Por Marina Barbosa.
A decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de regulamentar a venda de medicamentos à base de cannabidiol não vai interromper as discussões sobre o uso medicinal da maconha no Congresso. Os parlamentares que têm conduzido esse debate alegam que as regras da Anvisa ainda podem ser aperfeiçoadas. A ideia, apesar de contestada pela bancada evangélica, é transformar essa regulamentação em lei e expandi-la para permitir a produção nacional desses medicamentos. Por isso, deve ser pautada logo na volta do recesso parlamentar.
A regulamentação da Anvisa, que foi aprovada no início deste mês e entra em vigor dentro de 90 dias, libera a venda de medicamentos à base de cannabis no Brasil. A comercialização será liberada em farmácias sem manipulação de remédios e mediante prescrição médica. Também foi estabelecido um limite de concentração de tetra-hidrocanabidioal (THC), o principal elemento psicotrópico da Cannabis, para que os remédios possam ser oferecidos aos pacientes.
Os parlamentares favoráveis à regulamentação da maconha medicinal reclamam, contudo, que essa concentração está abaixo do que é permitido em países como os Estados Unidos, o que vai dificultar a entrada de certos remédios no Brasil. Os congressistas ainda reclamam que a Anvisa não permitiu a produção nacional desses medicamentos. E argumentam que a decisão de trazer esses produtos prontos do exterior encarece o tratamento médico e retarda o desenvolvimento de uma nova frente de pesquisas na comunidade científica e na indústria farmacêutica brasileira. Por isso, prometem continuar discutindo o uso medicinal da cannabis na Câmara e no Senado em 2020 para tentar regular esses pontos que ficaram de fora das normas da Anvisa e ainda liberar o cultivo regulado da maconha para fins medicinais.
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“Vamos continuar com o nosso plano de trabalho, que contempla a pesquisa, a produção, a comercialização e a exportação desses medicamentos. A ideia é preservar a discussão e propor um marco regulatório para o Brasil que atenda as necessidades do país em todos esses itens”, garante o relator da comissão especial que estuda o uso medicinal da maconha na Câmara, o deputado Luciano Ducci (PSB-PR). Ele admite ainda que a ideia é entregar uma legislação mais ampla do que a regulamentação da Anvisa, que, para ele, ainda é uma regulamentação restritiva.
“A regulamentação é ruim por três motivos: proíbe o plantio, atrapalha o desenvolvimento da comunidade científica e o desenvolvimento da indústria farmacêutica”, concorda o presidente dessa comissão especial, deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que explica a razão das críticas feitas às normas aprovadas pela Anvisa – uma regulamentação “mal feita pela pressão do governo”, segundo ele.
“Sem o plantio, você tem um remédio mais caro, porque o insumo vai ser importado. Sem o plantio e sem a permissão de produzir o remédio em solo nacional você ainda atrapalha o Brasil nesse momento em que a comunidade científica mundial está se apropriando dessas moléculas para estudar e desenvolver medicamentos para inúmeras doenças, inclusive para o câncer. Então, você congela o desenvolvimento científico e ainda impede o Brasil de construir uma potente indústria de fármacos que poderia gerar empregos e contribuir com o desenvolvimento econômico”, argumenta o deputado do PT.
“É um absurdo que o Brasil, que é uma referência no setor agrícola, tenha que importar esse insumo para fazer pesquisa, até porque não é qualquer um que poderia fazer o plantio”, acrescenta Ducci, assegurando que a ideia é entregar uma legislação que libere o plantio, mas de forma segura. Segundo o deputado, a proposta da comissão especial da Câmara deve elencar uma série de medidas de segurança que permitam ao Brasil plantar e produzir esses remédios com segurança e, assim, oferecer um remédio de qualidade e de menor custo para os pacientes cuja saúde depende dessa substância.
“A ideia é liberar o plantio controlado, não o alto cultivo. Ter uma produção nacional controlada e fiscalizada, que pode baratear os custos do remédio, desenvolver a ciência e criar empregos. Se não, vamos entregar esses empregos e esses recursos para o exterior ao importar esses insumos”, acrescenta o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que é delegado de carreira, mas se tornou defensor da regulamentação dos remédios à base de cannabis ao relatar e apresentar um parecer favorável ao assunto na Comissão de Direitos Humanos do Senado neste ano.
“Devemos revisar o que a Anvisa regulamentou e assegurar de forma mais clara a garantia do remédio. Devemos garantir a pesquisa para termos remédios melhores e mais baratos. E regulamentar o plantio para evitar desvios para uso recreativo e, ao mesmo tempo, dar condições de atuação a essa atividade econômica que pode trazer investimentos e contratações ao Brasil”, defende Vieira, que também quer tocar essa discussão no Senado em 2020.
Os parlamentares ainda lembram a regulamentação da Anvisa não dá segurança futura a esses pacientes, porque será revista a cada três anos. A liberação da venda dos remédios à base de cannabis pode, então, ser alterada ou até cancelada em 2022. Por isso, os congressistas querem transformar tudo isso em uma lei que garanta a ampliação e também a continuidade dessas normas nos próximos anos. “Precisamos de um lastro jurídico, porque essa regulamentação pode ser alterada a qualquer tempo pelo Executivo. A lei traz, então, uma conotação mais sólida”, entende Vieira.
Por conta disso, os deputados e os senadores prometem dar seguimento à discussão sobre o uso medicinal da maconha em 2020. Na Câmara, uma comissão especial já trata do assunto e conta com apoio de deputados da esquerda e também da direita, como Marcelo Freixo (Psol-RJ) e Carla Zambelli (PSL-SP). Por isso, Paulo Teixeira e Luciano Ducci dizem que há clima para avançar com esse debate, apesar da resistência da bancada evangélica.
Eles adiantam que já inclusive audiências públicas marcadas para fevereiro e março, além de viagens de pesquisa para a Colômbia e o Canadá, pois o intuito é apresentar um relatório sobre o assunto já em abril do próximo ano. “Se o relatório for aprovado na comissão, vira um projeto de lei que vai para o Senado”, contou Ducci, explicando que a comissão tem caráter terminativo, o que permite que o relatório do colegiado não precise passar pelo plenário da Câmara caso haja acordo entre os deputados.
O Senado, por sua vez, pode nem esperar esse relatório para discutir o assunto. É que a Comissão de Direitos Humanos do Senado já aprovou a sugestão legislativa da Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (Reduc) de liberar a venda e a produção nacional de remédios à base de cannabis e esse projeto já está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Na CCJ, Alessandro Vieira entregou o cargo de relator a Styvenson Valentin (Podemos-RN), que se diz favorável à regulamentação da venda, mas tem resistência à liberação do plantio.
No Senado, contudo, essa discussão deve contar com um apelo emocional extra. É que a senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), que é tetraplégica, já admitiu que depende dos remédios à base de cannabis para manter seu quadro de saúde estável e é uma grande defensora do projeto. Foi ela, com um depoimento emocionante sobre sua relação com esse tipo de medicamento, por sinal, que convenceu a CDH a aprovar esse projeto. Veja o depoimento dela aqui.
“Precisamos garantir o acesso a todos que precisam, que sofrem com dor. Segundo a própria Anvisa, são mais de 13 milhões de brasileiros, com diferentes doenças, que poderiam se beneficiar desses medicamentos. Em Israel, o uso medicinal da cannabis foi aprovado em 1999 e a tecnologia israelense de maconha medicinal melhorou significativamente a vida de milhares de pessoas que a usam como um remédio permanente. Estamos mais de duas décadas em atraso”, conta Mara Gabrilli, que considera a regulamentação proposta pela Anvisa como um primeiro passo desse processo.
“Acredito que vamos conseguir sensibilizar os parlamentares e aprovar esse projeto. Afinal, a dor de um paciente brasileiro não é diferente da dor de um paciente de qualquer um dos mais de 40 países que já regulamentaram o uso medicinal da planta. Por isso, não há justificativa para que os pacientes brasileiros não tenham acesso ao que há de mais seguro e eficaz para o tratamento de suas necessidades”, defende a senadora, lembrando que uma pesquisa realizada pelo DataSenado já mostrou que 79% dos brasileiros também são a favor de os que medicamentos feitos a partir da maconha sejam fornecidos gratuitamente pelo SUS.