Caros professores e estudantes membros do colegiado de curso de psicologia,
Escrevo-lhes em face da significativa decisão que tomarão hoje – da criação de uma empresa júnior neste curso. Esta não é uma decisão ordinária, sei bem. Por isso lhes proponho com esta carta uma contribuição.
Me apresento: sou psicólogo, formado neste curso em 2011, e mestre em História formado ainda este ano no programa de Pós-graduação em História deste mesmo centro. Hoje ocupo o cargo de psicólogo educacional, na carreira de técnico-administrativo em educação, nesta universidade, e desde o Colégio de Aplicação contribuo com a supervisão local de estagiários da ênfase de Psicologia Escolar e Educacional. Durante minha trajetória na graduação estive longamente envolvido com o debate sobre a criação da empresa júnior.
Foram em larga medida meus colegas de classe, pelos quais tenho até hoje muito apreço, que propuseram oficialmente esta iniciativa nos idos de 2008 e 2009. Naquele momento, membro do Centro Acadêmico Livre de Psicologia – CALPSI, muitas foram as dificuldades para nós ao tomar uma posição sobre o tema e, diante de todas elas, pesava o fato da proposta ter sido aventada por nossos colegas e amigos. Mesmo assim decidimos por tomar uma posição deslocada de nossos afetos particulares – éramos contrários à criação da EJ. Em 2011, pude estar presente na reunião do Conselho de Unidade do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, quando Allan Seki lia seu parecer de vistas e propunha a negativa à EJ.
Enfim, este foi um tema com qual aprendemos intensamente e pelo qual resolvi por enveredar nos estudos de pós-graduação. Em abril deste ano defendi minha dissertação intitulada “Sobre o significado da criação e expansão das empresas juniores na Universidade Brasileira”. Todo o trabalho foi orientado pelo esforço de aprofundar as reflexões que fazíamos desde os idos de 2011. Não imaginava que tão logo toda história que escrevemos naqueles anos estaria novamente em cheque neste colegiado.
Gostaria, então, de apresentar-lhes, ainda que sinteticamente, alguns resultados de minha pesquisa. Pude conferir mais de perto um dos eixos argumentativos de nossos movimentos em 2011 e 2013 – que a proposta pedagógica que orienta as empresas juniores nada tem a ver com a coisa pública, mas é sim firmada no âmbito dos interesses privados. Digo isto, pois na análise dos documentos publicizados da Confederação Brasileira das Empresas Juniores (a Brasil Júnior) que realizei na pesquisa, é possível encontrar a presença dos fundamentos do projeto educacional propagado pela Confederação Nacional da Indústria – a CNI, que abriga as afamadas federações estaduais, bem como federações setoriais como, por exemplo, a FIESP, FIRJAN, FIESC. A CNI, que organiza os empresários industriais, hoje já altamente sob o controle da alta finança, tem uma tradição desde os anos de 1940 de apresentar seus projetos para o país, com especial ênfase à educação e de, explicitamente, pressionar o Estado para atendê-los.
Pelo projeto educativo da CNI perpassa uma intencionalidade direcionada ao trabalho, ou melhor, da subsunção da formação dos trabalhadores aos seus interesses. É possível, inclusive para o leitor mais incauto, vislumbrar que seus documentos são eivados pela pragmática empresarial, pela demanda de simplificação da formação, sob a pecha de um trabalhador mais flexível, mais inovador. Guiados pelo discurso teleológico da competitividade, de que precisamos de um país mais competitivo no cenário internacional, discurso que encontra eco nos documentos da Brasil Júnior, os industriais encaram a educação de forma instrumentalista no anseio de subordinar a vida social à dinâmica da competitividade empresarial. E apresentam o empreendedorismo, este que é o eixo pedagógico das empresas juniores, como um conteúdo de interesse na educação que inclusive deveria estar disposto em todos os níveis de ensino – da educação infantil ao ensino superior – na necessidade de conformar um novo modelo de trabalhador, um novo modelo de ser humano. Um sujeito visceralmente conectado ao modus operandi do mundo empresarial, afinal esta é lógica que deveria operar, de acordo com eles, em todas as esferas da vida. Em segundo lugar, pude cruzar os dados de realidade com os dados do empreendedorismo. Afinal, este é apresentado costumeiramente como uma panaceia salvacionista – a receita que tira sujeitos, grupos, países das mais profundas crises.
A despeito das exacerbações, o discurso do empreendedorismo, mesmo em suas versões mais moderadas, está largamente aninhado em nossa vida social. Era preciso, então, conferir seus efeitos. Diversas instituições, como a Global Entreperneuship Monitor, o Serviço Brasileiro de Apoio ao Empreendedorismo e o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socio-Econômicos apontam que, entre os anos de 2002 e 2014, as taxas de empreendedorismo no país cresceram vertiginosamente. No entanto, este crescimento não encontra ressonância nos dados da estrutura do trabalho no Brasil. A maior parte da população brasileira vive hoje, ainda que considerando a renda familiar composta, com cerca de 50% do salário mínimo necessário (valor estimado pelo DIEESE para que os salários cubram as necessidades básicas dos trabalhadores). A pesquisa da Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego apresenta dados que também depõe contra o discurso do empreendedorismo, como, por exemplo, da média salarial nas micro e pequenas empresas, a joia mais brilhante dos que advogam pelo empreendedorismo, é decrescente em relação ao porte da empresa – quanto menor, menores salários. Tampouco a principal política de incentivo ao empreendedorismo nos últimos anos – a regularização de Micro Empresários Individuais (MEIs), alterou amplamente o quadro dos trabalhadores que a ela aderiram. Se olharmos os dados sobre o registro de atividades dos MEIs do mesmo Ministério, dispostos no “portal do empreendedor”, vimos que as atividades mais concentradas com mais de cem mil registros são: obras de alvenaria, instalações elétricas, comércio varejista, bares, lanchonetes, serviços de ambulantes de alimentação, cabelereiros, manicure, pedicure, outras atividades estéticas. Ou seja: pedreiros, eletricistas, quitandeiros, ambulantes, cabelereiros, esteticistas, continuam pedreiros, eletricistas, quitandeiros, ambulantes, cabelereiros, esteticistas, mas agora sob a pecha de empreendedores.
Enfim, estes são apenas alguns dados ilustrativos. A sociologia do trabalho, a economia crítica, a história tem produzido um largo campo de conhecimento sob as condições de precarização e super-exploração à que estão submetidas amplas camadas do povo brasileiro na contemporaneidade. Não há dúvida, a situação dos trabalhadores no Brasil é brutal. A partir disso, é possível pensar em que sentido opera o discurso empreendedor.
É de meu ponto de vista, que apresento brevemente nestas linhas, ele não é apenas um modo de escamotear esta realidade, mas de implicar subjetivamente os trabalhadores com as molas e engrenagens da lógica de organização social que deteriora suas condições de vida e trabalho. É uma forma cínica de apresentar o funcionamento desta sociedade, cujos desdobramentos todos sabem quão duros e vis são para maior parte da população, pregando que a superação deste quadro possa se dar pelo aprofundamento desta mesma lógica de funcionamento social. O professore livre-docente de filosofia da Universidade de São Paulo, colunista da Folha e pesquisador dentre outros temas em epistemologia da psicanálise, atenta em seu novo brilhante opúsculo “Quando as ruas queimam: manifesto pela emergência” que o neoliberalismo, além de uma doutrina econômica, é também um discurso moral, cito: “Sua necessidade se impõe a nós como injunção moral, como uma moral baseada na coragem enquanto virtude. Coragem para assumir o risco de viver em um mundo no qual só se sobreviveria através da inovação, da flexibilidade e da criatividade. Assumir riscos no livre mercado aparece atualmente como a expressão maior de maturidade viril, como saída da minoridade à que se estariam submetidos aqueles pretensamente infantilizados pela demanda de amparo do estado-providência. Esse mantra leva os sujeitos a acreditarem que, se eles fracassarem economicamente, é por culpa absolutamente individual, por culpa da minha incapacidade de me reinventar, de me ‘reciclar’ como uma garrafa pet. Enquanto essa moral do risco simulado era brandida em voz alta, dois economistas italianos (Guglielmo Barone e Sauro Mocetti) divulgaram em 2016 um sintomático estudo mostrando como o sobrenome das pessoas em Florença são, em larga medida, os mesmo de 1427 a 2011. Certamente, deve ser por mérito e pela capacidade destas famílias em educar seus filhos para ter coragem diante do risco. Até porque, podem ficar tranquilos, pois na primeira crise o Estado irá salvá-los, como salvou Citibank, BNP/Paribas, Deutsche Bank e tantos outros durante séculos. O que se diz atualmente é: contra este patrimonialismo explícito travestido de ‘mérito’, contra este rentismo que se faz passar por ‘coragem’ não há escolha.” Nada mais próprio a essa moral que o discurso empreendedor. O que quero salientar aqui, apresentando brevemente estes dois eixos de minha pesquisa, é que o discurso e o conjunto ideário do empreendedorismo estão comprometidos com os interesses daqueles que se nutrem deste quadro social, e é para a grande parte da população uma ideologia perversa. Assim, tanto mais estranho é para esta casa do saber imbuído do esforço de superação dos dilemas de nosso povo, comprometer-se com tal conteúdo. Esta era nossa argumentação em 2011, o foi em 2013 – e foi o que pude aprofundar em meus estudos. Penso que esta conclusão, que a pedagogia do empreendedorismo é alheia e incompatível com os interesses da universidade pública, ganha ainda mais peso neste momento ímpar que vivemos na história de nosso país. O golpe que se engendrou à presidente Dilma Rouseff, deu lugar ao aprofundamento das políticas neoliberais e aos mais profundos ataques aos direitos sociais e trabalhistas que vivenciamos desde a redemocratização. Ao abrirmos os jornais podemos ver todos os dias a sanha imoral com que investem sob os serviços públicos, os direitos à saúde, à educação, à previdência, às mínimas seguranças trabalhistas que foram conquistadas a duras penas pela luta dos trabalhadores. Neste momento, mais grave se torna que a universidade se comprometa com interesses alheios a vida da nossa população – e o empreendedorismo, inegavelmente é uma ideia vinda diretamente do mundo empresarial. Tampouco a história desse processo e o modo como ele retorna à superfície neste momento está incólume. Vejam, esta proposta foi democraticamente rejeitada por este centro duas vezes: em 2011, o mérito, o conteúdo político-pedagógico das empresas juniores foi rejeitado pelo conselho de unidade do CFH, tendo em vista sua incompatibilidade com o papel da Universidade Pública; e em 2013, em ampla assembleia realizada no centro o entendimento desta incompatibilidade desta inciativa com a educação pública foi arguido aprovado pela plenária, e posteriormente acolhido pelo mesmo conselho. Ora, o desrespeito às decisões coletivas, aos processos democráticos de decisão, expressos mais de uma vez por aqueles que defendem esta proposta não deve ser aceito nesta casa. Há aqueles que em nome do empreendedorismo advogarão pela liberdade – a liberdade de aprender, a liberdade de empreender. Ora, nós universitários temos um dever intelectual de tratar as palavras com rigor. Pode liberdade significar apenas agir de acordo com o está dado? Pode coincidir com o que exigem de nós dos altos escritórios dos empresários e das finanças? Ou pode liberdade coincidir com as nossas necessidades de subsistência? Em 2011 e em 2013 expressamos o que talvez seja o conteúdo mais íntimo desta palavra – o de dizer não ao querem de nós. Àqueles, cujos argumentos apresentados até agora não tenham feito qualquer ressonância, apresento ainda uma derradeira reflexão: Este colegiado tem hoje a chance de propor a todos que observam e participam deste processo um ensinamento – não se pode a todo custo tentar impor seus desejos e interesses singulares por sobre às decisões coletivas, por sobre a coisa pública. Uma lição contra o individualismo e o traço autoritário de nossa sociedade. Por fim, gostaria de atentar que a criação da empresa júnior, e principalmente sua negativa, estão inscritos na história desse curso. Um capítulo, forjado com ousadia por uma geração de estudantes de Psicologia, que marca a história de lutas pelo sentido público da Universidade Brasileira. Vocês tem hoje a oportunidade de subscrevê-la.
Convido-lhes: não renunciem à história.
Assim, professores Ana Lúcia Mandeli de Marsillac, Andréia Isabel Giacomozzi, Carolina Baptista Menezes, Diana Carvalho De Carvalho, Iúri Novaes Luna, Joselma Tavares Frutuoso, Lucienne Martins Borges, Marivete Gesser, Marúcia Patta Bardagi, Raquel De Barros Pinto Miguel, e Rosane Porto Seleme Heinzen; estudantes Juliana Jacinto Da Silva, Lais Paganelli Chaud e Pupella Machado Cardoso; e seus suplentes, findo por desejar-lhes nessa decisão o melhor juízo.
Respeitosamente, Renato Ramos Milis
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Imagem: Captura de tela.