Por Mariana Sanches, BBC News Brasil em Washington.
Ao argumentar que foi um “erro” a criminalização do nazismo pela Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) tocou em um dos maiores desafios para as democracias liberais contemporâneas: qual a linha que separa a liberdade de expressão e a apologia ao crime? Quando a garantia à liberdade de expressão de um grupo representa dar-lhes os instrumentos democráticos para destruir a própria democracia? Por que, afinal, a Alemanha, um dos países mais democráticos do mundo, criminaliza até hoje o discurso nazista?
A fala de Kim Kataguiri – que em janeiro anunciou que se filiará ao Podemos – aconteceu na última segunda-feira (7/2), durante a participação do integrante do Movimento Brasil Livre (MBL) no programa de podcast Flow, conduzido pelo apresentador Bruno Aiub, conhecido como Monark.
“O que eu defendo, e acredito que o Monark também defenda, é que por mais absurdo, idiota, antidemocrático, bizarro, tosco o que o sujeito defenda, isso não deve ser crime porque a melhor maneira de você reprimir uma ideia antidemocrática, tosca, bizarra, discriminatória é você dando luz àquela ideia, pra que aquela ideia seja rechaçada socialmente”, disse Kataguiri no podcast.
No mesmo programa, Monark afirmou que “deveria existir um partido nazista legalizado no Brasil” e que “se o cara for anti-judeu ele tem direito de ser anti-judeu”.
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O ‘falso’ paradoxo da liberdade
Nesta terça (8/1), o apresentador disse que estava “muito bêbado” durante o podcast e se desculpou pelas palavras. Afirmou que foi “insensível” e que pareceu defender “coisas abomináveis” quando na verdade queria argumentar a favor da liberdade de expressão. O podcast Flow anunciou que Monark havia sido retirado da apresentação da atração e deixado a sociedade que gerencia o produto.
Alguns anunciantes do programa, que tem quase 4 milhões de inscritos no Youtube, divulgaram que romperiam seus contratos com o Flow. A Confederação Israelita do Brasil (Conib) condenou, em nota, “a defesa da existência de um partido nazista” e até a Embaixada da Alemanha no Brasil soltou nota em que afirmou que “defender o nazismo não é liberdade de expressão”.
Um dia após o episódio, a Procuradoria Geral da República abriu investigação contra Kataguiri e Monark por eventual crime de apologia ao nazismo. No Brasil, divulgar o nazismo pode resultar em pena de 2 a 5 anos de cadeia e pagamento de multa.
O deputado federal foi às redes sociais argumentar que sua defesa era da liberdade de expressão e não do nazismo. Em nota, afirmou que vai “colaborar com as investigações pois meu discurso foi absolutamente anti-nazista, não há nada de criminoso em defender que o nazismo seja repudiado com veemência no campo ideológico para que as atrocidades que conhecemos nunca sejam cometidas novamente”.
Especialistas em democracia e fascismo ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, veem no argumento pró-liberdade de expressão absoluta de Kataguiri e Monark um falso – e perigoso – paradoxo.
“Uma ideia que tem circulado cada vez mais é a de que numa democracia as pessoas devem ter o direito a expressar e fazer coisas que destruam a própria democracia”, afirma o historiador Federico Finchelstein, especialista em fascismo da New School, em Nova York.
Finchelstein apela para uma metáfora futebolística para explicar por que a lógica de Kataguiri e Monark é incorreta.
“Imagine que a democracia é um jogo de futebol, com todas as regras do jogo, como só jogar com os pés. Todos podem jogar, desde que sigam as regras. Ao defender que alguns têm o direito de expressar e aplicar ideias que destroem a democracia, essas pessoas estão dizendo que parte dos jogadores vai jogar futebol com a mão, o que destrói o jogo. É algo perigoso e típico do fascismo, uma manipulação para causar confusão com a noção de liberdade, como se a liberdade na democracia incluísse ser livre para contaminar os outros, para eliminar grupos sociais, para cassar vozes alheias”, diz Finchelstein.
O suposto paradoxo da democracia – de garantir liberdades que podem destruir a própria democracia – não é uma ideia nova na filosofia e na política. Em 1945, o filósofo liberal Karl Popper publicava o seu “A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos”, escrito ainda durante a Segunda Guerra Mundial. Na obra, ele afirma que “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”.
‘Democracia militante’: a experiência alemã
Para Johannes von Moltke, especialista em movimentos de direita e sua atuação nas mídias, da Universidade de Michigan, foi essa lição que a Alemanha falhou em entender há quase 90 anos e que a levou a ter um governo nazista no comando.
“A Alemanha do pós segunda guerra não proibiu o nazismo apenas pela experiência do Holocausto. Os alemães estavam muito preocupados em não repetir os erros da era pré-nazista, da chamada República de Weimar (1919-1933), que permitiu que partidos como o nacional-socialista de Hitler se estabelecessem. O que o deputado brasileiro está defendendo é basicamente a rota de uma democracia não liberal para o fascismo, justamente o caminho que a Alemanha tomou no final dos anos 1920, que levou à eleição do Partido Nazista, responsável por cassar todas as salvaguardas democráticas na sequência”, explica von Moltke.
Ao tomar o controle da então frágil e jovem democracia alemã, Adolf Hitler não só destruiu as instituições democráticas como passou a usar a máquina do Estado alemão para perseguir e exterminar minorias: judeus, negros, homossexuais. As ações de Hitler desaguaram na Segunda Guerra Mundial, da qual ele saiu derrotado e, o país, dividido.
Em 1949, o governo da então Alemanha Ocidental baniu legalmente o uso de símbolos, linguagem e propagandas nazistas. Estudioso do desenvolvimento de leis contra o discurso e os crimes de ódio no mundo, o professor da Faculdade Middlebury College, Erik Bleich lembra que até mesmo a famosa saudação “Heil Hitler!” foi oficialmente proibida pelos alemães.
No entanto, ainda levaria quase duas décadas para que os alemães passassem a olhar de modo crítico para a própria história, resgatassem a memória das atrocidades do período nazista e discutissem nas escolas os crimes cometidos pelos avós dos estudantes. Ainda nos anos 1960, passou a ser crime “incitar ódio e violência contra parcelas da população”, lei que foi atualizada para criminalizar também o racismo e expressamente banir racismo e fascismo.
O escopo legal alemão é o melhor exemplo do que ficou conhecido como ‘democracia militante’ ou ‘democracia defensiva’.
“É um requisito de uma democracia em funcionamento que as pessoas tolerem ideias com as quais discordam. No entanto, alguns discursos, alguns grupos, alguns partidos podem ser tão prejudiciais que os políticos e o público concluem que os riscos que eles representam superam os benefícios de protegê-los. Os alemães viram em primeira mão onde o nazismo pode levar e por isso mesmo a Alemanha está entre os defensores mais ativos do que é chamado de ‘democracia militante’ – em outras palavras, a noção de que a democracia deve ser defendida, mesmo ao custo de restringir algumas liberdades quando essas liberdades estão sendo exploradas para minar a democracia”, afirmou Bleich à BBC News Brasil.
Segundo Bleich, a Alemanha é a democracia mais restritiva enquanto os Estados Unidos, onde é relativamente comum ver manifestações da extrema direita com suásticas e símbolos de supremacia branca, têm menos regulações.
“Ambos os países ainda permitem uma variedade muito grande de discursos e ações, em diversos espectros ideológicos. A parte difícil dessa história para as democracias é descobrir como restringir, banir ou punir apenas os discursos, grupos e partidos realmente perigosos, deixando o escopo mais amplo possível do que é permitido. Diferentes países desenvolveram soluções diferentes para este enigma”, diz Bleich.
No Brasil, durante o governo Bolsonaro, a questão entrou na ordem do dia. Por um lado, integrantes do governo foram acusados de promover propaganda fascista. Em janeiro de 2020, o então secretário da Cultura, Roberto Alvim foi demitido depois de divulgar um vídeo que fazia referência à fala de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazista. Ele atribuiu o episódio a uma “coincidência retórica”. Em março de 2021, o assessor para Assuntos Internacionais da Presidência da República Filipe Martins foi acusado de fazer gesto supremacista branco durante sessão no Congresso. Martins negou intenção racista em seu gesto e acabou absolvido na Justiça.
De outro lado, integrantes do governo e o próprio presidente passaram a acusar a Justiça de cercear a liberdade de expressão dos brasileiros. Seus apoiadores chegaram a ameaçar invadir o Supremo Tribunal Federal, que deu sucessivas decisões contra o que considerou serem atos anti-democráticos de bolsonaristas. Entre as decisões judiciais estão a derrubada de páginas de internet e perfis de redes sociais que espalhavam desinformação favorável ao atual governo.
Segundo Finchelstein, existe uma ressurgência do fascismo em diversos países e o Brasil não escapa desse movimento global, que seria uma busca por respostas para os problemas da vida cotidiana, como a pandemia e suas restrições, as crises econômicas, a intensidade das migrações com a globalização. “Há uma espécie de crise da democracia. As pessoas estão descontentes com o desenvolvimento político, econômico e social. Mas elas parecem esquecer que a solução que o fascismo propõe é ainda pior do que uma democracia problemática, diz Finchelstein.
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