Carta aos novos intelectuais

Minha mãe deveria estar orgulhosa. Mas não. Ela está com medo.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Por Felipe Paiva.

Minha mãe queria ser jornalista, escritora. Sonhava quando menina com a pena e o papel. Não teve a oportunidade. Os livros eram caros demais. “Sabe por que os livros custam tanto? Porque eles nos querem ignorantes.” Foi mais ou menos isso que ela me disse quando eu tinha uns 11 ou 12 anos. Ela comprava, sempre que podia, alguma edição de bolso para mim. Ainda que fosse garoto entendi quem eram eles. Os donos do poder.

A única leitura que ela conhece é a Bíblia, pedra fundamental de uma fé devota e aberta. Já seu filho, ateu convicto, avolumou às leituras da infância – aqueles livros de bolso baratos com traduções duvidosas – uma série de títulos e mais títulos que compuseram sua formação. Três diplomas: graduação, mestrado e doutorado. Professor e historiador, por isso mesmo um “camundongo roedor de papiros”, como diria Nikos Kazantizakis em uma passagem de sua obra. De vez em quando me aventuro eu mesmo a escrever. Em uma parca produção lá se foram mais ou menos uma dúzia de artigos, ensaios, capítulos de livros, além de um livro próprio. Minha mãe deveria estar orgulhosa. Mas não. Ela está com medo.

Dias atrás ela me interpelou muito preocupada, disse algo assim: “Meu filho, você está vendo o que está acontecendo? Essa coisa toda de volta da ditadura. Gente morrendo. Mataram um senhor aqui perto, na Bahia. Capoeirista parece. Eu fico com medo por você. Se alguém entrar no seu quarto e vir o que tem lá dentro?” Em resposta, faço um discurso amenizando a situação. Falando meias-verdades tranquilizadoras: “Não é bem assim”.

O que guardo em meu quarto de tão perigoso? Livros. Estantes cheias deles. Homens e mulheres me observando de suas prateleiras, a maioria já mortos. Comprei a maior parte desses olhares com as bolsas que somei ao longo da minha formação.

Que lição, exatamente, podemos tirar dessa historieta? Nenhuma. Porque insistimos em não aprender com a história. Essa pequena crônica pessoal é sintoma de uma sociedade doente, profundamente equivocada em seus fundamentos. Talvez a biblioteca não seja o nosso lugar, afinal. Há tanto a ser dito que só essa pequena crônica cotidiana bastaria. É brutal o suficiente para que eu decidisse compartilhá-la, porque nosso cotidiano verteu-se em teatro absurdo.

Quando 1964 aconteceu nós tínhamos uma casta de intelectuais diminuta, mas bem estabelecida. Com o correr da ditadura civil-militar (1964-1985) algumas das nossas melhores mentes trabalharam: Ruy Mauro Marini, Chico Buarque, Marilena Chauí, Carlos Nelson Coutinho, Alfredo Bosi, Luiz Felipe de Alencastro, e por aí vai, numa lista interminável. Eles abrilhantaram nossa vida intelectual em tempos de penumbra. Fizeram, em graus e formas diferentes, oposição ao regime.

Nós nos avizinhamos, agora, de um momento autoritário. É preciso recusar qualquer ilusão. Nossa esquerda legalista está no limite da atuação. Esse engajamento, cioso do Estado de direito é um paradoxo em si, pois a ordem constitucional já não existe. A ruptura definitiva vai acontecer, não nos enganemos. Seja nas urnas ou fora dela. Por isso mesmo esse tempo de distensão precisará de nós, caravana de pioneiros.

Assistimos nos últimos anos a um processo notável de expansão da malha universitária do país. É desnecessário citar números. Diuturnamente algum filho de pedreiro virava doutor. A universidade, hoje, é um espaço infinitamente mais plural do que era entre 1964 e 1985. Seja em termos de classe, gênero, raça ou região.

Impulsionado por essa inclusão, pudemos ver o crescimento quase miraculoso de áreas até então desconsideradas pela nossa inteligência. Dando o exemplo da minha própria área de atuação: os estudos sobre a diáspora africana e a história da África explodiram em euforia. Em poucos anos saímos de um ambiente rarefeito de especialistas para uma quantidade pelo menos tranquilizadora de bons trabalhos. O mesmo aconteceu com outras áreas-irmãs: núcleos dedicados à cultura indígena, sertaneja, à mulher, aos LGBT, aos imigrantes. E assim por diante. Como se diz no jargão do historiador: nunca estivemos tão perto de contar a história de baixo para cima. Não só por quem era alvo da pesquisa, mas principalmente por quem pesquisava.

Se antes a maior parte da nossa aguerrida intelectualidade progressista advinha de algum segmento nobre, com duas, três, quatro gerações de letrados em que se apoiar, hoje nós somos os primeiros. Em muitos casos os únicos. Por isso mesmo nós não temos o direito de errar. Nós não vamos vacilar.

O projeto para a educação proposto pelos candidatos militares é, no mínimo, desastroso. Jair Bolsonaro já chegou a falar em “educação à distância a partir do ensino fundamental”. Um dos seus filhos afirmou querer privatizar a universidade pública, em total coerência com o projeto privatista irresponsável do guru econômico do nosso novo autoritarismo: Paulo Guedes.

A política universitária tem seus limites, mas a covardia não pode ser o seu mote. Pelas nossas trajetórias temos obrigação moral de canalizar as energias dos nossos núcleos de pesquisa, associações e laboratórios para nos colocar contra um projeto que visa, literalmente, desfazer o pouco que foi conquistado. É preciso criar uma rede entre nossas associações diretamente ligadas ao público afetado pela incitação ao ódio dos candidatos do fascismo.

Não podemos fugir da nossa responsabilidade institucional, a menos que queiramos reconhecer que tudo não passa de um teatro da hipocrisia. Não há nada mais fácil do que citar um autor subversivo em uma tese doutoral. A nossa autocomplacência tem limite. Não basta estudar os grupos minoritários e se calar quando eles são, para variar, o alvo. Pior, quando somos nós mesmos, enquanto indivíduos, membros desses grupos. A prática continua sendo o critério da verdade.

Convido, portanto, você, o primeiro doutor da sua gente, a ser irredutível, a colaborar, firmar laços com os demais. Incitar seu núcleo, laboratório, associação. Publicar. Marquemos posição. Por nós e pelos que ainda não terminaram ou nem iniciaram suas formações. Pelos que vão encarar um ambiente ainda mais hostil pela falta de recursos e financiamentos.

Essa posição é perigosa, pois não teremos Paris para nos exilar. Não teremos um parente importante para interceder por nós. Por isso mesmo ela exige ainda mais coragem. Mas isso nós temos. Aprendemos com nossas mães.

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