Caos em Manaus: ‘A fome sempre esteve presente em nossas vidas’

Colapso da saúde em Manaus revela crises sistêmicas e históricas no coração do Amazonas. Jovem professor traz relato de décadas de abandono e um clientelismo político que só favorece a elite local

População ribeirinha: moradores do Lago Catalão tentam se proteger do contágio da doença. Foto: Raphael Alves/Amazônia Real

A Amazônia é tida por muitos como o pulmão do mundo, está sempre nos noticiários nacionais e internacionais – especialmente nesses tempos de desmonte das políticas ambientais. Mas pouco se sabe sobre as pessoas que vivem no estado do Amazonas, especialmente na cidade de Manaus.

É o que revela o relato do jovem professor Wilton Abrahim. Incrustada no meio da floresta, a cidade concentra desigualdades e muita pobreza, num cenário ainda agravado pela distância geográfica de outros centros e pela dificuldade de acesso. “A fome sempre esteve presente em nossas vidas (em Manaus). Na cidade, antes mesmo da pandemia víamos homens, mulheres e crianças nos ônibus, nas esquinas, nas paradas de transportes coletivos, em uma situação muito degradante, sempre pedindo comida ou algum trocado”, conta Wilton em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Numa terra em que o poder político é contaminado, apenas uma elite que se associa a esse poder consegue sucesso. Foi assim no histórico ciclo da borracha e segue assim até hoje. “A desigualdade social na vida das pessoas na cidade de Manaus é o reflexo da ausência e desinteresse de investimento mais adequado por parte dos agentes governamentais; ao invés disso o que se nota são inúmeros recursos desviados com finalidades privilegiadas para uma classe que se autoafirma elite”, acrescenta o jovem.

Com a chegada da pandemia, o descaso de autoridades federais e o despreparo de chefes dos poderes locais, a população sente na pele as dores de uma tragédia anunciada. “A própria crise de domínio político-partidário no âmbito governamental fez com que não houvesse uma gestão humana para lidar com a pandemia, porque não basta criar decretos, é preciso criar decretos com condições mínimas e dignas para todos, especificamente para a classe mais pobre”, reitera.

Wilton revela que o maniqueísmo da imprensa nacional vendendo a ideia de que o prefeito de Manaus e o governador do Amazonas pediam socorro e denunciavam descaso do governo federal é apenas uma verdade parcial. “Manaus historicamente tem sido e vem sendo governada por um mesmo grupo político há muitos anos. Então, quando a pandemia chegou é claro que não tínhamos estrutura nenhuma nos hospitais para isso. Se antes da pandemia a situação da saúde sempre esteve em crise, imagine no ápice da pandemia”, constata.

E ainda dispara: “há pessoas que estão há 40 anos como deputados, sempre com as mesmas promessas. A própria sociedade precisa rever tudo isso; creio que mudanças são necessárias, principalmente no âmbito da escolha da classe política governamental”.

No entanto, o jovem professor não desanima, mesmo tendo perdido a avó e muitos amigos para a Covid-19. Para ele, é preciso unir as forças e lutar de forma coletiva para mudar essa realidade. “Com a participação coletiva de diversos grupos com representações sociais é possível fazer uma frente única de combate à pandemia pela justa distribuição das vacinas”, exemplifica.

Ele também defende mobilizações por políticas públicas que assegurem renda aos mais pobres. “Além disso, é imprescindível o aumento de leitos nos hospitais, assim como no acompanhamento e maior valorização dos profissionais da saúde, com melhores remunerações, e especificamente no investimento da ciência”, conclui.

Wilton Abrahim é morador do bairro São Francisco, em Manaus, e nascido e criado na capital amazonense. Tem 24 anos de idade, gosta sempre de destacar que foi aluno de escola pública, e cursou História pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Ao longo dos estudos universitários, sempre esteve envolvido com a militância em pautas sociais. Seu trabalho de conclusão do curso de História, intitulado “Teologia da libertação, pontos e contrapontos”, dedica dois capítulos à história do movimento progressista e a reação dos conservadores na Igreja católica na América Latina.

Ainda sem ter conseguido trabalho como professor, o jovem vive com a mãe. “Acredito que a força coletiva deve desempenhar um grande papel nas mudanças que virão. E estamos juntos”, resume, depois de falar sobre a sua vida neste momento de pandemia.

Confira a entrevista

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