Por Daniel Giovanaz.
O Ministério do Meio Ambiente lançou, na última terça-feira (9), um programa de “adoção” de parques para custear a conservação da Amazônia.
A contradição é que a primeira empresa anunciada como parceira do Adote um Parque, o Carrefour Brasil, possui uma série de violações ambientais em suas cadeias de fornecimento.
A rede de supermercados de origem francesa desembolsará cerca de R$ 3,8 milhões e ficará responsável por preservar 75,9 mil hectares de floresta, na Reserva Extrativista do Lago do Cuniã, em Rondônia, por um ano, com possibilidade de prorrogação por mais quatro.
É o que se chama de greenwashing, que é uma maquiagem, uma fachada que a empresa coloca para dissimular suas práticas predatórias
Ao todo, foram colocadas para “adoção” 132 áreas unidades de conservação (UCs). Somadas, elas representam 15% do território da Amazônia, segundo o Ministério.
“O Carrefour não tem moral para adotar um parque se ele não consegue conter a sua parcela de desmatamento da Amazônia. Ele está patrocinando o crime, na medida em que não rastreia sua cadeia produtiva”, avalia Marques Casara, diretor executivo da agência Papel Social, especializada em pesquisa de cadeias produtivas e projetos de comunicação nas áreas de direitos humanos e o meio ambiente.
Baseado em pesquisas realizadas para instituições como a Oxfam Brasil e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), Casara ressalta que o Carrefour “financia a devastação da Amazônia” ao comprar carne de fornecedores que “criam gado em terra indígena e em área de desmatamento ilegal.”
“Então, [a adoção de áreas na Amazônia] é uma jogada de marketing”, completa Casara. “É o que tecnicamente se chama de greenwashing, que é colocar uma maquiagem, uma fachada para dissimular suas práticas predatórias”, conclui.
Para Angela Kuczach, diretora executiva da Rede Pró-Unidades de Conservação (Rede Pró-UC), engajar a sociedade no apoio e na valorização das áreas protegidas requer transparência e credibilidade.
Ela enumera uma série de perguntas que não foram respondidas até o momento pelo Ministério.
“Tem que garantir transparência nos processos. Quais os critérios para eleger as unidades de conservação? O que se espera dessa adoção? Como isso vai ser feito? Quais resultados serão apresentados? O que a empresa está ganhando ao apoiar? É importante para a sociedade entender e não deixar nenhum tipo de desconfiança”, analisa.
Outra preocupação de Kuczach é o papel do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que será responsável pela gestão das áreas, segundo o decreto de lançamento do programa Adote um Parque.
“Se a gestão é do ICMBio, essa instituição tem que ser cada vez mais fortalecida”, lembra a diretora executiva da Rede Pró-UC.
“Essa ameaça de fusão entre ICMBio e Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] é muito negativa. Não faz o menor sentido tentar atrair a iniciativa privada para apoiar as unidades de conservação e, ao mesmo tempo, tentar extinguir o órgão que gere as unidades”, acrescenta.
Posicionamento do Carrefour
O Brasil de Fato entrou em contato com o Carrefour para responder aos questionamentos.
Em nota enviada por seu setor de sustentabilidade, o Grupo Carrefour internacional informou que possui um plano de ação para acelerar seus esforços no combate ao desmatamento.
O CEO da rede, Alexandre Bompard, está liderando uma coalizão internacional de fabricantes e varejistas para tomar medidas que envolvam todos os atores da cadeia de fornecimento.
“Esta coalizão trabalha para erradicar o desmatamento em toda a cadeia de fornecimento – e isso é um desafio para comerciantes, agricultores, fornecedores – além de colaborar com os governos e a sociedade civil”, diz o texto.
“No Brasil, para responder às questões de desmatamento ligadas à produção de carne bovina, o grupo mantém uma série de ações, muitas desenvolvidas há anos, sendo que a empresa já monitora 100% das carnes compradas, por sistemas de georreferenciamento via satélite, para garantir que a origem do produto seja sustentável e livre de desmatamento”, completa.
Um dos exemplos citados pela companhia é o compromisso assumido pela Fundação Carrefour de desenvolver uma cadeia produtiva “sem desmatamento” até 2030.
“Esta iniciativa apoia mais de 450 criadores de bezerros no estado de Mato Grosso, o principal produtor de carne bovina do país, capacitando-os sobre as melhores práticas de manejo, aumento de produtividade da terra e restauração e conservação da vegetação nativa”, acrescenta a nota.
O projeto conta com apoio financeiro de mais de 2 milhões de euros – cerca de R$ 13 milhões – da Fundação Carrefour.
A rede de supermercados possui uma seção em sua página institucional em que divulga as ações relacionadas à proteção dos direitos humanos nas cadeias produtivas.
Sobre o programa Adote um Parque, especificamente, o Grupo Carrefour Brasil elogiou a iniciativa do governo federal e disse que a “proteção dos 75.000 hectares de floresta é uma iniciativa pioneira para um grupo varejista, que visa a assegurar o não desmatamento no local, melhores condições de vida nas reservas e redução da emissão de CO²”.
Limites
Na avaliação de Casara, embora o Carrefour manifeste preocupação com o desmatamento em suas cadeias produtivas, essas iniciativas esbarram na falta de transparência.
“O programa de rastreamento do Carrefour não funciona, e não apenas para produtos oriundos da Amazônia. Isso ficou demonstrado na pesquisa que a gente fez sobre as frutas, com a Oxfam, na pesquisa que a Repórter Brasil e a Oxfam estão fazendo sobre o café”, afirma. “E, no caso da carne, é muito evidente, porque o Carrefour não rastreia os fornecedores e não oferece as informações com transparência.”
Em junho de 2020, a ONG Repórter Brasil mostrou que os supermercados Carrefour, Grupo Pão de Açúcar e BIG são abastecidos por frigoríficos que têm fornecedores ligados a desmatamento ilegal e criação de gado em terra indígena.
Para Angela Kuczach, impedir que uma empresa apoie uma unidade de conservação sob argumento de que há violações ambientais em suas cadeias seria o “cenário ideal”.
No entanto, como o monitoramento transparente das cadeias é uma realidade distante, o mínimo que o governo pode fazer é garantir que a parceria seja realmente efetiva para proteção da biodiversidade.
“A partir disso, a gente iria para esse segundo passo, que é olhar para toda a cadeia, verificar as questões de boas práticas, sustentabilidade e governabilidade da empresa, e como o que ela faz impacta ou não o meio ambiente”, completa. “Seria um refinamento do processo, um passo mais avançado”, afirma.
Responsabilidade corporativa
O problema de falta de transparência nas cadeias produtivas não se restringe à rede de origem francesa. Em janeiro de 2021, a Oxfam Brasil divulgou um relatório que demonstrou que, além do Carrefour, Pão de Açúcar e BIG também não cumprem requisitos básicos de responsabilidade sobre suas cadeias produtivas.
“Não há transparência sobre quem foi auditado, quais foram os resultados, que padrão foi utilizado. Faltam informações públicas. Eles não revelam quais as cadeias produtivas críticas e quais os principais problemas”, completou.
Responsáveis pelo controle de 46,6% do setor no país, os três supermercados obtiveram uma média de 4 pontos na tabela da Oxfam, em que a pontuação máxima é 93. O mais bem colocado foi o Pão de Açúcar, com 6,5, contra 2,7 pontos do Carrefour e 2,2 do BIG.
Governo sem credibilidade
Diretor executivo da agência Papel Social, Marques Casara afirma que não é apenas a presença do Carrefour entre os parceiros que causa desconfiança sobre o programa Adote um Parque.
“O programa já começa suspeito por ter o ministro Ricardo Salles [do Meio Ambiente] à frente dele. É um bandido, um inimigo, que opera a favor da violência. Não só ele, como toda a estrutura do governo”, ressalta.
Angela Kuczach, da Rede Pró-UC, concorda que a postura conivente de Salles e do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) diante da devastação do Pantanal e da Amazônia impactam na credibilidade do programa.
“É um governo que, até o momento, não deu nenhum passo na direção de algo positivo na área ambiental; e aí fica muito difícil atrair apoiadores. Como o governo vai apresentar uma proposta dessas se ele mesmo não leva essa agenda a sério?”, questiona.
O Brasil de Fato apresentou os questionamentos e críticas ao Ministério do Meio Ambiente, mas não houve retorno.