Por Glauco Faria, Outras Palavras.
Uma matéria publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo na noite desta terça-feira (3) trazia o seguinte título “Lula atuou em operação para banco emprestar US$ 1 bilhão à Argentina e barrar avanço de Milei”. O título de um conteúdo acessível apenas a assinantes induzia qualquer um a pensar que o presidente brasileiro tinha intercedido junto a um banco, talvez estatal, com o interesse de interferir nas eleições do país vizinho. Os problemas, entretanto, eram bem maiores que este.
A matéria se baseia apenas em off, o que, no jargão jornalístico, significa que a fonte ou as fontes preferiram não se identificar. As pessoas citadas também não foram procuradas, já que não existe qualquer menção de que tenha havido o cuidado de tentar escutá-las. O texto começa com: “Era uma sexta-feira do fim de agosto quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que tinha urgência em falar com Simone Tebet. A ministra do Planejamento não estava em Brasília, mas foi logo contatada por telefone. A pressa de Lula não era à toa: o Brasil precisava autorizar, ainda naquele mês, uma operação para que o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) concedesse empréstimo de US$ 1 bilhão à Argentina.”
Tebet se manifestou nesta quarta, em audiência pública na Comissão Mista de Orçamento para discussão do Plano Plurianual (PPA). “Acordei surpresa. Não é que eu não fui consultada, eu que não consultei o presidenteLula. O presidente Lula não me ligou, não entrou em contato comigo, porque é natural: eu sou governadora desse banco”, respondeu a ministra. Ela ressaltou que o Brasil tem participação no CAF e que a instituição se reúne como um banco para ajudar os países da América Latina, incluindo o Brasil, seus Estados e municípios.
Tebet relatou que houve uma demanda por um empréstimo de US$ 1 bilhão para a Argentina por um período de dez dias, pedido que foi votado por 21 países. “Minha secretária, por minha determinação, foi autorizada a votar favoravelmente, como 20 de 21 países votaram favoravelmente. Todos os países que fazem parte do CAF, esse banco que não é nosso, não tem dinheiro federal, e foi aprovado (o pedido de empréstimo)”, afirmou.
E há outro “detalhe” muito importante, a questão do timing. Em nota, o Palácio do Planalto afirmou que “a Argentina apresentou o pedido de empréstimo-ponte à instituição financeira, que por sua vez convocou os países acionistas do banco para apreciar o pedido em julho de 2023”. As primárias argentinas que consolidaram o extremista Javier Milei como um dos favoritos à eleição presidencial do país foram realizadas depois, em 14 de agosto, o que contaria a ilação que fundamenta o texto do Estadão.
Em seu site, o CAF (cuja sigla remete ao seu nome de fundação, Corporação Andina de Fomento) apontava em 28 de julho para a aprovação do empréstimo, como se vê aqui. Aliás, o Estadão Conteúdo, agência de notícias do jornal, publicou em 31 de julho declaração do ministro da Economia e presidenciável Sergio Massa sobre o tema. “Em pronunciamento nesta manhã, Massa explicou que o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF, na sigla em inglês) acertou um empréstimo de US$ 1 bilhão à Argentina, com o aval de 20 das 21 nações que compõem a instituição. O restante será pago com yuans liberados por meio de uma operação de swap cambial com o Banco do Povo da China (PBoC), segundo o ministro”, dizia o texto.
Como se sabe, Lula não tem em sua equipe o doutor Emmett Brown, de De Volta para o Futuro, e não teria por que pedir à ministra que ajudasse a fechar uma negociação que já estava fechada. Diante disso, outras ilações no texto como “Planalto tem feito tudo para dar uma força ao ministro da Economia” (tudo o que?) e “Lula decidiu partir para o ‘tudo ou nada’” (?) só reforçam o caráter burlesco da peça.
Insistência
O jornal não publicou erratas ou corrigiu informações, sendo reproduzido por outros veículos da mídia tradicional brasileira que tiveram falta de cuidado similar. Serviu ainda de material de propaganda do próprio Milei, que repostou no Twitter o texto do Estadão. A postagem do presidenciável virou “notícia” no diário paulistano.
É sabido que boa parte das matérias mal feitas ou mesmo não-notícias e desinformações divulgadas pela mídia tradicional, além de causar danos por si, acabam se tornando matéria-prima de outras inúmeras fake news. Esta, por exemplo, dialoga com as alegações da extrema direita de que governos petistas investem dinheiro do Brasil em países alinhados ideologicamente. E quando a matéria sequer explica o que é o CAF, o caminho para isto está sedimentado.
Trata-se, como diz o site da instituição, de “um banco de desenvolvimento fundado em 1970 e formado por 19 países – 17 da América Latina e o Caribe, Espanha e Portugal- assim como por 14 bancos privados da região”. Segundo apresentação a investidores de agosto deste ano, o Brasil tem 8,6% do capital subscrito, quarto maior, atrás da própria Argentina, que detém 12,6%.
Portanto, informações de que se trata de “dinheiro brasileiro” ou que há risco de calote não são verdadeiras, até porque a Argentina já pagou o empréstimo. O Brasil também é beneficiário de recursos do banco. Em setembro, foram aprovadas duas operações, somando US$ 650 milhões. Uma com o BNDES, uma linha de crédito de até US$ 500 milhões para clientes que desejem investir em projetos relacionados às áreas de “integração e transformação energética, desenvolvimento verde, reativação econômica e inclusão financeira, incluindo aqueles que visam a geração de energia renovável (solar, eólica e hidrogênio verde)”, entre outras. A segunda, avaliada em US$ 150 milhões, destinada para assegurar o financiamento para a construção da ponte entre Salvador e a ilha de Itaparica, na Bahia.
Outros US$ 340 milhões foram aprovados pelo banco anteriormente para a expansão da Linha Verde 2 do Metrô de São Paulo, que conectará o sistema ao aeroporto de Congonhas.
O historiador Carlos Andrés Brando, em artigo publicado em 2020, explicou um dos diferenciais da instituição, que tem se tornado mais atrativa para países da região. De acordo com ele, “os empréstimos da CAF são concedidos sem vínculos, ou seja, sem condições. Isso não acontece com uma grande parte dos recursos de seus concorrentes”. Em resumo, o que o banco quer é receber o dinheiro emprestado sem estabelecer condições como outras instituições multilaterais que, em geral, impõem a adesão a políticas relacionadas ao livre mercado e à redução do Estado.
A desinformação aliada à falta de informação de aspectos importantes de uma notícia formam um caldo terrível. O Brasil já pagou um preço caro e não convém prejudicar também os vizinhos com os vícios de nossa mídia. Até hoje os veículos não fizeram a autocrítica que tanto pedem a terceiros sobre sua responsabilidade acerca do mergulho no obscurantismo político vivido pelo país e a realidade mostra o quanto isso faz falta.
—