer envolvimento do exército saudita seria apenas simbólico. Além do mais, os sauditas podem até querer brigar com a Síria mas não querem encrencas com a Rússia.
A Turquia nunca terá capacidade para lutar uma guerra contra a Rússia sem auxílio externo, mas todos os indícios são de que se engajará em uma luta contra o Grande Urso, esperando ajuda da OTAN. O aliado na mira de Erdogan não é a Arábia Saudita e sim a OTAN e não há novidade nisso. Erdogan está tentando jogar com a carta OTAN desde antes da derrubada do SU-24 em novembro de 2015.
A Turquia sempre quis ser membro da OTAN e a razão sempre foi a Rússia. As querelas entre as duas nações vêm de séculos e a disputa versa não só sobre território, mas engloba também a religião. Realmente. Os otomanos invadiram regiões inteiras de fé ortodoxa, dizimaram o Império Bizantino e apenas a Rússia foi capaz de evitar sua mão pesada. No entanto o destino quis que o Império Otomano desmoronasse e a Rússia se tornasse uma grande superpotência na altura em que a OTAN foi fundada, em 1949. Na ocasião, não havia motivos para que a Turquia pretendesse se juntar à OTAN a não ser o medo da Rússia.
Por quase cinco anos, os inimigos da Síria tentaram a sorte insistindo no engajamento dos Estados Unidos e da OTAN na luta contra o exército sírio, em vão. O massacre por ataque químico ao leste de Ghouta, que foi lançado às costas do exército sírio foi uma tentativa desesperada de levar a UNSC a uma resolução semelhante a que acontecera dois anos antes em relação à Líbia. Desta vez, a Rússia vetou a decisão.
Acontece que Erdogan nunca desistiu de seus intentos de arrastar a OTAN para um conflito que a OTAN não precisa, bem como forçar uma resolução do UNSC. Ocorre que seus apelos parecem ter caído em ouvidos moucos. O encontro extraordinário da OTAN que Erdogan requereu imediatamente após o incidente deixou claro que a Turquia e a Rússia têm que trabalhar em conjunto para resolver seus problemas. A mensagem da OTAN para a Turquia foi clara: deixe a OTAN fora disso.
Mas a Turquia não cessa suas tentativas de começar uma Guerra contra a Rússia. Dias depois, uma cidade síria desocupada foi bombardeada porque a Turquia aparentemente a estava usando para providenciar cobertura para os jihadistas em retirada. Na verdade, as notícias de hoje estão informando que a Rússia está alerta quanto às preparações turcas para enviar tropas para o interior da Síria. Enquanto a Rússia avisa, Erdogan continua mexendo seus pauzinhos.
Com ou sem o apoio da OTAN, é preciso ser muito doido para querer uma Guerra contra a Rússia. Mas Erdogan parece querer exatamente isso. E todas as suas ações desde a derrubada do SU-24 apontam nessa direção. Ele está se comportando como um cachorro louco encurralado em um canto. Uma guerra desse porte tem o potencial de desenvolver-se como uma guerra global e disparará imediatamente uma miríade de conflitos regionais. Milhões de vidas podem ser perdidas e nenhum ser humano em sã consciência pode querer tragédia dessa magnitude. Mas como deter a caminhada desse cachorro louco e colocá-lo preso numa coleira, com focinheiras e tudo?
Erdogan está apostando alto em um jogo perigosíssimo neste momento, não apenas cutucando com vara curta uma superpotência, mas também pela esperança de que no último instante a OTAN venha em seu auxílio para dar um fim ao jogo.
Caso ocorra um conflito regionalizado entre a Turquia e a Rússia, a OTAN certamente terá algo a dizer, mas a verdadeira questão é esta: caso a guerra alcance um estágio de envolvimento total entre Rússia e Turquia, a OTAN entrará decisivamente no teatro de guerra para livrar a pele de Erdogan? Ninguém pode afirmar nada, mas as apostas são de que tal cenário é improvável.
Críticos e cínicos podem dizer que a OTAN e em particular os Estados Unidos, jamais deixariam de lado seus interesses regionais na Turquia, mas há que se levar em consideração que defender a Turquia é uma coisa e defender Erdogan é outra.
Se tiver que escolher entre deixar que Erdogan caia em desgraça e enfrente seu destino de perdedor e entrar em uma Guerra de escala total contra a Rússia, os Estados Unidos e a OTAN podem muito bem escolher a primeira opção e deixar que aconteça o sacrifício pessoal de Erdogan. De fato, trata-se do cenário perfeito para mais uma revolução colorida e o que impediria os Estados Unidos de engendrar na Turquia mais uma delas? Afinal de contas, quando se trata de trair aliados, os EUA são especialistas.Profissionais.
Uma boa olhada no mapa do norte da Síria e nos avanços recentes do Exército Sírio indica claramente que a região ocidental das fronteiras pode cair rapidamente nas mãos do Exército Sírio, e neste caso rapidamente significa algumas semanas. Em poucas semanas, provavelmente menos ainda, a cidade de Aleppo poderá estar sob a custódia do Governo Sírio. Isso será um golpe terrível para Erdogan. Levando em conta que a fronteira entre Síria e Turquia na região de Hatay é toda montanhosa e de difícil penetração militarmente falando, uma vez que esteja em mãos do exército sírio, será quase impossível para a Turquia retomá-la. Já o lado oriental da fronteira é plano e propício para avanços militares, mas as tropas ficam o tempo todo como alvo fácil para ataques aéreos.
Outro grande fator de risco para Erdogan reside no fato de que, em ano de eleições, os Estados Unidos dificilmente estarão dispostos a engajar-se em novas guerras. Qualquer guerra, inda mais uma de grandes proporções contra a Rússia.
De uma maneira ou outra a espada de Dâmocles sobre a cabeça de Erdogan deve cair a qualquer momento e a grande popularidade que conquistou após as reformas econômicas gradualmente vai sendo desbastada. Mesmo tendo ganhado as últimas eleições, caso a Turquia se veja em face de mais lutas domésticas e sendo arrastada por seu líder para uma grande guerra, não só as grandes conquistas econômicas serão esquecidas, com a Turquia de volta para o abismo econômico, como abrir-se-ão as portas para todas as possibilidades políticas, com ou sem revolução colorida.
O relógio não para de andar, e na medida que as forças leais a Erdogan dentro da Síria perdem terreno e coragem a cada instante, o nervosismo de Erdogan só faz aumentar. Ele encontra-se atualmente a cada dia mais acuado a um canto, forçado a um joguinho de roleta. Estilo russo.
Tradução: B T P Silveira.
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Fonte: MBeruBlue.