Cartilha da Prefeitura de SP orienta como procurar parentes ou amigos desaparecidos

Em média 700 pessoas são anualmente enterradas na cidade de São Paulo sem o conhecimento dos familiares. Falta de cruzamento de dados é apontada como uma das principais causas

Por Luciano Velleda para a RBA. 

São Paulo – Cerca de cinco mil pessoas desaparecem anualmente na cidade de São Paulo e 700 são enterradas como “não reclamadas” – termo utilizado para definir pessoas sepultadas sem identificação ou mesmo identificadas, mas cujas famílias não apareceram dentro do prazo de até 72 horas para buscar o corpo.

Para tentar alterar essa realidade, a gestão Haddad lançou no último dia 16 a “Cartilha de Enfrentamento ao Desaparecimento – Orientações e direitos na busca de uma pessoa desaparecida”, resultado de um trabalho desenvolvido há um ano e que reuniu diversas secretarias e órgãos da prefeitura.

Segundo Carla Borges, coordenadora de Direito à Memória e à Verdade da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), há lacunas administrativas e burocráticas desde a época da ditadura vigentes ainda hoje e que permitem o alto número de enterros de pessoas “não reclamadas”. Como exemplo, ela cita o sepultamento de alguém nessa condição mesmo havendo registro de uma família procurando um desaparecido com características semelhantes. “Não é feito o cruzamento na base de dados da própria Secretaria de Segurança Pública. O familiar pode, num dia, fazer o registro de desaparecimento e dali a três dias essa mesma pessoa, com as mesmas características dá entrada no IML e não é feito esse cruzamento com o boletim de ocorrência”, afirma Carla. “São 700 famílias que deixam de encontrar e saber o paradeiro final do seu ente querido.”

O diagnóstico é que a situação poderia ser bem diferente se houvesse a interligação de informações entre as delegacias da Polícia Civil, Institutos Médicos Legais (IMLs), Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (Svoc) e registro de desaparecimentos.

Com o objetivo de oferecer orientações aos familiares ou amigos em busca de uma pessoa desaparecida, a cartilha propõe um caminho passo-a-passo para ser seguido, incluindo direitos que o cidadão tem durante a busca e uma lista de contatos de entidades que podem prestar auxílio. “Há questões que são mais urgentes e as pessoas precisam percorrer no primeiro momento”, explica Carla Borges, citando como exemplo o esgotamento da possibilidade de morte em função do prazo de 72 horas para o corpo não reclamado ser enterrado. “Existe uma ausência de orientação do que fazer nesse momento. A cartilha tenta dar esse amparo e orientar as pessoas, pois muitos acreditam que basta fazer um boletim de ocorrência e já é suficiente para que as buscas iniciem.”

O material terá uma tiragem inicial de dois mil exemplares que estarão disponíveis nos endereços do Instituto Médico Legal, no Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) e postos da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS).

Carla Borges destaca que a falta de conhecimento dos caminhos da busca costuma ser acompanhada pela falta de conhecimento dos direitos que a pessoa tem quando está procurando alguém. “Não é raro chegar numa delegacia de polícia e ouvir o policial dizer ‘espera mais 24 horas, seu filho deve aparecer’, e a cada 24 horas diminui a chance de localização. Poucas pessoas sabem que têm o direito de registrar o boletim de ocorrência imediatamente”, explica. “São lacunas que não são complicadas de resolver e dependem mais de uma articulação institucional das entidades que lidam com essa situação. Quanto mais formos capazes de atuar em rede, maiores são as chances de identificar essas pessoas.”

Ao contrário de outras cidades do país, em São Paulo todos os sepultamentos são feitos pelo serviço funerário da prefeitura e em torno de 90% dos enterros ocorrem em cemitérios municipais. Diante dessa peculiaridade, a coordenadora de Direito à Memória e à Verdade explica que o trabalho começa “dentro de casa”, nas instâncias ao alcance da prefeitura, reunindo SMADS, SMDHC e Secretaria de Saúde. “Se organizarmos essa rede e tivermos um sistema que consiga registrar a entradas de todos os usuários nos serviços da prefeitura, mais fácil fica a localização dessa pessoa.”

Continuidade

Apesar da troca nos próximos dias do comando da prefeitura de São Paulo, Carla Borges acredita que essa mudança não deve afetar muito o trabalho feito até aqui, embora ressalte que o empenho poderá ser maior ou menor conforme a prioridade que será dada pela gestão Doria. “Esse assunto foi bastante enraizado. É um grupo de trabalho sobre desaparecidos, que atua de modo informal, em que muitos são servidores de carreiras e estão sensibilizados para o tema. Não acho que será interrompido, mas é evidente que depende de como esse tema será uma prioridade política da próxima gestão. Vejo a cartilha como o embrião de uma política municipal de enfrentamento ao desaparecimento de pessoas. É o primeiro passo.”

No processo de elaboração da cartilha, etapas que a família precisava percorrer na busca de seu parente foram simplificadas. Uma significativa mudança efetuada é que agora não é mais necessário percorrer todos os hospitais municipais à procura de alguém desaparecido, basta ligar para o número 156 e fazer o registro, com nome e características da pessoa procurada. “Automaticamente ela começará a ser procurada nos hospitais e nas instâncias da assistência social”, afirma Carla Borges. “Tem muita coisa que está ao alcance do município se isso for uma prioridade, então é preciso cobrar da próxima gestão que o trabalho tenha continuidade.”

Durante o lançamento da cartilha, a Promotora de Justiça Eliana Vendramini, coordenadora do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (PLID), do Ministério Público do Estado de São Paulo, enalteceu a iniciativa e disse que não teria tido a capacidade de articulação demonstrada pela prefeitura ao dialogar com os diversos órgãos envolvidos com o problema, municipais e estaduais. “Essa cartilha é um grande passo. Ouso dizer que é preciso entender o desaparecimento como um problema público, nosso, ainda que não tenhamos na nossa vida privada”, afirmou Eliana.

A promotora ressaltou que a alteração do atendimento do 156 é um exemplo de que é possível atuar com políticas públicas no enfrentamento do desaparecimento de pessoas. “Somos a prova de que é possível haver um grande banco de dados. Não será por problemas políticos ou de orçamento”, disse. Para ela, o Ministério Público também precisa fazer o diagnóstico das prioridades e “fazer disso uma luta institucional”.

 

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