A polêmica sobre o local de nascimento de Carlos Gardel (um francês criado em Montevidéu que viajou para a Argentina ou um uruguaio que aos “dois anos e meio nasceu em Buenos Aires”) de certa forma também ocorreu com a mais brasileira das cantoras, Carmen Miranda, que, viva estivesse, estaria completando hoje, 09 de fevereiro, 105 anos.
Ruy Castro, na sua biografia de Carmen, conta como essa falsa polêmica sobre a nacionalidade portuguesa, alimentada por jornalistas como Orestes Barbosa, incomodou Carmen em alguns momentos de sua carreira.
Em 1930, a gravadora Victor, que tinha Carmen sob contrato, ” encomendou a Randoval Montenegro o samba “Eu gosto da minha terra”, dias depois de Carmen ter traído a estratégia da gravadora de esconder sua origem portuguesa.
Carmen fizera isso em uma entrevista a R. Magalhães Júnior para a revista Vida Doméstica, de julho de 1930, ao responder candidamente sobre se nascera “aqui mesmo, no Rio”. Antes de Magalhães Júnior, a ninguém ocorrera fazer essa pergunta.
“Aí uma coisa interessante”, disse Carmen ao repórter. “Todos que me conhecem pensam que sou brasileira, nascida no Rio. Como se vê, sou morena e tenho o verdadeiro tipo da brasileira. Mas sou filha de Portugal. Nasci em Marco de Canavezes e vim para o Brasil com um ano de idade (na verdade, menos). Mas meu coração é brasileiro e, se assim não fosse, eu não compreenderia tão bem a música desta maravilhosa e encantadora terra.”
Rogério Guimarães e os americanos da Victor leram aquilo e subiram pelas paredes. O Rio ainda era uma cidade profundamente portuguesa, mas, até por isso, certos setores, inclusive da imprensa, se dedicavam a uma amarga lusofobia. Uma confissão como aquela não contribuía em nada para firmar a posição de Carmen como a cantora mais brasileira que já existira. Daí a Victor ter pedido socorro ao pianista e compositor Randoval Montenegro, uma espécie de pau-para-toda- obra junto à gravadora. Montenegro, ex-colega de Noel Rosa na Faculdade Nacional de Medicina, produziu em dois tempos o ótimo “Eu gosto da minha terra”, um autêntico precursor do samba-exaltação, gravado por Carmen em agosto:
Deste Brasil tão formoso
Eu filha sou, vivo feliz
Tenho orgulho da raça
Da gente pura do meu país.
Sou brasileira, reparem
No meu olhar, que ele diz
E o meu sambar denuncia
Que eu filha sou deste país…
e mais quatro estrofes de brasileirismos roxos, sobrando até para o foxtrote:
Que não se compara
Ao nosso samba
Que é coisa rara.
Pau-para-toda-obra, mesmo: apenas dois meses antes, em junho, Carmen gravara um foxtrote, “De quem eu gosto”, de quem? De Randoval Montenegro. Mas, como se descobriu, não havia motivo para alvoroço. O público não tomou conhecimento da origem portuguesa de Carmen nem se ofendeu quando, naquele mesmo mês de agosto, ela gravou dois tangos em espanhol – inéditos, escritos para ela por brasileiros, e um deles, “Muchachito de mi amor”, composto também por Montenegro.
(…) Carmen se entristecia e se ofendia quando alguém lembrava, mesmo sem querer, que ela nascera em outro país. Daí sua relação com o letrista e jornalista Orestes Barbosa ser tão complicada. Orestes, hidrofobamente antiportuguês, vivia se dedicando por escrito a “denunciar” sua cidadania lusa. Fez isso em seu livro Samba, de 1933, e voltava à carga quase diariamente pelo jornal A Hora, em que escrevia.
Para Carmen, aquilo era uma perseguição. Na Argentina, ninguém queria saber se Carlos Gardel era francês, uruguaio ou argentino. Gardel era francês, claro – nascido em Toulouse, na França, de pai e mãe franceses, e criado em Montevidéu -, mas era também o maior cantor argentino de todos os tempos, o tango encarnado, e ninguém em Buenos Aires se achava mais portenho que ele. Nos Estados Unidos, a mesma coisa com Al Jolson. E daí que Jolson tivesse nascido na Rússia (como aconteceu) ou na Lua, e não no Alabama? Ele era o cantor americano por excelência, o homem que dominava a Broadway, Hollywood e o coração de milhões de americanos.
“Que diferença faz se esses putos nasceram em outro lugar?”, dizia Carmen. “A culpa é da mãe deles, que estava no país errado ao parir.”
Vídeos:
1. “Eu gosto da Minha Terra” de Randoval Montenegro
2. “Disseram que eu voltei Americanizada” de Luiz Peixoto e Vicente Paiva
3. “Voltei pro Morro” de Luiz Peixoto e Vicente Paiva
4. “Disso é que eu gosto” de Luiz Peixoto e Vicente Paiva
5. “Diz que tem” de Vicente Paiva e Anibal Cruz
Fonte: Jornal GGN.