Casa de Passagem Indígena em Florianópolis: ‘tem tudo para sair do papel esse ano’. Por Vitória Ricardo

Com Hyral Moreira na coordenação da Funai Litoral Sul-SC se renovam as expectativas de negociação com a prefeitura para construção da Casa de Passagem

Instalações são precárias no antigo Terminal de Integração do Saco dos Limões
Foto: Rodrigo Barbosa

Reportagem de Vitória Ricardo, para Desacato.info

Muitas incertezas e interesses ainda atravessam o projeto de construção da Casa de Passagem Indígena em Florianópolis. Essa é uma luta que se arrasta há mais de 20 anos em busca de garantir a construção de um abrigo digno para os indígenas que passam por Florianópolis ao longo do ano. São cerca de 300 famílias que se deslocam do oeste catarinense, do Paraná e também do Rio Grande do Sul para comercializar seus artesanatos, principalmente na alta temporada.

Desde 2016, é o antigo Terminal de Integração do Saco dos Limões, o Tisac, que serve como abrigo provisório enquanto a prefeitura de Florianópolis não cumpre o termo de acordo firmado com a União e o Ministério Público Federal ainda em 2018. O compromisso era de entregar a Casa de Passagem definitiva em 2019, em terreno cedido pela União ao lado do Tisac.

No entanto, a demanda vem enfrentando uma série de impasses. Entre eles, a situação de abandono por parte da prefeitura, que não presta os serviços de manutenção e melhorias nas instalações do abrigo provisório e se coloca contrária à construção da Casa de Passagem no local; e também a falta de apoio da própria Funai de Santa Catarina nos últimos anos.

Apesar de tantos desafios, uma mudança importante nos serviços de proteção indígena vem gerando perspectivas mais positivas sobre o andamento do processo. Nesta segunda-feira, dia 24 de abril, ocorreu a cerimônia de posse da nova diretoria da Coordenação Regional Litoral Sul-SC da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). O cacique Hyral Moreira, da Aldeia Guarani Yynn Moroti Wherá, em Biguaçu, é quem assume como novo coordenador da entidade. A nomeação foi publicada no Diário Oficial da União da Funai no dia 3 de abril.

De acordo com o antropólogo Pique Weitcha, integrante da Comissão de Lideranças Indígenas da Casa de Passagem, essa mudança representa uma renovação de esperanças para que o projeto se torne realidade.

“A Funai anterior não nos ajudava e não nos correspondia, ela era contrária à permanência indígena na ilha de Florianópolis, como se isso não fosse terra indígena. O Ministério Público Federal e Ministério dos Povos Indígenas eram as únicas instituições trabalhando a favor dos indígenas, mas agora temos o reforço da Funai. Com o Hyral acredito que teremos grandes triunfos daqui pra frente”, anseia Pique.

‘Sentença de juiz não se discute, se cumpre’, afirma novo diretor da Funai

Foto: Hyral tomou posse em cerimônia realizada na Aldeia Yynn Moroti Wherá, em Biguaçu
Foto: Divulgação Funai .

O novo coordenador da Funai, Hyral Moreira, de 45 anos, relata que, desde a nomeação, vem estudando e avaliando todas demandas pendentes na entidade em prol da proteção dos povos indígenas. “Nos últimos dias estou me inteirando de todas as demandas para ficar a par de toda a situação. Na outra gestão, a Funai se eximiu das responsabilidades, mas já estamos agendando reuniões com o MPF para resolver esse problema que está se arrastando há algum tempo e reverter a situação”, anuncia Hyral.

Ele, que é o primeiro advogado guarani de Santa Catarina, antecipa alguns detalhes sobre as primeiras ações previstas para que o processo tome rumos mais concretos. “Existe uma decisão judicial, então a ideia é executar o que o juiz determinou, a reforma, as melhorias no Tisac, tudo o que está previsto lá. Também vamos conversar com o Município e dizer o que precisa ser cumprido, porque sentença de juiz não se discute, se cumpre. Depois, vamos sentar com as lideranças indígenas e outras coordenações da Funai em Santa Catarina para definir exatamente como vai se dar essa situação”, prevê o coordenador da Funai em Florianópolis.

‘Temos um cenário mais favorável agora’

Hyral também avalia que a criação do Ministério dos Povos Indígenas deve facilitar a atuação da Funai e fortalecer a luta pela causa indígena em todo o Brasil. “A Funai não é mais subordinada ao Ministério da Justiça, e sim ao Ministério dos Povos Indígenas. Então algumas atribuições que a Funai não podia fazer, talvez agora como o MPI ela consiga fazer. Estamos literalmente construindo um modelo de atendimento aos povos indígenas, temos um cenário mais favorável agora. Esse é o momento de a gente demandar algumas questões que não eram possíveis antes”, observa.

Ele aproveita para esclarecer suas intenções ao assumir uma entidade tão importante para a causa indígena em Santa Catarina. “Quando coloquei meu nome à disposição, era justamente para atuar dentro dos limites da competência e da legalidade da Funai e dar a melhor assistência aos indígenas, minha intenção é atender da melhor forma possível. Eu vim com essa missão”, afirma Hyral Moreira.

‘Existem resquícios indígenas naquela região’

Nesta incansável luta pela Casa de Passagem Indígena em Florianópolis, o antropólogo Pique Weitcha precisa, mais uma vez, recorrer às questões históricas. Ainda é necessário repetir que eram os povos originários que ocupavam o território brasileiro muito antes da chegada dos europeus. E Pique traz um detalhe ainda mais específico sobre a região de Santa Catarina, justificando que se trata de reconquistar um território, originalmente, indígena.

“Ali na Prainha, na volta ao morro perto do túnel, existem sítios arqueológicos indígenas, próximo justamente à Casa de Passagem. Então existem resquícios indígenas naquela região”, conta. Ele explica, ainda, que a região litorânea de Santa Catarina era um importante trecho de passagem de famílias das etnias Kaingang, Xokleng e, predominantemente, Guarani. “A cultura açoriana foi muito influenciada pelos Guarani. Eles vieram depois ocupar esse espaço e se adaptaram à pesca da tainha a partir de ensinamentos dos indígenas que faziam a pesca da baleia. Os indígenas que faziam isso com as canoas de garapuvu”, esclarece o antropólogo.

Para Pique, que é membro da Comissão de Lideranças Indígenas da Casa de Passagem, essa realidade reflete uma luta antiga: garantir que as famílias que vêm de longe tenham um espaço próprio, para se abrigar, produzir seus artesanatos e cultuar suas crenças. Ele reconhece que ainda há um caminho longo de enfrentamento, mas deixa evidente as expectativas positivas. “Eu acho que agora vai funcionar, talvez não a passos largos, mas não vai retroceder tanto quanto já retrocedeu, porque essa luta se faz a mais de 20 anos. De dois anos pra cá ganhamos mais apoio, e queremos juntar ainda mais lideranças para apoiar essa causa. Tem tudo para esse ano sair do papel a Casa de Passagem”, declara Pique.

Tisac é abrigo provisório de famílias indígenas que se deslocam de todo Sul do Brasil
Foto: Rodrigo Barbosa

Histórico de disputa e especulação imobiliária

Durante conversa com a reportagem, Pique Weitcha, indígena Laklãnõ/Xokleng, também relembrou os últimos impasses enfrentados no processo de liberação da construção. Ele relata que em audiência de conciliação na Justiça Federal, realizada no dia 9 de agosto de 2022, a prefeitura de Florianópolis indicou que haveria um imóvel da Funai no município à disposição para ser a nova Casa de Passagem Indígena. Porém, após a audiência, verificou-se a ilegalidade da oferta.

“Esse prédio mencionado foi cedido pra construir a sede da Funai, e não poderia ser utilizado para outros fins. A Funai na época teve a ousadia de apresentar esse prédio pra construir a Casa de Passagem, quando na verdade não poderia. Foi uma estratégia que eles tiveram pra tardar ainda mais o processo”, relata o antropólogo.

Além disso, a prefeitura não executou no local as melhorias cobradas pelo MPF, tampouco incluiu na revisão do Plano Diretor do Município a alteração de zoneamento que permita em definitivo a construção da Casa de Passagem ao lado do Tisac. Diante dessa sequência de ações maliciosas, em novembro de 2022, a Justiça Federal condenou o Município de Florianópolis e a Funai por litigância de má-fé em relação ao processo da Casa de Passagem. A decisão estabeleceu multa de R$ 100 mil, que deve ser revertida para melhorias na área do Tisac ou para aquisição de alimentos para as famílias indígenas que atualmente ocupam o local.

“A prefeitura aceitou um acordo de manutenção em relação a encanamentos, chuveiros, banheiros químicos, limpeza do espaço, mas na maioria das vezes eles não fazem. De certa forma a prefeitura não está mais negociando nem com a própria Justiça Federal, porque eles esperam vir as multas para fazer algum serviço. Então há uma falta de respeito e compromisso com as comunidades indígenas e também com a ordem judicial”, expõe Pique.

Terreno sob o olhar de grandes empresas

De acordo com Pique Weitcha, que acompanha a situação da Casa de Passagem há pelo menos dois anos, existe nos bastidores uma disputa intensa pelo terreno, que foi cedido pela União para construção de obras públicas. Mesmo com a finalidade prevista em lei, empresas do setor privado têm demonstrado interesse pelo espaço. “Na época, foi o prefeito Gean Loureiro assinou a liminar de construção da Casa de Passagem sob pressão de lideranças indígenas e do MPF. A gente sabe que, por trás de todo esse processo contrário em que a prefeitura atua, há uma questão das grandes empresas imobiliárias que têm interesse naquele local da Baia Sul. Existe um projeto para aquilo ali ser como a Beira Mar Norte”, revela o antropólogo.

Ele explica que o terreno se trata, na verdade, de um aterro, feito exclusivamente para receber obras públicas e que totaliza 1,5 milhão de metros quadrados. “Então estamos brigando por um aterro, nem é uma terra. Porém, há o olhar de grandes empresas imobiliárias que estão tentando confiscar esse espaço”, lamenta. Sabe-se, no entanto, que terras da União não podem ser cedidas para o setor privado. Por isso, já é possível prever a irregularidade caso o terreno não seja destinado para seu fim de origem. “Se a Casa de Passagem não for construída e a prefeitura tentar lotear, eles vão ser barrados pela Justiça Federal”, pontua Pique Weitcha.

Vitória Ricardo é jornalista, graduada pela Universidade de Caxias do Sul.

 

 

 

 

 

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