Por Luís Eduardo Gomes.
O bailarino Igor Cavalcante Medina, 26 anos, apresentava uma performance ao ar livre na Praça João Pessoa, em Caxias do Sul (RS), quando foi abordado por cinco pessoas, entre membros da Guarda Municipal e socorristas do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), que consideraram que ele estava sofrendo um surto psicótico e o imobilizaram, sedaram e levaram para o hospital de Pronto Atendimento 24 Horas da cidade. Ali, ele permaneceu oito horas amarrado em uma maca, até que, no final do dia, recebeu a visita de uma psiquiatra, que lhe atendeu, assinou um laudo dizendo que estava lúcido e consciente e o liberou para ir para casa. O caso teve repercussão nacional nos últimos dias. Foi tratado como mais um episódio de repressão à arte, como tantos que vêm ocorrendo no Brasil recentemente. No entanto, a psicóloga Simone Paulon, professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destaca que há também nessa história uma forte herança manicomial, indicando que todo comportamento que foge ao normal deve ser reprimido e a loucura tratada com internação, se necessário, forçada.
A reportagem conversou com Igor por telefone na última terça-feira (31). Inicialmente, ele disse estar cansado do episódio e que não tinha muito mais a falar sobre o assunto. Mas, aos poucos, com tranquilidade e voz sempre calma, começou a contar sua versão da história.
Nascido no Rio de Janeiro, ele chegou a Caxias há cerca de um ano meio. Inicialmente, trabalhou como professor de dança de salão na cidade, até ingressar na Companhia Municipal de Dança, em março. No momento em que foi abordado, Igor apresentava o espetáculo solo intitulada “Fim.“, registrado como parte da 8ª edição do Festival Caxias em Movimento e que tinha autorização por escrito, da Prefeitura, para acontecer. “Estava iniciando a minha apresentação. Comecei a declamar um poema que escrevi e, a partir dessas falas, ia criando as minhas movimentações. Foi quando eu fui abordado e aconteceu tudo. Alegaram que eu estava em surto psicótico”, lembra.
Ele conta que o primeiro guarda que o abordou já segurou um de seus braços e que, longo em seguida, apareceram outros agentes e a equipe do Samu. Igor diz que sua primeira reação foi de esperar para entender o que estava acontecendo, continuar sua apresentação e só depois questionar porque estava sendo levado, tentando explicar que tinha autorização para se apresentar, mas que não foi ouvido. Conta ainda que foi sedado dentro da ambulância do Samu por um socorrista, mesmo tendo dito que não gostaria de ser sedado e tentado argumentar que isso não era necessário.
Após passar 8 horas amarrado numa maca, ele foi atendido pela psiquiatra do PA por volta das 19h30, que deu um laudo afirmando que Igor estava lúcido e em condições normais de consciência. “Acho que ela achou que encontraria uma pessoa no hospital totalmente desorientada, sem lucidez e, quando falou comigo, percebeu que não estava assim. Foi a única pessoa que acreditou em mim e viu que eu não tinha os sintomas. Ela até me pediu desculpas pela situação, se desculpou pela cidade, mas disse que não tinha o que fazer, que a única coisa que poderia fazer era me liberar”, diz o bailarino.
Ao jornal Pioneiro, de Caxias, o diretor da Guarda Municipal, Ivo Rauber, informou que os agentes foram acionados para verificar a situação de um homem que estava parado na praça, utilizando um arame farpado ao redor do pescoço. Rauber informou que a equipe tentou falar com o bailarino, que não respondeu, mas olhava para o céu, para cima e para baixo e “de repente, começou a soltar frases filosóficas, citava a Somália a todo o momento”. Os guardas teriam então entendido que se tratava de uma questão de saúde e acionado o Samu, que decidiu pela contenção com o uso de colete e o encaminhamento para o PA. No entanto, disse que a Guarda não utilizou a força na abordagem. Igor confirma que “vestia” um arame farpado, e afirma que ele estava posicionado no corpo de modo que não o machucasse durante a performance.
Um vídeo publicado em outra notícia do Pioneiro mostra Igor fazendo a sua apresentação enquanto é segurado por um agente pelo braço. Há então um corte e o momento seguinte mostra o bailarino tentando correr, sendo imobilizado e colocado numa maca por cinco pessoas. É possível, então, ouvi-lo dizendo, já em um tom diferente do que usava na apresentação, “por que vocês estão fazendo isso?” e “tira a mão de mim”.
Igor nega que suas falas fossem desconexas, diz que as considera muito lúcidas, na verdade, e que eram sobre a brutalidade do cotidiano e o massacre dos corpos humanos. A apresentação dele consta na programação oficial do 8º Caxias em Movimento, marcada para às 11h30 do dia 28, na Praça da Bandeira – mas ocorreu na Praça João Pessoa, segundo o Pioneiro. “O trabalho aborda a violência e põe o corpo em evidência para trazer à tona as diversas formas de brutalidade do cotidiano, sejam elas físicas ou psicológicas. Os corpos vão sendo envenenados até a total desumanização. Será que já não somos nada mais além de um mero pedaço de carne incapaz de sentir, incapaz de resistir, incapaz de se rebelar?”, diz a síntese que consta no programa do festival.
A reportagem tentou contato com diversos órgãos municipais de Caxias, mas o caso foi centralizado na comunicação social da Prefeitura, que informa apenas que, desde segunda (30), está sendo apurado e a Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social (SMSPPS) está ouvindo relatos dos envolvidos para esclarecer o que ocorreu e dar os encaminhamentos necessários, para só então voltar a se pronunciar. A comunicação da Secretaria Municipal de Saúde não quis informar o nome da psiquiatra que atendeu Igor e tampouco mediar o contato dela com a reportagem, mas confirmou a versão contada por Igor do que ocorreu no hospital.
Ao contrário do que chegou a ser divulgado, o bailarino não deixou a cidade e nem pretende fazer isso. Ele acha Caxias ótima e diz ter sido muito bem recebido, que o povo é hospitaleiro e amigável, e que é a primeira vez que algum problema ocorre com ele. “Acho que a situação não é reflexo do que é a cidade em si. Acredito que foi só um caso. As pessoas são gentis”, afirma.
Ele ainda diz que já trabalhou como artista de rua em outras oportunidades, que gosta de levar arte para quem não tem condições de consumi-la em teatros e casas de espetáculo. Ao afim, acredita que foi a linguagem da apresentação que motivou a ação da Guarda. “Não que justifique”. Como o caso ainda é muito recente, aguarda para ver que tipo de medidas poderá tomar.
Pasteurização e silenciamento
Para a psicóloga Simone Paulon, que coordena grupo INTERVIRES – Pesquisa-Intervenção em Políticas Públicas, Saúde Mental e Cuidado em Rede, o caso de Igor é “emblemático de uma cultural manicomial” que ainda persiste no Brasil, agravado pelo fato de que o bailarino não é paciente de nenhuma doença mental, mas apenas fazia uma apresentação que fugia ao que é considerado “normal”. “Dá para perceber o quanto o cotidiano e a formação dos nossos agentes de Estado é dentro de uma lógica normatizadora. É como se o cotidiano das pessoas e a nossa formação, o nosso dia a dia, a vida cotidiana, fossem absolutamente pasteurizados, que as pessoas não tivessem nenhum tipo de alteração de alegria, de euforia, de irritação. É uma forma de olhar para a vida e para os sujeitos que parte do princípio de que as emoções estão sob controle”, avalia.
Simone faz questão de destacar que a atuação dos agentes municipais não pode ser criticada apenas individualmente, personalizada, mas que está dentro de um contexto maior de atuação do Estado. Dito isso, ela considera que há dois problemas graves na intervenção que ocorreu com Igor. O primeiro é o que chama de “patologização do cotidiano” e a necessidade de reprimir quem manifesta sua singularidade. “Ele estava agredindo alguém? Botando alguém em risco? Estava simplesmente chamando a atenção por um comportamento que era diferente. O Estado policialesco se dá ao direito de anestesiar uma pessoa por uma manifestação que não é a esperada. Isso mostra um desejo de que todo mundo seja pasteurizado”, afirma, acrescentando ainda que normatização dos corpos e mentes, coincidentemente um tema muito semelhante ao da apresentação de Igor, é considerada normal pela sociedade, o que pode ser verificado pelo fato de que ninguém tentou intervir na ação dos agentes da Guarda e do Samu.
O segundo problema que ela vê é o processo de silenciamento da pessoa. Simone destaca que, dentro da lógica manicomial, é comum que o diferente, o paciente de saúde mental, seja progressivamente silenciado e os agentes do Estado recusem-se a parar e escutar o que ele tem a dizer sobre a forma como é tratado. Mesmo que Igor estivesse em surto psicótico, o trabalho desenvolvido a partir da Reforma Antimanicomial aponta que o melhor tratamento seria o acolhimento do paciente, o que inclui uma abordagem humanizada, a escuta, e não a decisão imediata pela imobilização e medicação. O bailarino só seria escutado horas depois, já no PA, e em seguida liberado. Caso ele tivesse passado por um surto, mesmo isso jamais poderia ter ocorrido, mas sim ter sido encaminhado para a rede de atendimento psicossocial para ter continuidade no tratamento, diz a psicóloga.
“Doença mental, via de regra, é uma doença crônica. Os psicóticos, os esquizofrênicos, não vão se curar, mas isso não significa que o tratamento seja o isolamento e muito menos violência e tortura, que é o que eles sofrem dentro dos manicômios. Então, a abordagem na crise precisa respeitar o que a Lei Antimanicomial prevê, que é o modo de cuidado psicossocial, que implica acolhimento na situação de crise, ser recebido por um serviço especializado”, diz.
Bicho de Sete Cabeças
Para explicar o que é essa cultura manicomial, Simone toma como exemplo o jogo em que o participante precisa martelar uma toupeira toda vez que ela bota a cabeça para fora da superfície. “Os policiais assumem a função de bater com o martelinho na cabeça das pessoas que divergem da norma. O que tem que se questionar é o Estado que propicia isso e permite que ‘quem bote a cabeça para fora’ tenha o seu corpo indisponibilizado”, afirma.
Ela também se remete ao filme “Bicho de Sete Cabeças” (2001), da diretora Laís Bodanzky, baseado no livro “Canto dos Malditos“, do escritor Austregésilo Carrano Bueno, que narra sua experiência pessoal em hospitais psiquiátricos e denuncia abusos cometidos nessas instituições. No filme, o personagem principal, Neto, vivido por Rodrigo Santoro, é um jovem filho único de uma família de classe média que apresenta problemas de relacionamento com o pai conservador. Após ser pego fazendo grafite com amigos em uma madrugada e com um cigarro de maconha no bolso, é considerado doente pelo pai e encaminhado para ser tratado como tal em um manicômio. No entanto, é ali que começa o verdadeiro processo de enlouquecimento do personagem. Ainda que tente resistir, dizer que estava lá por engano, nunca é ouvido, passando justamente por um processo de silenciamento e degradação em sua condição. “É dantesco a gente ver isso acontecer, em 2017, com um artista”, diz.
A psicóloga destaca a lucidez que teve a médica que atendeu Igor impedindo que ele passasse por situação parecida, mas diz que a vida real está cheia de casos em que pessoas são jogadas dentro de instituições psiquiátricas após cometerem algum delito e serem diagnosticadas como doentes mentais, ficando lá por mais anos do que a pena criminal indicaria e, em alguns casos, a vida toda.
Ela cita, por exemplo, um caso publicado como artigo em 2012 pelo então juiz de Direito Clademir Missaggia, hoje desembargador do Tribunal de Justiça-RS. Ao estudar os casos de pessoas internadas no Instituto Psiquiátrico Forense do Rio Grande do Sul, Clademir descobre que um dos internos estava no local há 26 anos, seis meses e 19 dias pela contravenção penal de perturbação da tranquilidade. E assim achou outros 65 casos de pessoas internadas por muitos anos por terem cometido crimes de baixa potencialidade lesiva e que, se fossem presas no regime convencional, teriam penas de, no máximo, um ano de detenção. “Imagina só o que poderia ter ocorrido se a médica não dissesse que foi um engano”, diz Simone.
Morte em Lajeado
Há ainda outro caso recente e emblemático de abordagem equivocada a paciente em surto psicótico no RS. Em julho de 2015, o adolescente Miguel Osório Alves da Silva, 17 anos, que sofria de esquizofrenia, passava por um surto e ameaçava sua mãe com um faca. A Samu foi acionada para lidar com a questão, mas acabou convocando a Brigada Militar. Um brigadiano então agiu, disparando um tiro contra Miguel, que morreu no dia seguinte em um hospital de Lajeado.
Fonte: Sul21