Querido Mamoudou,
Espero que esta carta te encontre bem.
Diz aos teus colegas que nós, imigrantes, levamos na mala apenas amor. É o amor à vida, à esperança, às possibilidades que nos leva a abandonar tudo e a enfrentar muros, grades e cancelas para entrar em outros países.
É o amor que nos faz limpar o chão e carregar blocos, pondo em risco a nossa própria saúde. E é o amor também que te move e que te levou até Paris.
Imagino o teu desespero ao deparares-te com o cenário: uma criança de apenas quatro anos pendurada de uma varanda e uma multidão de espectadores. Certamente alguém terá ligado aos Bombeiros, à Polícia, enfim, a alguém! É assim nos países onde as coisas funcionam: não precisamos de nos mexer muito, porque sempre vem alguém!
E afinal esse alguém foste tu! Quem diria!
Saíste do Mali ainda adolescente e de lá, ao teu passo, numa saga perigosa, quatro anos depois chegaste a França.
Gosto de pensar que, ao veres aquela criança pensaste “Eu não passei por tudo para ver uma criança a morrer assim!” e graças a ti, ela sobreviveu.
Mamoudou, a tua coragem e altruísmo são inspiradores. Mas temo por aquilo que possam fazer de ti.
Embora reconheça e aplauda o teu acto heróico, não posso deixar de reconhecer também as teias de poder que te levaram até França, e fizeram de ti um cidadão de segunda-categoria.
O teu anonimato anterior ao episódio viral só evidencia o racismo estrutural em que há na França, onde um jovem imigrante não consegue um emprego digno até demonstrar qualidades super-humanas. Onde a cidadania é reservada apenas aos imigrantes que provarem de forma extraordinária que a merecem. Onde um imigrante africano apenas é digno de aplausos e respeito quando arrisca a sua própria vida para salvar um bebê, mas não quando arrisca a sua própria vida para salvar-se a si mesmo.
A narrativa actual que limita os imigrantes a ladrões, preguiçosos, bandidos é tóxica e racista. A narrativa actual que legitima a xenofobia… É só olharmos para o Brexit, para as políticas de migração na era Trump e para todos os muros que se fazem para impedir-nos de chegar ao Ocidente.
A narrativa que nos divide entre os bons e os maus imigrantes. E como tu Mamoudou, passaste para o lado dos bons. Tu agora já nem sequer és imigrante, és um cidadão francês. Tu agora falas com Presidentes.
Mas cuidado, não deixes que te usem como ferramenta para justificar os seus preconceitos, a sua afrofobia, porque nenhum ser humano, nenhum africano precisa de ser herói para ser bem tratado e ter o seu valor reconhecido.
Tu atravessaste perigos e oceanos, traficantes e ladrões e finalmente chegaste a França. Sem documentos e contando apenas com a generosidade daqueles que, como tu, se alimentavam apenas dos seus sonhos, vivias nos apertados arredores de Paris e aceitavas os poucos (e precários) trabalhos a que tinhas acesso.
Por isso não aceites a hipocrisia e cinismo de quem hoje te acolhe de braços abertos, contudo, aprova políticas repressivas contra imigrantes e especialmente contra imigrantes sem documentos.
Quando vemos um jovem imigrante como tu, muitas vezes é a matar ou a morrer, nunca a salvar ou a nascer.
Quando vemos um jovem imigrante como tu, muitas vezes vemos essa força física exibida de forma selvagem, como um defeito e tu mostraste que essa força física é na verdade um sinal de excelência e fonte de bravura.
Quantas vezes a força física dos corpos negros não foi usada para justificar a nossa exploração? Para deslegitimar as nossas conquistas?
Poucos de nós teríamos conseguido fazer o que fizeste. Poucos, mesmo que conseguíssem, talvez nem o tentassem. Por isso, parabéns!
Tu nos representaste na nossa forma mais nobre, delicada e ao mesmo tempo veloz e forte. Obrigada!
Espero que, na plataforma que agora tens, encontres um espaço para que a tua voz seja ouvida e para que outras vozes, que durante muito tempo foram silenciadas, possam também usá-la para que a sua humanidade seja reconhecida.
Com os melhores cumprimentos e um forte abraço,
Eliana N’Zualo