Chávez, o desafio e a esperança

chavezPor Miguel Urbano Rodrigues, de Portugal.       

 Tudo começou a mudar em Roma com Júlio Cesar, na opinião de Theodor Mommsen. Não exagerou o historiador alemão, premio Nobel de Literatura.

Num contexto civilizacional muito diferente, poderia afirmar-se o mesmo de Hugo Chávez, tomando como referência a América Latina.

A breve e tempestuosa passagem pela vida deste venezuelano deixa marcas inapagáveis não apenas na história do seu país, mas na atitude perante o futuro dos povos a sul do Rio Bravo. Nada vai permanecer igual ao que era antes de Chávez.

Desde a vitória da Revolução Cubana que o Hemisfério não era fustigado por um tsunami social e político comparável ao desencadeado pelo soldado que retomou o desafio da unidade latino-americana de Bolívar. Mas qualquer analogia seria descabida. Ele não repetiu, inovou.

Hugo Chávez apareceu de repente na História como uma inflorescência. O obscuro oficial de paraquedistas que acompanhara enojado a repressão do Caracazo saiu do anonimato em 1992 como líder de uma rebelião militar contra o governo de Carlos Andrés Pérez. A tentativa de golpe de Estado foi esmagada e Chávez cumpriu dois anos de prisão.

O cárcere foi para ele um tempo de estudo e reflexão. A sua admiração por Bolívar, o herói quase mítico das guerras de libertação e pioneiro da unidade latino-americana, encaminhou-o para um projeto ambicioso: libertar a Venezuela da dominação imperialista e levar à vitória, pela via institucional, uma revolução que fizesse do povo o sujeito da História. O sonho parecia utópico porque a Venezuela era então uma semicolónia dos EUA que controlavam não somente o petróleo como os mecanismos do poder.

Mas ocorreu o que os partidos da oligarquia e Washington tinham por impossível. O tenente-coronel mestiço, desprezado pela oligarquia, fundou o Movimento V República e um mês após as eleições legislativas apresentou-se como candidato às eleições presidenciais. O seu discurso surpreendeu e empolgou as massas por diferente de tudo o que se ouvia dos políticos desde os tempos de Ezequiel Zamora, o único general revolucionário posterior a Bolivar.

Parecia impossível mas aconteceu: Hugo Chavez foi eleito presidente da República em dezembro de l998.

Rapidamente tomou consciência de uma realidade enunciada por Lenine após a vitória da Revolução de Outubro: a conquista da Presidência fora uma tarefa muito mais fácil do que aquela que se propunha a empreender: a transição do capitalismo dependente, hegemonizado pelos EUA, para uma Venezuela soberana, rumo a uma revolução de contornos ainda por definir.

Dois golpes de Estado, montados e financiados pelos EUA, confrontaram Chavez com crises inesperadas.

O primeiro, em 2002, foi um golpe militar que contou com a participação activa de generais e dezenas de altas patentes das Forças Armadas. O Presidente, salvo pela mobilização popular, compreendeu que, afinal, o corpo de oficiais era permeável à ofensiva ideológica do imperialismo e da grande burguesia.

Uma segunda intentona, o lock-out, quase paralisou o país e demonstrou que a PDVESA, a gigantesca empresa petrolífera só nominalmente era nacional, pois os seus dirigentes e muitos quadros estavam identificados com a oposição e o grande capital financeiro internacional.

Em ambos os golpes estiveram envolvidos generais que haviam sido companheiros de Chavez.

Também entre os civis, logo nos primeiros anos, foram numerosas as deserções. O caso mais expressivo terá sido o de Miquilena, o ex-ministro do Interior, inicialmente visto como conselheiro íntimo do Presidente.

Uma deserção chocante, posterior, foi a do general Baduel, cuja atitude firme como comandante de uma unidade de paraquedistas contribuíra para a derrota do golpe de 2002.

No Parlamento, logo na primeira legislatura, muitos deputados mudaram de campo, passando à oposição.

Aprovada e promulgada uma nova Constituição, Chavez venceu sucessivas eleições.

Mas apercebeu-se de uma evidência: sem organização revolucionária que lhe assuma os objectivos e com eles se identifique não há revolução que possa atingir as metas propostas.

Mas qual o rumo da Revolução Bolivariana? No terreno da ideologia a definição tardou. Era uma revolução democrática e nacional, anti-imperialista.

Creio que foi em 2004, pela primeira vez, que Hugo Chávez, dirigindo-se em Caracas a um Encontro de Intelectuais em Defesa da Humanidade, deixou implícita a opção pelo socialismo.

Até então fora muito cauteloso na abordagem de temas ideológicos, consciente de que no chavismo cabiam tendências muito diferenciadas e até incompatíveis.

A criação de um partido da Revolução tornou-se uma necessidade quando a opção pelo socialismo foi oficializada.

O Partido Socialista Unido da Venezuela –

PSUV – nasceu porém numa atmosfera polémica, criado de cima para baixo. O número de filiados atingiu rapidamente um total impressionante. Nele entraram cidadãos que, embora declarando ser chavistas não querem que o país se encaminhe para o socialismo.

O Presidente exigiu que todos os partidos que apoiavam a revolução se dissolvessem, integrando-se no PSUV.

Não atendeu a esse apelo o Partido Comunista da Venezuela. Reiterando o seu apoio total à Revolução Bolivariana e ao seu presidente, o PCV esclareceu que não faria sentido dissolver-se para se integrar num partido no qual muitos dirigentes consideravam obsoleto o marxismo-leninismo, e, invocando o Socialismo do Século XXI, criticavam com dureza princípios e valores inseparáveis do seu combate como comunistas.

Ao regressar de Caracas, do VIII Encontro de Intelectuais em Defesa da Humanidade, escrevi então: «A fórmula do Socialismo no século XXI é equívoca e enganadora. Lembra um balão vazio. O núcleo teórico e programático não existe praticamente. O mal está no ataque irresponsável aos clássicos do marxismo, desencadeado sobretudo por alguns intelectuais latino americanos. Para eles, o pensamento de Marx, Engels e Lenine, toda a obra teórica sobre o socialismo científico tornou-se uma velharia cuja superação se apresentaria como exigência da História».

Cabe lembrar que a fundação do PSUV coincidiu com o auge da campanha de apologia do chamado Socialismo do Século XXI, apresentado como alternativa ao capitalismo neoliberal, alternativa que estaria já a tomar forma na Venezuela e na Bolívia e dai irradiaria para todo o mundo.

Nesse contexto de insensatez, académicos de prestígio afirmaram no encontro citado que a Venezuela se encontraria numa fase avançada da transição para o socialismo e a Bolívia de Evo Morales teria iniciado essa etapa.

POLÍTICA EXTERNA

Com excepção dos efeitos da complexa relação com a Colômbia e os elogios a governantes liberais europeus, inclusive a Sócrates e Sarkozy, a política externa de Chavez foi desde o inicio muito positiva, sobretudo pela firmeza e coragem que caracterizaram a confrontação com o imperialismo estadounidense.

No tocante à America Latina, a sua estratégia, sempre inspirada em Bolívar, visou o reforço da solidariedade entre países irmãos com regimes políticos diferentes. Foi decisiva a sua intervenção no debate que findou com o fim do projecto recolonizador da ALCA que os EUA pretendiam impor. A Alternativa Bolivariana para as Americas, ALBA, bem como a criação da UNASUL, do Banco do Sul e da Petrocaribe assinalaram avanços da estratégia anti-imperialista. Transparente foi também a sua atitude internacionalista, manifestada na solidariedade permanente com governos como o do Irão que não se submetem á dominação imperial dos EUA.

Palavras e atitudes que lhe valeram ferozes críticas – chamou «diabo» a George Bush ao discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas – expressaram ímpetos da sua personalidade. Mas, contrariamente ao que afirma a oposição interna e externa, actuou sempre com frieza e serenidade quando tomou decisões de significado estratégico.

A TRANSIÇÃO DIFÍCIL

Era inevitável que a decisão de romper gradualmente com o capitalismo seria fonte de grandes problemas num país como a Venezuela que era quase um feudo dos EUA.

As comparações que os media ocidentais estabelecem com Cuba são absurdas. Tudo está a ser muito mais difícil na Venezuela.

Após a vitória da Revolução em 1959, a burguesia cubana emigrou maciçamente para Miami. Na Venezuela ela ficou no país e não foi expropriada. Durante muito tempo manteve o controlo do Poder Judicial, da central sindical reaccionária pré existente, e de importantes sectores do estado. A absolvição dos militares golpistas foi esclarecedora da mentalidade de um amplo leque da magistratura.

Distorcem a realidade os media que insistem em apresentar um panorama alarmante da economia do país.

Num contexto histórico muito desfavorável, hostilizada pelos governos de Bush e Obama, a Revolução Bolivariana realizou sob uma ofensiva permanente da oligarquia crioula, conquistas muito importantes. O que surpreende não é aquilo que não foi possível realizar; mas sim o terem conseguido tanto numa atmosfera de guerra não declarada, em cenário de uma luta de classes que somente terá um precedente no Chile de Allende.

O analfabetismo, antes elevadíssimo, foi praticamente erradicado. Nas escolas públicas o ensino é gratuito. Num país onde o sector editorial era quase inexistente, o Estado distribuiu gratuitamente desde o início da Revolução dezenas de milhões de livros de autores nacionais e estrangeiros. Somente do D. Quijote de la Mancha, de Cervantes, foram distribuídos mais de um milhão de exemplares. Novas universidades foram criadas e o total de estudantes nas públicas ronda os 2 milhões, com maioria de jovens de origem não burguesa.

A assistência médica gratuita, antes inexistente, abrange hoje a totalidade da população.

Nessa política humanista, as Misiones, programas sociais, desempenham um papel fundamental. A Mision Mercal, por exemplo, atende a preços subsidiados 10 milhões de pobres em 1500 lojas do Estado e mercados abertos. A Mision Barrio Adentro desenvolve um trabalho insubstituível no campo da saúde. Mais de vinte cinco mil médicos e enfermeiros cubanos levaram Saúde a milhões de trabalhadores que a ela não tinham acesso.

O governo estimulou os Consejos Locales de Planificacion e os Consejos Comunales concebidos para estimular a participação popular.

Numa das minhas passagens por Caracas passei uma manhã no Nucleo de Desarrollo Endogeno Fabricio Ojeda, na Paroquia de Gramoven. Ali funciona uma cooperativa que produz vestuário, calçado, cerâmica, legumes, e vende alimentos subsidiados, dispondo ainda de um centro cultural e de uma clínica que é um pequeno hospital.

Em Maracaibo e Maturin tive a oportunidade em 2011 de visitar Projectos Urbanísticos – autênticas Cidades Comunitárias – construídas no âmbito de um acordo com a República Islâmica do Irão. Nessas jornadas convivi com os moradores, homens e mulheres empenhados em construir a Venezuela socialista.

DESAFIOS

Não obstante a ofensiva contra revolucionária da oposição, agora liderada pelo milionário Henrique Capriles, a situação financeira do país está controlada. As reservas oficiais aumentaram muito apesar das flutuações do preço do petróleo.

As reservas de hidrocarbonetos são das maiores do mundo.

Mas a insistência de alguns ministros e dirigentes do PSUV em apresentar a Venezuela como país em transição acelerada para o socialismo, deturpa a realidade.

Com excepção do petróleo, a contribuição do sector privado para o PIB é amplamente maioritária. É ele que controla o comércio e quatro quintos das importações.

Conforme os economistas Remy Herrera, de França e Paulo Nakatamy, do Brasil, salientaram num importante ensaio, o aparelho do Estado permanece capitalista; o Banco Central é autónomo e a saída ilegal de capitais atinge um volume considerável. O mercado negro estimula o açambarcamento e a escassez periódica de produtos essenciais. O salário mínimo é o mais elevado da América Latina, mas como o custo de vida é altíssimo não satisfaz as necessidades básicas dos trabalhadores.

O sistema mediático é hegemonicamente controlado pela oposição.

Na última década o peso do sector mercantil privado aumentou, enquanto o do público caiu. A percentagem correspondente à remuneração do trabalho também diminuiu, enquanto a relativa à remuneração do capital cresceu.

A transição para o socialismo é, portanto, ainda incipiente num contexto em que o modo de produção, as relações de produção e as estruturas económicas continuam a ser fundamentalmente capitalistas.

As contradições de Caracas, um desumanizado polvo urbano de 4 milhões de habitantes, ajudaram-me a compreender as tremendas dificuldades que o processo revolucionário enfrenta na sua lenta marcha rumo ao socialismo.

Não obstante os governos de Hugo Chavez terem reduzido drasticamente os índices da pobreza, apesar da melhora das condições de vida de milhões de trabalhadores, a herança do passado pesa muito. A Venezuela é ainda um país onde subsiste uma desigualdade social afrontosa da condição humana. Contrastando com o espetáculo degradante dos casebres que emolduram a cintura de morros de Caracas, a exibição insolente de riqueza nas urbanizações de luxo da grande burguesia excede o que vi no México, em São Paulo, em Buenos aires e no Rio, em condomínios fechados que são o paraíso de multimilionários.

Chávez anunciou com o seu desafio humanista o homem novo sonhado pelos revolucionários marxistas. Mas o contacto com as angustiantes contradições da Venezuela bolivariana fortaleceram a minha convicção de que o homem novo somente pode tornar-se realidade após a erradicação do capitalismo e do imperialismo.

CONCLUSÃO

Como definir e situar o revolucionário Hugo Chávez?

Não e fácil a resposta porque ele não se ajusta a qualquer figurino conhecido.

Optou pelo Socialismo, imprimindo à Revolução um rumo que poucos esperavam.

Não foi um marxista, nem um socialista utópico. Nunca escondeu a força do seu sentimento cristão católico, mesmo entrando em choque quase permanente com a hierarquia da Igreja do seu país.

Mesmo companheiros que sempre o admiraram atribuem-lhe um excesso de voluntarismo. Não lhes faltará razão.

Se ele apresenta afinidades idiossincráticas na sua trajetória de revolucionário carismático e humanista, com grandes personagens da História da América Latina, não creio que seja com Bolívar, o seu génio tutelar. Como líder de massas que fascinou os oprimidos do seu povo e por eles foi amado e compreendido, ele me faz pensar em grandes caudilhos como o uruguaio Artigas, os mexicanos Pancho Villa e Emiliano Zapata.

Quando me perguntam para onde se encaminha a Venezuela, órfã de Chavez, recuso o tema. Não cultivo os exercícios de futurologia nem a especulação histórica.

É imprevisível o amanhã do seu povo, mas não duvido de que a História avançará se a obra sobreviver ao seu criador.

Hugo Chávez restituiu a esperança não apenas aos seus compatriotas. Restituiu-a aos povos da América Latina, humilhada e imperializada.

Desaparecido fisicamente, já deu entrada no panteão dos heróis do Continente.

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