Por Alexandre Pimenta.
“Estamos testemunhando não uma crise de um tipo de movimento, regime ou economia, mas seu fim. Aqueles de nós que pensávamos que a Revolução de Outubro era a porta para o futuro da história mundial provaram estar equivocados”[i] Assim Hobsbawm descrevia, em 1990, a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento da União Soviética. Se aqueles foram dias de “trabalho de luto” para esquerda e seus intelectuais, que se debatiam (e ainda hoje se debatem) com os vestígios e signos de seu passado recente, para os capitalistas e seus agentes, foram dias de celebração. A história findava-se, e, enfim, o capital, ou o que Badiou chama de capital-parlamentarismo, podia tocar todas as pontas do globo.
As últimas gerações, incluindo o autor, nasceram nesse clímax capitalista. Daí a dificuldade nossa de pensar os efeitos da revolução russa no imaginário político e na atuação das classes dominadas nos meandros do século XX. Nascemos com apenas um mundo possível, num regime de livre-escolha que “legitima-se através da insistência contínua de que não temos escolha”[ii]. Hobsbawm continua nesse artigo: “o principal efeito de 1989 é que o capitalismo e os ricos pararam, por enquanto, de ter medo. Tudo o que fez com que a democracia ocidental valesse a pena para seus povos […] resultou do medo”[iii]. Vencido seu inimigo principal, a “hidra do socialismo”[iv], todo o restante parecia menor.
Certamente estamos muito distantes da Revolução de Outubro: lá se vai um século. Mas também estamos anos-luz da utopia fukoyamista do fim da Guerra Fria. The dream is over também para os vencedores. Enquanto esse texto é escrito, a Europa se mantém em alerta após mais um grande atentado terrorista nas ruas de Barcelona, reivindicado pelo Estado Islâmico. Reações xenófobas se multiplicam, em meio a levas de imigrantes (os que sobrevivem) a atravessar o Mar Mediterrâneo fugindo da guerra e da fome… “O preço do mundo supostamente unificado de capitais é a divisão brutal da existência humana em regiões separadas por cães policiais, controles burocráticos, patrulhas navais, arame farpado e expulsões”[v]. O “breve século XX” de Hobsbawm parece ainda viver, de alguma forma. Ou pior: o século XIX, como alerta economistas como Piketty, dada a gigantesca e crescente concentração de riqueza no mundo.
O medo do sistema, que sobreviveu recentemente a um de seus maiores crashs, não provém, como vemos, da hidra do socialismo, mas dos excessos imprevisíveis gerados pela barbárie capitalista atual. Não é o confronto com o Leste Vermelho (hoje defensor do livre mercado em Davos, como no caso chinês) de que se trata. É do mundo configurado pelo capital e suas sombras. As multidões em regiões devastadas pela guerra contra o terror e contra as “drogas”; pelo desemprego, subemprego ou mesmo trabalho escravo; pela destruição e desastres ambientais… toda fúria e ressentimento que é gerado nesse contexto, tem se manifestado através do fanatismo religioso, dos levantes “desorganizados”, da criminalidade sem fundo “político”; de subjetividades que não conseguem se enlaçar em um projeto político de fato contra-hegemônico, mas mancham o sonho de paz perpétua dos de cima e empurram as classes dominantes a largarem suas vestes liberais e abraçarem a guerra perpétua como o normal da política “democrática” do século XXI.
Esse desespero dos de baixo, ao mesmo tempo gritante e mudo, não consegue ser organizado e trabalhado pela esquerda contemporânea, que, “renovada”, prima por uma agenda identitária e/ou uma alternativa de governança menos “brutal” sob marcos institucionais intactos. Ou seja, move-se ora pela reposição ou adiantamento das contradições estruturais explosivas (vê-se o caso atual e dramático da América Latina), ora pela inofensiva (para o capital[vi]) agenda culturalista e relativista, em rituais vazios, chamados por Zizek de interpassividade. Ao fim e ao cabo, reforçando o mundo no qual esses desesperados se levantam.
Se a barbárie não cessa e estamos longe de um quadro distópico de completa submissão das classes dominadas, como confortavelmente alguns teóricos críticos desenham há décadas, devemos refletir de forma séria as debilidades políticas e organizacionais daqueles que ainda ousam pronunciar a palavra comunismo. E a porta do futuro enterrada por Hobsbawm teria algo a nos dizer?
Parece contraintuitivo pensar o novo e sua possibilidade através do signo da repetição. Todavia, a história revolucionária do proletariado, já ressaltava Marx, tem aí uma das mais enigmáticas e marcantes características: ao mesmo tempo em que “tira sua poesia do futuro”, “interrompe continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez […], parecem derrubar seu adversário para que este possa retirar da terra novas e erguer-se novamente”[vii]. É isso o que Mao chamava de lógica do povo. Isso porque tal dinâmica temporal se torna compreensível apenas do ponto de vista das classes dominadas que pretendem se transformar dominantes, mas ainda sem experiência e enfrentando inimigos taticamente muito superiores.
A atualidade e a pertinência de Outubro permanecem não pela semelhança do cenário e atores, mas por ter sido uma tentativa de construção do socialismo, um episódio grandioso na história dos povos. Zizek, seguindo Kierkegaard, diferencia retorno e repetição nesse ponto. Paralisar-se numa nostalgia e no apego quase que estético ao passado estaria na ordem do retorno. Buscar realizar uma abertura histórica daquela dimensão na conjuntura atual, por outro lado, seria a repetição. Fidelidade não ao objeto em si, mas à sua intenção.
Assim, que nesse centenário voltemos às lições de Outubro, colocando-as para trabalhar no hoje, nos dilemas nos quais estamos embrenhados. Pois, parafraseando Victor Hugo no prefácio de Os Miseráveis, enquanto houver dias como os quais estamos sobrevivendo, meses como aquele não serão inúteis.
Fonte: IELA.