Por Marco Túlio de Urzêda Freitas.
Em meados de dezembro do ano passado, tive a chance de assistir a um bate-papo entre cinco mulheres cristãs pela internet. Como parte das atividades de um grande congresso voltado a mulheres evangélicas, esse bate-papo teve por objetivo discutir o tema submissão, que, como disse uma das pastoras, “está intrínseca ao ser mulher”. A partir daí, as cinco mulheres convidadas a participar da conversa (quatro pastoras e uma apresentadora de programa gospel) começaram a compartilhar experiências e reflexões sobre a importância da submissão da mulher ao homem no contexto da família. Sobretudo porque, segundo a pastora mais experiente do grupo, “os maiores problemas estão exatamente nos lares onde a mãe é mandona, não respeita o marido”.
Apesar de esse congresso ter acontecido em agosto de 2012, somente no final do ano ele ganhou projeção nas redes sociais, abrindo espaço para calorosos debates sobre o lugar e o papel das mulheres na sociedade contemporânea. O primeiro tópico do bate-papo foi: O que é a submissão? Em resposta, uma das pastoras disse que a palavra submissão deve ser compreendida pelas partes que a compõem. Nessa perspectiva, uma vez que o prefixo sub significa abaixo de e a palavra missão significa algo a ser realizado, e considerando que “a missão do homem é amar a sua esposa”, a submissão da mulher ao homem no casamento parece clara e poética aos olhos da pastora: “se a missão do homem é amar a esposa, a submissão, meninas, é a missão que a mulher tem abaixo da missão dele: ajudá-lo a nos amar”. Dessa primeira definição, recebida com alegria e entusiasmo pelas demais participantes do evento (cerca de seis mil mulheres), surgiu uma outra: a submissão remete à “missão” da mulher de encorajar, levantar, “edificar” o seu marido.
Entretanto, não basta ser uma esposa submissa. É preciso ensinar as filhas a serem submissas também. De acordo com as integrantes do bate-papo, trata-se de algo que as filhas aprendem ao ver suas mães se submetendo aos seus pais, isto é, “edificando” a autoridade dos pais no contexto familiar. Caso contrário, as filhas não se submeterão, no futuro, aos seus esposos. Mas a preocupação dessas mulheres cristãs não é bem que as filhas não sejam submissas, mas que elas percam o interesse pelo casamento, já que, como alerta uma das pastoras do grupo, está havendo um grande problema nas famílias hoje: “sem perceber, as mães, os pais… estão criando as suas filhas não para o lar, não para serem esposas, não para serem mães, mas para a sua carreira profissional”. E as consequências desse problema não poderiam ser mais desastrosas: “A menina estuda excelente, mas não sabe cozinhar, não sabe pregar um botão numa camisa, não sabe passar uma camisa, não sabe organizar… nunca arrumou uma cozinha”. Por acreditar que esse grande problema resulta de uma “educação mal direcionada”, a mesma pastora conclui: “Então, é muito importante que as meninas que estão aqui sonhem em se realizarem como esposas, sonhem em ser mães. E que nós possamos preparar as nossas meninas para o casamento”. Para encerrar o bate-papo, outra das pastoras disse que uma forma de evitar esse problema é trabalhar a submissão das filhas em casa, mostrando a elas o quanto seus pais são importantes e o quanto eles merecem ser honrados/edificados.
Geralmente, a primeira reação diante desses princípios é de surpresa: Como ainda há pessoas que conseguem pensar dessa forma em pleno século XXI? Depois, o sentimento tende a ser de revolta: Como essas mulheres têm coragem de dizer tamanhos absurdos, levando em conta as desigualdades de gênero e as violências cotidianamente sofridas por mulheres no Brasil? Por último, vem a tristeza: Como essas mulheres conseguem legitimar discursos que desde sempre têm contribuído para marginalizá-las e posicionar-se contra discursos que lhes têm propiciado o direito de fazer escolhas, de participar da democracia, de assumir cargos importantes, de se organizar como força política em diferentes espaços etc? Será que elas não percebem que, se não fosse pela natureza contestadora e libertária dos discursos feministas, elas provavelmente ainda não seriam autorizadas a dar palestras, a ministrar cultos e muito menos a organizar eventos religiosos? Embora as reflexões e experiências compartilhadas por essas cinco mulheres cristãs nos permitam focalizar diversas questões importantes, eu gostaria de me concentrar em um tema que, devido à nossa formação pouco crítica e emancipatória, pode acabar passando batido aos nossos olhos: a estreita relação entre capitalismo e patriarcado.
Instituído após a queda do feudalismo, sistema de organização social e política baseado em relações servo-contratuais (servis), o capitalismo denota um sistema baseado na criação e expansão do capital (dinheiro). Trata-se, como afirma a antropóloga feminista Gayle Rubin, de “uma série de relações sociais – formas de propriedade e assim por diante – nas quais a produção visa a transformar dinheiro, coisas e pessoas em capital”. Por sua vez, o patriarcado, concebido em épocas anteriores ao capitalismo, se caracteriza, grosso modo, como um sistema social organizado, majoritariamente, conforme as regras estabelecidas pelos homens. No sistema patriarcal, o valor das mulheres se reduz à satisfação dos desejos sexuais masculinos e à reprodução de herdeiros. Para a socióloga feminista Heleieth Saffioti, uma vez que o patriarcado confere direitos aos homens sobre as mulheres, ele representa “uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência”. Dado que uma das principais características do capitalismo é a reprodução da força de trabalho, faz-se preciso calcular a quantidade de produtos básicos – alimentos, roupas, moradia e outros – necessários para manter a saúde, a vida e a força dos trabalhadores. É neste ponto que entram os valores do patriarcado, já que tais produtos precisam ser organizados por alguém: a comida deve ser preparada, as roupas devem ser lavadas etc. Dessa forma, o trabalho doméstico, geralmente executado por mulheres, passa a desempenhar um papel não apenas importante, mas primordial à manutenção do sistema capitalista. Conforme Rubin, o capitalismo “retomou e pôs em circulação conceitos de masculino e de feminino que o antecedem de muitos séculos”.
Entendo que o bate-papo entre essas cinco mulheres cristãs nos permite observar, com bastante clareza, tanto a relação entre capitalismo e patriarcado quanto a retomada de conceitos patriarcais na sociedade contemporânea, visto que ele acena tanto para uma divisão sexual do trabalho quanto para uma suposta “necessidade” de manter as mulheres em seu devido lugar nessa divisão. Assim, poderíamos sintetizar o referido bate-papo em cinco proposições: 1) A missão das mulheres está abaixo da missão dos homens; 2) As mulheres devem edificar os homens; 3) As mães precisam ensinar as suas filhas a se submeterem aos homens; 4) As mães precisam educar as suas filhas para o casamento; 5) O pai é mais importante do que a mãe no contexto da família. No que se refere à primeira proposição, vemos que a mulher é colocada em uma posição inferior à do homem, pois as suas “obrigações” (a sua missão) são menos representativas. Essa é a ideia que serve de base para a segunda proposição, que recomenda a supervalorização da figura masculina, dada a sua importância e o seu prestígio no mundo social. Já no que tange às duas proposições que se seguem (terceira e quarta), vemos um nítido apoio à reprodução dos papeis de gênero endossados pelo pensamento patriarcal, uma vez que as mães, mulheres submissas, são conclamadas a repassar o valor da submissão às suas filhas, de modo que elas também sejam, no futuro, submissas aos seus maridos. Além disso, tais proposições colocam o casamento como uma prática central na reprodução dos papeis de gênero e da própria submissão feminina. Por fim, a quinta proposição retoma o grau de destaque do homem na sociedade, focalizando a importância de a mãe ensinar os/as filhos/as a honrar o pai (como se ele fosse um Deus), muito acima da figura materna. O problema que recai sobre essa última proposição não é o fato de os/as filhos/as aprenderem a honrar os pais, mas de aprenderem a honrá-los mais do que as mães, conferindo a eles maior representatividade na família e na cultura.
Essas cinco proposições convergem na seguinte tese: as mulheres devem ser submissas aos homens porque os homens são mais importantes do que as mulheres. Trata-se de uma tese que, a meu ver, reafirma e celebra a parceria entre capitalismo e patriarcado na medida em que legitima o lugar e o papel (importantes, porém subalternos) das mulheres na produção e reprodução das forças produtivas, o que, segundo o filósofo e sociólogo Henri Lefebvre, se configura como uma das grandes molas propulsoras do capitalismo. Ao legitimar esse lugar e esse papel, a tese proclamada pelas cinco mulheres cristãs do bate-papo corrobora uma das ideias mais conhecidas do psiquiatra Wilhelm Reich: se é nas relações familiares que se reproduzem as relações sociais mais amplas, pode-se dizer que a família representa uma empresa na qual o pai também é o patrão. Nesse sentido, assegura Lefebvre, “a paternidade, pela gestão do patrimônio, por meio da autoridade e do poder, corresponde à propriedade capitalista dos meios de produção”. Tudo isso contribui para reproduzir as forças produtivas e garantir a divisão dos papeis dentro da família, enfim, para manter o capitalismo de pé. Um capitalismo que, de acordo com as pesquisadoras Martha Giudice Narvaz e Sílvia Helena Koller, se descortina por meio de um patriarcado moderno, o qual, mesmo tendo alterado a sua configuração, mantém os princípios do patriarcado tradicional, estruturando a sociedade civil. No meu ponto de vista, são esses princípios que devemos problematizar. Afinal de contas, atribuir às mulheres a obrigação de serem mães e esposas, de desejarem cuidar de uma casa e de uma família, de saberem lidar com os afazeres domésticos, é uma forma de crucificá-las vivas em seus próprios corpos, tendo como cenário a cultura gerada e sustentada pelo capital.
Ao que me parece, o medo dessas cinco mulheres cristãs é que o chamado espírito jezabélico tome conta das “meninas-moças”. Para quem não conhece a história, Jezabel foi uma princesa da Fenícia que se casou com o rei Acabe de Israel para fortalecer os laços entre os seus territórios. Além de ter continuado a adorar os deuses fenícios, Jezabel ocupou um lugar ativo na gestão do trono de Israel, articulando planos e estratégias que lhe possibilitassem alcançar o que ela e o marido desejavam e consideravam melhor e/ou mais adequado. A rainha foi morta em uma revolta liderada pelo comandante Jeú, tendo o seu corpo devorado por cães que passavam pelo local. Apoiando-se nessa história, as participantes do bate-papo parecem entender que, ao criarem as suas filhas não para o casamento, mas para a carreira profissional, as mães estão criando mulheres com um espírito jezabélico, isto é, com um espírito de liderança e agentividade – é assim que Jezabel é vista por leitores/as mais críticos/as da Bíblia. Sobretudo porque mulheres jezabélicas podem acabar escolhendo não se casar e não ter filhos/as, o que prejudicaria o andamento do sistema capitalista – que depende da reprodução das forças produtivas para gerar o capital. Em outras palavras, é preciso que os trabalhadores se reproduzam: tenham filhos/as, alimentem-nos/as e eduquem-nos/as, de modo a torná-los/as capazes de assumir os seus devidos lugares na sociedade. Por tal motivo, o capitalismo precisa que as mulheres sejam colocadas “em circulação”, possibilitando que o sistema opere com rigor. Trata-se de uma ideia que encontra respaldo tanto no conceito “troca de mulheres”, do antropólogo Claude Lévi-Strauss, quanto na reapropriação desse conceito por Gayle Rubin, que, levando em conta a dinâmica do sistema capitalista, prefere falar em “tráfico de mulheres”.
Embora compreenda que as reflexões e experiências compartilhadas por essas cinco mulheres cristãs estão relacionadas ao que elas viveram e aprenderam durante a vida, não penso que eu deva endossar ou me calar perante visões de mundo que, no meu ponto de vista, reafirmam e celebram a desigualdade e a violência. Especialmente quando essas visões são compartilhadas por grupos que vivenciam, muitas vezes sem ter consciência, o peso da desigualdade e da violência. Deixar um tipo de evento como esse passar batido seria contribuir para que a hegemonia continue cumprindo o seu papel, que, segundo o professor Stephen Brookfield, é levar as pessoas a abraçar entusiasmadamente um sistema de crenças e práticas que acaba lhes prejudicando e trabalhando para manter os interesses das pessoas que têm poder sobre elas. Em todo caso, acredito que esse bate-papo, se colocado em um plano histórico, político e cultural mais amplo, pode nos oferecer subsídios para refletir sobre uma pergunta importante apresentada pelo filósofo e sociólogo Jacques Ellus no início de seu provocativo A Subversão do Cristianismo: “Como é possível que o desenvolvimento do Cristianismo e da igreja tenha gerado uma sociedade, uma civilização e uma cultura completamente opostas àquelas que lemos na Bíblia?” Enfim, tentemos refletir sobre isso juntos/as.
* mestre – Letras e Linguística pela UFG; professor e pesquisador – estudos sobre língua(gem), educação e crítica social. E-mail: [email protected]
Fonte: Diário da Manhã.