Por Almir Albuquerque.
Meu amigo Sandro Ataliba tem dois dos blogs que eu mais gosto de ler: Perspiciência e Esquizofrenético Blues*. Neste último, ele toca num tema que é um dos mais caros e apaixonantes para mim: a comparação entre os sistemas capitalista e socialista, onde defende o primeiro em detrimento do segundo.
Na tentativa de contrapor uma perspectiva mais realista dessa dicotomia, eu achei que um comentário na sua publicação seria pouco, por isso resolvi transformar esse saudável debate numa postagem, para poder aprofundar mais os temas levantados, como se segue.
Logo no começo, o Sandro Ataliba já deixa claro a sua preferência: “por mais que o capitalismo tenha seus defeitos, enquanto a única opção for o Socialismo, eu continuarei a favor do capital”. Nada mais justo. Todos temos o direito de optar por uma posição política ou uma visão de mundo, desde que não fira os direitos de ninguém e que melhor condiga com nossas convicções. Mas o problema — e razão desse debate aqui — é o conceito que o Sandro cria de “socialismo” para fazer o seu elogio do capitalismo.
Para ele, o socialismo é o sistema “de quem não quer se esforçar”, que não oferece conforto nem liberdade, não possibilita que as pessoas tenham produtos de qualidade, nem veículos, apenas “transportes coletivos” (que mau isso!), que oferece sempre baixos salários, sendo esse o “socialismo do dia-a-dia”, enquanto que o capitalismo é aliado da “liberdade” e da “meritocracia”. Nesse sistema, o mercado opera o milagre do bem-estar, oferecendo a possibilidade das pessoas terem até quatro televisões (?!), para assistir os canais a cabo norte-americanos, o direito de ir e vir, o turismo e telefones celulares à vontade… Quem poderia ser contra o capitalismo num panorama desses?
O problema é que esse apanhado está muito longe da realidade, e se a gente quiser enxergar os fatos com justiça tem que fugir da superficialidade.
Consumir produtos supérfluos é o sucesso?
Parece que meu amigo Sandro, por um lado, confunde o socialismo com as formas propagandeadas pelos suspeitíssimos veículos de comunicação do Ocidente, que colocam socialismo, marxismo, stalinismo, maoísmo e castrismo no mesmo saco, sem aprofundar as diferenças teóricas, as causas da repressão e da “falta de liberdade” na URSS, na China e em Cuba; e por outro, pega a face mais imediatista do capitalismo — o consumismo de produtos e serviços — como parâmetro de sucesso, esquecendo tudo o que o capitalismo, por seu turno, causou de destruição ambiental pela obsolescência programada destes mesmos produtos; fome pela desigualdade social que provoca; extermínio de povos pelas guerras de conquista; censura pelo medo da verdade; ditaduras para garantir matérias-primas baratas de governos subservientes; repressão a ideologias rivais e miséria, tudo isso para que uma pequena parcela da população pudesse, dentro do que Fernand Braudel chamou de “redoma de vidro”, ter suas quatro televisões e seus três celulares. Provavelmente 80 por cento da população mundial (pra ser modesto) sob o capitalismo não compartilha essas maravilhas do sistema; outros, apenas de modo bastante superficial, como por exemplo, “ter celulares”.
Segundo Sandro, no entanto, todos esses pontos negativos “não têm nada a ver com o sistema, mas com as pessoas que dele fazem parte”. Ora, mas essa lógica não deveria ser aplicada ao socialismo também? Todas as críticas ao socialismo poderiam ser perfeitamente refutadas com esse artifício. Dois pesos, duas medidas…
O que, de fato, representa o socialismo
As propostas socialistas são bastante claras e acessíveis para serem enumeradas aqui. Ao contrário do que é apresentado, o socialismo é o grande responsável por grande parte dos direitos e do bem-estar de que gozamos hoje. Basta uma leitura nos livros de História sobre a Revolução Industrial, que estabelece definitivamente o império do sistema capitalista no Ocidente, para vermos a realidade: pessoas expulsas de suas terras, obrigadas a se sujeitarem a vender sua força de trabalho nas cidades por salários aviltantes, trabalhando até 16 horas por dia em fábricas que empregavam até crianças de 6 anos, com capatazes prontos a dar chicotadas ao menor desvio, sem direitos nem benefícios, morando em casas insalubres, sem tempo de ter educação e muito menos lazer…
Se não fosse a organização dos trabalhadores em torno dos sindicatos — atacados de todas as formas pelos capitalistas, é bom lembrar — que defendiam os ideais de esquerda, como o anarquismo e o socialismo, ao contrário do que meu amigo pensa, hoje não teríamos televisão, nem carro, nem celular, porque sequer teríamos tempo. Não fosse a redução progressiva da jornada de trabalho para as atuais 8 horas, fruto das lutas socialistas, provavelmente nem ele, Sandro, nem eu poderíamos estar escrevendo nossos textos, porque além de não sabermos escrever, estaríamos enfurnados em alguma fábrica trabalhando numa situação que faria os escravos da lavoura canavieira do século XIX se sentirem abençoados por deus…
Sobre a Rússia, cujos dirigentes comunistas Sandro afirma que saíram ricos enquanto o povo saiu pobre, qualquer comparação dos dados sociais dos anos 80, década da crise do comunismo, com os dos anos 2000, vai deixar claro que a explosão de miséria da população russa começou exatamente com a implementação da economia de mercado. Aconteceu aquilo que todo brasileiro conhece muito bem: concentração de renda e o consequente aumento do abismo entre os biliardários e os miseráveis.
A preguiça está no conformismo da zona de conforto
Eu, sinceramente, não sei como duas das maiores peças de propaganda ideológica do sistema capitalista podem fazer sucesso através de correntes de e-mail: as ideias de que socialistas são jovens rebeldes e que o socialismo fomenta a preguiça, enquanto que no capitalismo, o trabalho duro e o mérito recompensam a todos… A esmagadora maioria das pessoas do mundo capitalista está apartada das “maravilhas” do capitalismo, e só por um acaso, elas também representam a classe trabalhadora, empregada ou desempregada. “Meritocracia” é um conceito tão inverossímil na realidade destas pessoas que não faz nenhum sentido pra elas. Embora o trabalho seja árduo, as recompensas ficam com terceiros…
Esses críticos do socialismo parecem que não sabem nada de Istvan Mészàros, Rosa Luxemburgo, Apolônio de Carvalho, Luis Carlos Prestes, Antonio Gramsci, Eric Hobsbawm, os novos movimentos sociais anticapitalistas, do povo francês que fez a Revolução e foi traído pelas classes burguesas, que depois fez a Comuna de Paris e foi massacrado pelas mesmas classes dominantes, mas que ainda assim lutou e conseguiu o sufrágio universal, o voto das mulheres, os direitos trabalhistas, a educação para todos… E provavelmente não sabem mesmo, mas só confirmam que a propaganda ideológica tem afetado com grande sucesso todas as camadas sociais, desde as mais altas, as verdadeiramente beneficiadas com o capitalismo, que entendem os complexos mecanismos de ganhar muito dinheiro sem trabalhar, até as camadas médias e mais baixas da sociedade, preocupadas com o imediatismo do consumo de bens supérfluos e serviços como parâmetro de bem estar. São consumidores, não cidadãos plenos que lutam pelos seus direitos. A zona de conforto do consumismo talvez seja a pior das preguiças.
Tudo o que se pode querer é uma alternativa ao sistema que hoje domina. O mundo já percebeu isso. Será que as milhões de pessoas que cada vez mais se rebelam contra o capitalismo e pedem um outro modelo no mundo, não gostam de conforto? Não gostam de bem-estar? Não gostam de liberdade? Pelo contrário, é justamente a favor de tudo isso que elas lutam. E elas sabem muito bem que isso não existe fora da redoma de vidro.
* Infelizmente, ambos os blogs mencionados aqui só estão acessíveis atualmente para convidados.
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Fonte: Panorâmica Social.