Chega ao fim uma espera

Por Magali Moser.

Quanto tempo pode durar uma espera? A minha durou mais de três anos. Quando a peça Simplesmente Eu, Clarice Lispector teve estreia nacional em Brasília, em 2009, prometi para mim mesma que assistiria ao espetáculo tão logo fosse possível. No mesmo ano, fui à Virada Cultural, em São Paulo, quando permaneci por mais de uma hora na fila, com uma amiga, do lado de fora do Centro Cultural Banco do Brasil. Mas os ingressos esgotaram-se rapidamente e, para nossa frustração, não conseguimos entrar. No ano seguinte, em 2010, disputei uma vaga no bate-papo que a atriz teve com o público durante a 21ª Bienal Internacional do Livro, em São Paulo, quando Clarice foi  homenageada. O espaço lotou e fiquei mais uma vez sem acesso. O anúncio da temporada da peça por Blumenau soou como algo supreendente e ao mesmo tempo muito esperado. Garanti meu ingresso assim que as vendas começaram. E a agilidade rendeu o privilégio de assistir à Beth Goulart na primeira fila do pequeno auditório Heinz Geyer, dia 1º de novembro.

As semelhanças entre a escritora ucraniana, naturalizada brasileira, e a atriz vão além da aparência física, dos trejeitos e sotaques (os erres puxados chamam a atenção no trabalho de Beth, que além de atuar no monólogo ainda assina a adaptação do texto e direção). Considerada a escritora que melhor compreende a alma humana, Clarice ganha uma vivacidade impressionante com Beth Goulart. É a proximidade com os pensamentos de Clarice e nem tanto com os traços físicos que tornam o espetáculo tão único. Beth Goulart não apenas interpreta, mas vivencia a escritora com entrega e paixão.

A peça lança discussões e reflexões sobre o amor, vida, morte, Deus, rotina, solidão, arte, loucura, vazio e silêncio. Temas universais. Atemporais. Provas de quão contemporânea é a autora. Não há como não se identificar com seus devaneios existenciais. Lembram mensagens de efeito da escritora cujas frases curtas têm invadido os sites de relacionamentos e se transformado em mania entre os internautas. Aproveito para reproduzir algumas das frases que ainda não consegui esquecer. Chegam a chocar de tão simples e verdadeiras: “O que me angustia é o constante por enquanto da vida e a inexistência do sempre”. “Amar os outros é a única salvação individual que eu conheço… Ninguém estará perdido se der amor,  e às vezes, receber amor, em troca.”

O espetáculo passeia pela obra de Clarice (1920-1977) através de quatro personagens do seu vasto universo. A primeira delas é Joana, de Perto do Coração Selvagem, primeiro romance da escritora e o primeiro contato de Beth com Clarice. Depois de Joana, aparecem Ana, do conto “Amor”, que leva uma vida simples, dedicada ao marido e aos filhos, tem a rotina quebrada ao se impressionar com um homem cego, que masca chicletes. Lóri, da obra Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, é uma professora primária que mora sozinha e se prepara para descobrir o amor. Há ainda outra mulher sem nome, extraída do conto “Perdoando Deus”, que se deixa mergulhar na liberdade enquanto passeia por Copacabana.

A peça transita entre o cômico e o drama. Uma das partes mais engraçadas é quando a atriz satiriza a aversão da escritora à entrevistas, especialmente aos jornalistas. A densidade, característica de seus personagens, e a dimensão filosófica-existencial de sua obra, em contraponto à fragilidade por vezes demonstrada pela escritora em relação às angústias humanas estão presentes e tornam ainda mais profunda a peça. Beth Goulart consegue transpor a singularidade da literatura da escritora para os palcos de forma envolvente. Simplesmente Eu, Clarice Lispector deu a atriz Beth Goulart quatro Prêmios de Melhor Atriz: Shell 2009 e Qualidade Brasil que premiou também como Melhor Espetáculo.

Os 60 minutos de peça passam rápido diante do brilhantismo de Beth. Ao final cria-se a sensação de se ter estado com a própria escritora. Tão emocionante quanto a peça, foi a conversa da atriz com a plateia, ao final do espetáculo. Beth Goulart provocou o público através das palavras. Não se mostrou incomodada com os irritantes ruídos das cadeiras de madeira, provocados a cada mudança de posição do espectador. Falou sobre a troca de experiências e energia que é o teatro, da identificação pessoal com a obra de Clarice, da importância da leitura, do quanto essa prática pode abrir portas dentro da gente. Reforçou a importância da obra de Clarice, sorteando dois livros. Demonstrou mais uma vez o vínculo irreversível criado com a escritora. Perceptível entender porque a atriz costuma se referir à peça como “um encontro de almas”, dela e de Clarice.

 Fonte: http://jornalistamagalimoser.wordpress.com/2012/11/06/chega-ao-fim-uma-espera/#comments

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