Por Fernando Evangelista.
Fotos: Juliana Kroeger.
Oi, meu nome é Amélie, sou filha da Fiona e do Pedro. Vim ao mundo no dia 20 de janeiro do ano da Graça de 2012. Tenho oito irmãos, todos da mesma idade. Eu fui a sétima a nascer.
Fiona é uma supermãe e o meu pai, bom, meu pai é uma incógnita. Na verdade, eu nem o conheço. Minha mãe vive nos dizendo, entre uma mamada e outra, que ele é “uma criatura honrada e bondosa”. Meus irmãos são testemunhas.
Porém, eu e o Manolo, meu irmão gorducho, ouvimos mamãe falar para a nossa vizinha, entre latidos e lamentos uivados, coisas incompreensíveis do tipo: “o Pedro não pode ver um rabo de fêmea, é um boêmio incorrigível, um cadelengo”. A gente ficou meio sem saber se isso era elogio ou ofensa. Um dia eu descubro. Vamos em frente…
De modo geral, estou gostando desta vida. Fora o calor, o vermífugo, um cercado maldito que impede meu sacrossanto direito de ir e vir, fora meus oito irmãos selvagens que parecem nunca terem visto um prato de comida ou um pote de água, fora o perfume de xixi do ambiente, eu estou gostando.
Eu moro com dois Zumanos, pais adotivos da mamãe, figuras queridas e atenciosas, apesar de serem, como poderei explicar, um tanto… estranhos. São verticalmente alongados, possuem focinhos atrofiados, bocas pequenas em comparação ao resto do corpo, andam como os pinguins (com duas patas) e não têm lá uma audição das mais apuradas, pelo menos para os padrões caninos.
Olha, não quero parecer uma fêmea precoce e pentelha, metida a Lessie, mas a verdade é que os Zumanos têm sérias dificuldades de comunicação. Nós conseguimos entendê-los bem e os mais sensíveis deles conseguem nos entender, mas entre eles o negócio me parece bem complicado. Um diz uma coisa, o outro entende de outro jeito e já viu, né? Comigo e com a minha família isso nunca acontece.
Os Zumanos são incompreensíveis. Eles raramente brincam, pelo menos eu não os vejo por aí, de pança pra cima, roendo um osso, meditando sobre as coisas do universo. Existe coisa mais importante e séria do que pensar na vida, dormir, comer e brincar?
Apesar da pouca idade, também tenho minhas dores. Meus irmãos, descobri dia desses, vão se mudar – eles foram doados. Eu vou ficar com a mamãe e, em dois meses, depois de todas as vacinas, poderei brincar no gramadão e mergulhar na lagoa. Serei livre, finalmente.
Minha mãe é uma guerreira, modéstia à parte. Mesmo cansada, ela alimenta toda a turma e limpa cada uma das nossas sujeiras. Além de dar banho de língua na gente todo santo dia, da pontinha da pata até o último fio do topete, sem esquecer nenhum filho, ela não deixa o nosso cocô dando sopa pra mosca – ela come tudo. Come para não deixar rastro para os predadores – os entendidos chamam isso de instinto de sobrevivência.
Mamãe emagreceu a olhos vistos de forma incrivelmente rápida. Tá com os peitos bem caídos, coitadinha. Perdeu o desenho dos quadris, ficou uma vareta, como essas modelos Zumanas. Hora dos meus irmãos seguiram seus caminhos porque, senão, mamãe vai definhar.
“Estou ótima”, ela nos diz, sem muita convicção. Além da amamentação, eu desconfio que essa magreza súbita seja resultado do famoso “mal de amor”. Aquele olhar doce e nostálgico, bem no fundo, é saudade do meu pai, o ausente. Se o destino existe, torço para que os dois fiquem juntos. Talvez eu seja uma romântica à moda antiga, daquelas que esperam ossos e serenatas. Você pode até achar que sou uma boba. Mas eu não sou.
Romântica, sim, boba, não, por favor. Sou mais do que um rostinho bonito. Sei muito bem o que quero e o que não quero. Primeiro, não quero ver subestimada a minha inteligência, visivelmente acima da média. Da mesma forma, não quero que achem que sou adivinha. Se explicar bem, com amor e paciência, eu entendo e aprendo.
Aprendo rápido, só não aceito violência ou castigo, coisas Zumanas totalmente inúteis. Aliás, mamãe disse que precisamos lutar pelos nossos direitos. Ela nos falou sobre aquela lei que proíbe maus-tratos e quem desrespeitá-la pode ficar de três meses a um ano na cadeia. Muito pouco tempo, você vai concordar comigo, mas é melhor do que nada.
Boba? Não, eu sei o que quero. Na educação, o que funciona são as recompensas. Se faço uma coisa certa, ganho carinho e petisco. Carinho é importante na vida da gente – os Zumanos parecem ter se esquecido disso e ai ficam assim, fingindo alegria e confiança, porém, no fundo, são solitários e carentes. Pelo menos foi isso que ouvi alguém dizer, não lembro se mamãe ou nossa vizinha.
Boba? Não, eu sei o que quero. Quero um terreno muito grande para brincar, mas não para ficar sozinha. Terreno é parque de diversão, não orfanato. Porque eu gosto muito de companhia, de correr atrás da bolinha, de procurar tesouros escondidos. Adoro nadar em rios, mas se não tiver, serve uma lagoa. Se não tiver lagoa, pode ser um mangue ou uma piscina. Se não tiver mangue nem piscina, uma poça tá valendo.
Em resumo, eu gosto de comer, brincar e amar – quase como título daquele filme. Sou Amélie, em homenagem a Amélie Poulain, mas em algumas coisas pareço mesmo com a Julia Robert, decidida e poderosa.
Boba? Não, eu simplesmente sei o quanto a vida é curta e, por isso, não me perco do essencial. Vixe, estou divagando… esta carta era mesmo só para dar um oi, pra dizer que você pode contar comigo, em qualquer momento e circunstância. Serei uma amiga presente, carinhosa e leal. Tá bom, eu sei, isso é caninamente redundante.
Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada todas as terças-feiras.