Capitalismo à brasileira: a carne não é fraca

friboi

A meteórica ascensão da Friboi JBS e da família Batista, outra prova do capitalismo à brasileira.

Por André Barrocal.

Quem acompanha a trajetória da família Batista apenas pela evolução patrimonial talvez se emocione com a história de empreendedorismo: um frigorífico nascido no interior de Goiás em 1953 e desconhecido até a década passada está prestes a se tornar a maior empresa privada do Brasil em vendas, à frente da gigantesca Vale. Basta concretizar a compra da americana Hillshire, fabricante de salsichas, cujo faturamento anual atingiu o equivalente a 9 bilhões de reais em 2013. Esse mesmo observador pode enxergar infatigáveis empresários em Júnior, Wesley e Joesley, os três herdeiros de José Batista, o Zé Mineiro, agropecuarista de hábitos simples e jeito desconfiado, fundador do conglomerado.

Mas, como tem acontecido ao longo das décadas, a JBS serve mais como um símbolo do capitalismo à brasileira. Apoiado por uma política até hoje mal explicada, a escolha dos “campeões nacionais” pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), presidido por Luciano Coutinho, acusado de práticas anticoncorrenciais, entupido de processos trabalhistas e com seus principais acionistas investigados por sonegação, o conglomerado expande-se no mercado interno e no exterior sem que se saiba se o apoio estatal trará benefícios aos contribuintes e à população em geral.

Por ora, ele tem sido perfeito para os irmãos Batista. O líder da família é Júnior Friboi, embora o primogênito tenha sofrido um duro revés. Embalado pela crescente fortuna do grupo, Júnior havia se preparado para finalmente realizar um sonho antigo, o de entrar no mundo político. Um dia antes de anunciar o lance de 7,7 bilhões de dólares pela Hillshire, o empresário viu-se obrigado a desmontar o QG de sua pré-candidatura ao governo de Goiás, dolorida decisão para quem teve de abortar pela terceira vez o desejo de subir em um palanque. Nos próximos dias, o PMDB deve oficializar a candidatura do experiente Iris Rezende, de 80 anos.

Júnior filiou-se ao PMDB em maio do ano passado pelas mãos do vice-presidente Michel Temer, certo de que a candidatura estaria garantida. O dinheiro era peça-chave de seu projeto de poder. Expunha sem constrangimento a intenção de realizar uma campanha cara, de até 100 milhões de reais, o equivalente a 25 reais por goiano. Na eleição presidencial de 2010, a presidenta Dilma Rousseff gastou 135 milhões de reais, ou 1 real por eleitor. Um dos maiores doadores de fundos para campanhas eleitorais, a JBS, dizia Júnior, também financiaria candidatos aliados a cargos de deputado estadual e federal, o que faria dele o maior cacique político local.

A proeminência do dinheiro nos planos de Júnior foi o principal motivo do racha no PMDB e do surgimento de setores resistentes à sua candidatura. Disseminou-se em Goiás a impressão de que o empresário não pretendia fazer política, entendida como a tentativa de conciliar interesses conflitantes da sociedade, mas comprar apoio. Os peemedebistas insatisfeitos com seu estilo defendiam a candidatura de Rezende, à revelia do desejo de Temer.

Observador da cena local, o cientista político Francisco Mata Machado Tavares, da Universidade Federal de Goiás, acredita que o naufrágio de Júnior Friboi é positivo para o País e não somente para os goianos. “Seria uma tragédia para a democracia uma incursão política baseada apenas no dinheiro. As manifestações de junho do ano passado de certa forma contestaram a imposição da agenda do Estado pelo poder econômico, e ele é o próprio poder econômico.”

A saída do empresário do páreo tira ainda uma pedra do caminho de Dilma Rousseff em Goiás. Pesquisas internas do PT mostram que o eleitor potencial do empresário não gosta da presidenta. Resta saber se o partido fechará algum acordo com Rezende ou se vai lançar a candidatura de Antônio Gomide, ex-prefeito de Anápolis.

Apesar da rasteira, Júnior não tem do que reclamar do PT e do PMDB. Nos últimos anos, o BNDES injetou 8,1 bilhões de reais no conglomerado. Não foram simples empréstimos, mas capitalizações, ou seja, o banco virou sócio da empresa. É impressionante a sinergia. Em dezembro de 2006, a instituição não tinha ações da companhia. Hoje, detém 24% dos papéis.

O governo também parece agir para abrir mercados aos frigoríficos nacionais e, por consequência, ao maior deles. Para manter abertas as portas da Rússia, que compra cerca de 4 bilhões de dólares em carnes por ano, Dilma Rousseff comprometeu-se a adquirir baterias antiaéreas de Vladimir Putin. Os valores, o número de armamentos e o grau de transferência tecnológica estão em discussão, mas especialistas do setor de defesa fazem restrições ao negócio. Uma? O fato de o foguete ter dois estágios, ou seja, uma parte se desprende para impulsionar a outra. Esse tipo de projétil é adequado para o mar, não para o uso em terra, como pressupõe a maquinaria russa, muito menos em aglomerações urbanas, por causa do risco de cair em áreas habitadas. Ao anunciar a parceria, o Brasil afirmou pretender as baterias para a segurança das Olimpíadas. Além disso, o País trocará carne por armas, algo pouco inteligente, apontam os críticos, com bastante sentido.

Com dinheiro público no caixa, a JBS foi às compras. De 2007 para cá, gastou 13,5 bilhões de reais em cerca de 20 aquisições, incorporações ou arrendamentos, dentro e fora do Brasil. Metade dos negócios foi feita no exterior. O grupo fincou bandeira nos EUA, Argentina, Austrália e Europa. A maior transação aconteceu em setembro de 2013, foram 5,8 bilhões de reais pagos para assumir a Seara Brasil. O negócio será superado caso a Pilgrim’s, subsidiária nos Estados Unidos, arremate a Hillshire. Em 27 de maio, a Pilgrim’s ofereceu 6,4 bilhões de dólares pela concorrente. Dois dias depois, a Tyson Foods cobriu a proposta (6,8 bilhões de dólares). Na terça-feira 3, a subsidiária da JBS subiu a oferta para 7,7 bilhões de dólares.

Com a internacionalização, a família nada em dinheiro. As vendas da companhia explodiram. Saíram de 4 bilhões de reais, em 2006, para 96 bilhões de reais, em 2013, ou 24 vezes mais. A empresa abriu o capital em 2007 e, no ano passado, registrou a maior alta de ações entre as firmas do ramo alimentício. A quantidade de trabalhadores multiplicou-se por dez e soma 191 mil. É dona da segunda maior receita anual entre as empresas privadas no Brasil. Só perde para a Vale (106 bilhões de reais, em 2013). A aquisição da Hillshire deixaria a JBS a um passo do posto de número 1 em vendas.

Como na gestão Dilma Rousseff o BNDES abandonou a estratégia dos “campeões nacionais”, a compra da Hillshire deverá ser financiada sobretudo com a abertura de capital da divisão JBS Foods. A companhia apresentou em meados de maio à Comissão de Valores Mobiliários um pedido de registro de venda inicial de ações, o chamado IPO. A partir daí, seus executivos submetem-se a um “período de silêncio” determinado pela CVM, impedidos de dar entrevistas, motivo alegado para não falar a CartaCapital.

A internacionalização da JBS tem dado certa contribuição ao País, que pode contar com a entrada de dólares por meio de exportações ou lucros obtidos no exterior ou com o ganho intangível para a imagem do Brasil. Mas tamanho gigantismo, fertilizado à base de dinheiro público, também gera dúvidas e reclamações. Pecuaristas e frigoríficos concorrentes apontam abuso de poder econômico, monopólio e formação de cartel. No fim do ano passado, em seu encontro anual, a Federação da Agricultura e Pecuária do Pará acusou publicamente a JBS de cartelização e cobrou providências das autoridades. Como é forte e está nas duas pontas – cria boi e processa a carne –, a empresa teria o poder de determinar os preços no mercado.

Em Brasília, a bancada ruralista faz reverberar as queixas. Em agosto de 2013, um grupo de deputados criou uma subcomissão para acompanhar o comércio de carnes em busca de munição contra a JBS. Na mesma época, a presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, a senadora Kátia Abreu, do PMDB do Tocantins, subiu à tribuna do Senado para desancar a companhia e acusá-la de sufocar a concorrência. O estopim foi o fato de uma propaganda de sucesso da JBS, com o ator global Tony Ramos, ter emplacado o bordão “carne é Friboi”. O presidente da Associação Brasileira de Frigoríficos, Péricles Salazar, fez idêntica acusação ao apontar o esmagamento de pequenos abatedouros. Depois da briga, a JBS desfiliou-se da Abrafrigo.

O poderio de mercado da companhia não tem sofrido reparos por parte do órgão federal antitruste. Em abril de 2013, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), chancelou de uma só vez, e por unanimidade, todas as aquisições feitas pelo grupo entre 2009 e 2012, embora tenha aplicado uma multa de 7,4 milhões de reais e obrigado a companhia a assinar um termo no qual se compromete a informar qualquer nova aquisição nos 30 meses seguintes. Compras mais recentes prosperaram depois do crivo do Cade. A última, a da Massa Leve, em dezembro de 2013, foi aprovada em maio.

Não é só entre a concorrência que a publicidade da Friboi causa controvérsia. No fim de 2013, a empresa patrocinou uma campanha na qual uma nutricionista dizia: “Carne é essencial, é proteína”. A Sociedade Vegetariana Brasileira acionou o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária para que a publicidade saísse do ar. Constrangida, a nutricionista Roberta Ferreira, estrela do comercial, desculpou-se publicamente.

Em 2014, mais polêmica com a entrada em cena de Roberto Carlos. Notório vegetariano, o cantor disse, quando do lançamento da campanha em fevereiro, acreditar no produto. Mas, como no comercial da tevê ele não aparece com um pedaço de carne entre os dentes, ficou a dúvida sobre a sinceridade da sua reconversão aos hábitos carnívoros. A peça virou motivo de piada na internet, e a Friboi suspendeu sua exibição.

Polêmicas e questionamentos parecem ser uma marca da fase multinacional da JBS. A companhia é alvo de um festival de ações trabalhistas. Para o Ministério Público do Trabalho, a empresa costuma negligenciar e explorar os empregados, o que provoca recorrentes pedidos de indenização por danos morais. A Justiça impôs à empresa uma das condenações mais caras em setembro passado, 9 milhões de reais. Descobriu-se que, no município de Juruena, em Mato Grosso, os funcionários eram expostos a insetos de um lixão vizinho, vazamento de gás, jornada superior a dez horas diárias e refeições servidas com larvas de moscas e insetos.

Esse tipo (frequente) de derrota judicial incomoda os Batista. Em entrevista à agência de notícias Bloomberg pouco antes do silêncio imposto pela CVM, o presidente da companhia, Wesley, um dos irmãos à frente dos negócios da família, enquanto Júnior se dedicava à política, disparou: “A Justiça Trabalhista brasileira está um negócio impressionante”. Na mesma entrevista, reclamou da falta de uma reforma tributária, outro terreno escorregadio para o conglomerado. Em Goiás, onde a Friboi nasceu e prosperou, o Fisco acusa a empresa de sonegar o ICMS na exportação da carne bovina. Nos últimos nove anos, a Fazenda goiana emitiu autos de infração no valor de 1,3 bilhão de reais.

A sonegação motiva também um processo individual contra Joesley, o caçula dos três irmãos e presidente da J&F Participações, a holding por meio da qual a família diversificou os negócios para além do setor alimentício. Joesley virou réu da Justiça Federal em novembro de 2012. Foi acusado pelo Ministério Público de ter sonegado, em valores atuais, 10 milhões de reais graças ao uso, entre janeiro de 1998 e julho de 1999, da conta bancária de uma empresa fechada. Se condenado, pode pegar de dois a cinco anos de prisão.

A abertura do processo pela Justiça pegou Joesley em clima de lua de mel. Um mês antes, ele havia se casado com a apresentadora do Jornal da Band Ticiana Villas Boas, protagonista de cenas de novo-riquismo explícito em uma recente entrevista ilustrativa da vida boa dos Batista. A jornalista disse ser uma mulher “cara”, sem noção do preço da gasolina, embora capacitada a trocar de bolsa toda semana. Exaltou ainda as vantagens de ser rica e de ter empregados, muitos empregados… De fato, ela não pode reclamar. O empresário a enche de mimos, entre eles uma ilha em Angra dos Reis, antes pertencente ao apresentador Luciano Huck, e um apartamento em Nova York comprado do publicitário Nizan Guanaes. Consta, porém, que Joesley irritou-se com a ostentação da esposa.

O executivo tem outros fantasmas a assombrá-lo. Em janeiro, foi indiciado pela Polícia Federal por crime contra o sistema financeiro. A PF ligou-o a uma turma do barulho: Kátia Rabello, Vinícius Samarane e José Roberto Salgado, ex-diretores do Banco Rural condenados no “mensalão”. Segundo os investigadores, o mais novo dos Batista deu uma força ilegal ao Rural em dezembro de 2011, quando a instituição estava na mira do Banco Central. Por meio do Banco Original, um dos negócios da holding J&F, teria ajudado o Rural em uma falsa capitalização com 160 milhões de reais em empréstimos cruzados fajutos. Joesley foi o fiador dos empréstimos do lado do Original. Responsável pelo caso, o procurador da República José Alexandre Pinto Nunes, do Rio Grande do Sul, pediu recentemente mais informações à PF e ainda não decidiu se vai processar o empresário.

Wesley também se enrolou com o Original, graças à venda de 500 milhões de reais em CDBs à JBS. A transação chamou a atenção do Banco Central. Pelas condições de prazo e juros, desconfia-se, a JBS simulou um lucro menor apenas para injetar dinheiro na própria instituição financeira. Se fossem empresas de capital fechado, poderia tratar-se de uma mera questão doméstica. Mas como a JBS tem papéis na Bolsa, um eventual prejuízo causado com o auxílio do banco do grupo terá sido compartilhado com acionistas de outro sobrenome. Instigada pelo Banco Central, a CVM instalou em abril de 2013 um processo contra Wesley, diretor-presidente e financeiro da JBS. Pela Lei das Sociedades Anônimas, ele poderia ser multado em até 500 mil reais e banido do sistema financeiro por 20 anos. Em março, ele pagou uma multa de 460 mil reais e encerrou o processo.

Inaugurada em dezembro de 2012 em Mato Grosso do Sul como a maior linha de produção de celulose do mundo, a Eldorado Brasil, outra empresa controlada pela holding J&F, não atua de forma diferente. A empresa, segundo o Valor Econômico, é processada sob a suspeita de ter clonado ilegalmente um tipo de eucalipto usado pela competidora Fibria, autora da ação judicial. Curiosidade: o maior acionista da Fibria é o mesmo BNDES, que injetou 8,1 bilhões de reais na JBS.

O polpudo apoio do banco estatal parece ser o combustível de um boato recorrente na terra sem lei da internet. O “verdadeiro” dono do grupo, espalha-se, seria um dos filhos do ex-presidente Lula. Cansado das ofensas, Fabio Luis da Silva apresentou em abril uma queixa à polícia em São Paulo e pediu a abertura de inquérito para descobrir os responsáveis pela disseminação das calúnias.

Lulinha mapeou a web e chegou a uma lista de sites que parecem ter dado o pontapé inicial à história. A lista foi enviada à polícia. Entre os potenciais boateiros está Daniel Graziano, que administrava um site ligado ao Instituto Fernando Henrique Cardoso. Daniel é filho de Xico Graziano, chefe da área de internet da pré-campanha presidencial do senador tucano Aécio Neves. O jovem precisou ser intimado três ou quatro vezes até comparecer à delegacia recentemente. Ao depor, admitiu ser responsável por uma página eletrônica que difundiu o boato. A depender da conclusão do inquérito, pode ser processado por calúnia e difamação. A extensão e a generosidade do apoio público à família Batista carecem, porém, de maiores explicações.

Fonte: Carta Capital

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