Por Francirosy Campos Barbosa.
Apesar da vitória progressista na eleição de 2022, sabíamos que teríamos momentos difíceis, pois o Brasil passou, nos últimos quatro anos, por uma experiência devastadora de destruição dos direitos humanos, da liberdade de expressão e do uso sistemático do discurso conservador de extrema direita e a uma pandemia na qual perdemos pessoas que amávamos. Tudo isso era pulsão de morte. Ledo engano achar que estava tudo azul no País; o Brasil se tornara cinza, milhares de tons de cinza, que apagavam nossas diferenças, nossas singularidades.
Não é simples varrer o fascismo, o seu germe sempre está à nossa porta. A humanidade passou pela experiência catastrófica do Holocausto, da Nakba palestina, das ditaduras em geral, da ditadura militar no Brasil, mas nada aprendemos, não aprendemos com a dor, não aprendemos com a dor do outro.
No dia 7 de outubro, eu estava visitando uma amiga em Goiânia, depois de participar de um evento na Universidade Estadual de Goiás, em Anápolis, quando recebi uma mensagem dizendo que um amigo pesquisador estava na Globonews, por causa da Palestina. Acessei a plataforma X (antigo Twitter) e comecei a ver pessoas compartilhando coisas sobre a Palestina. Ainda sem informações sobre o ataque do Hamas, entrei no apoio ao povo palestino, porque minha ligação acadêmica e pessoal com essa questão é pública. Apoiar um povo que vive sob o apartheid, sob a violência colonialista, me parece, no mínimo, algo justo do ponto de vista humanitário.
Só no domingo fui ter a compreensão completa do que realmente acontecera: o ataque absurdo do Hamas a Israel, que levou à morte vários cidadãos civis. Israel é uma das maiores potências militares do mundo, era inconcebível para mim até então que esse tipo de ataque pudesse acontecer um dia.
No dia 12 de outubro, às 20h30, recebi um e-mail do Poder 360 que me dava uma hora de prazo para responder questões sobre as minhas postagens, sem identificá-las claramente. Imaginei que seriam essas minhas manifestações iniciais, que já tinham suscitado comentários violentos. Minha resposta, enviada antes do deadline, explicava o ocorrido: eu nunca comemorei o ataque do Hamas; por sinal, nem o nome do Hamas eu citei. O que aconteceu é que eu estava em viagem, soube que ocorriam ataques e inicialmente considerei isso uma resposta dos palestinos ao colonialismo. Não houve menção ao Hamas. Depois destaquei meu completo repúdio à morte de civis dos dois lados e pedi que as pessoas não fossem antissemitas ou islamofóbicas.
Após a publicação da matéria, que não levou em conta minhas ponderações e trazia uma chamada sensacionalista, devastadora, e que explicitamente quer atingir o governo atual, comecei a receber inúmeros ataques, por e-mail e pelo Instagram. Temo pela minha segurança e integridade física.
No sábado, 14, fui procurada pelo jornal Folha de S. Paulo, para comentar a matéria do Poder 360. Minha resposta foi a seguinte: “Em nenhum momento eu celebrei o ataque do Hamas. Eu defendo a causa palestina e defendo veementemente esse povo sofrido, empobrecido e que agora está morrendo aos olhos do mundo. Eu repudio de forma enfática as mortes de civis dos dois lados. […] A matéria veiculada pelo site Poder 360 me acusa de algo que não fiz, o que dificulta minha defesa e me expõe a pessoas violentas que passaram a me atacar enviando mensagens com ameaças e xingamentos pelo Instagram e por e-mail. Eu defendo a Palestina, a integridade e a liberdade dos palestinos”. Esta nota nunca foi publicada.
Nos últimos dias, qualquer docente, jornalista ou pessoa pública que faça um contraponto às questões relacionadas à Palestina e a Israel, independentemente de falar ou não do Hamas, vira alvo da extrema direita. Desde a semana passada, circulam listas com nomes de docentes acusados de serem apoiadores da barbárie. Com isso, querem silenciar docentes que têm posições firmes sobre a causa palestina, ou docentes que escreveram sobre o governo anterior, como é o caso do nosso colega judeu Michel Gherman ou do professor Salem Nasser, que escreveu baseado em seu conhecimento científico um artigo, no mínimo, esclarecedor sobre a situação atual.
É inadmissível que tenhamos que viver com medo em nosso próprio país quando defendemos uma causa ou escrevemos sobre violências que nos cercam. O deputado Ivan Valente, do PSOL, pediu medidas contra mapeamento de professores acusados de serem pró-Hamas. Não é possível que sigamos sendo caluniados e sem a proteção devida.
Por fim, devo dizer que o medo tomou conta de mim por horas, é um sentimento que vai e vem, mas sei que estou do lado certo. Como diz meu terapeuta: “você sabe quem você é, foque nisso”. Eu sei, e para meu conforto muita gente também sabe. Infelizmente, as pessoas preferem viver em suas bolhas protegidas, sem olhar para o sofrimento. Só lembram da pobreza e da miséria no Natal, quando fazem cestas de presentes para crianças pobres, talvez um pouco para redimir sua consciência de classe. Essas mesmas pessoas não se alinham a uma mudança verdadeira e radical de igualdade de oportunidades para todos os seres humanos. O negro e o migrante seguem sendo seus empregados, mas nunca se sentam à mesa.
Nesses dias que sigo cambaleante, mas resistente, com fé e com amigos ao meu lado, um amigo jornalista me enviou o poema da argentina María Elena Walsh, como a expressão máxima do que estamos vivendo. O poema fica ainda mais forte na voz de Mercedes Sosa.
Aos amigos da USP, de fora e do mundo que não conheço, que não soltaram a minha mão, a minha gratidão.
Tantas veces me mataron
Tantas veces me morí
Sin embargo estoy aquí
Resucitando
Gracias doy a la desgracia
Y a la mano con puñal
Porque me mató tan mal
Y seguí cantandoCantando al Sol
Como la cigarra
Después de un año
Bajo la tierra
Igual que sobreviviente
Que vuelve de la guerra
Francirosy Campos Barbosa é professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCL) da USP.
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