Canal do Panamá: Como responder a um agressor e ser independente de vez. Entrevista exclusiva com Jorge Majfud.

Como sempre, a solução foi intervir num país estrangeiro, inventar um novo país e depois fazer com que os “rebeldes” panamenhos assinassem um tratado com uma arma apontada para a nuca, como era e é costume

Foto: José Raúl Mulino Quintero, presidente do Panamã, e Marco Rubio, secretário de estado dos Estados Unidos, cubano anti-castrista

Redação.- Desde a primeira hora em que assumiu seu segundo mandato à frente da Casa Branca, Donald Trump apresentou suas novas credenciais de agressor global. Assim tem sido, dentre outros, com seus estados fronteiriços, México e o Canadá, com a China, com o povo palestino e com o istmo do Panamá, roubado da Colômbia e negociado entre a França, para construir um país a serviço dos interesses imperialistas.

Trump tem reclamado que a China é o  maior beneficiário do Canal; reivindica que os Estados Unidos paguem menos pelo trânsito das suas embarcações, e até mesmo que sejam os Estados Unidos que voltem a administrar o canal como antes do pacto Torrijos-Carter.

Mas, tem algo legítimo ou legal que reclamar Trump? Qual é a história verdadeira com relação ao canal e ao istmo panamenho (ou melhor, historicamente colombiano)? Panamá é um país completamente soberano? Como afeta a situação aos demais países da região?

Esse assunto foi tratado pelo jornalista e apresentador, Raul Fitipaldi, em diálogo exclusivo com Jorgem Majfud*, escritor, romancista e professor da Jacksonville University, para o Portal Desacato, que transcrevemos a seguir:

O Canal foi construído por milhares de escravos que Roosevelt chamava de “preguiçosos e negros estúpidos”

R.F. Os Estados Unidos têm alguma reivindicação legítima em relação à administração do Canal do Panamá?

JM. Nenhuma. Muito pelo contrário. São obrigados a pagar compensações multimilionárias pelos crimes cometidos naquele país, desde Theodore Roosevelt até George H. Bush e mais além. Claro que é uma obrigação moral, ou seja, irrelevante.

O Canal nunca pertenceu aos Estados Unidos nem foram os estadunidenses que o construíram. Roosevelt inventou uma revolução naquela província da Colômbia quando, o seu congresso, rejeitou a oferta de continuar o trabalho que tinha começado sob a direcção dos franceses porque renunciaram à sua soberania por uma soma ridícula (falamos disto em The Wild Frontier. 200 Years of Anglo-Saxon Fanaticism in Latin America, 2021). Como sempre, a solução foi intervir num país estrangeiro, inventar um novo país e depois fazer com que os “rebeldes” panamenhos assinassem um tratado com uma arma apontada para a nuca, como era e é costume.

O Canal foi construído por 50 mil trabalhadores caribenhos que não estavam na foto, em regime de escravidão. Seis mil deles morreram na construção, enquanto Roosevelt os chamava de ‘negros preguiçosos e estúpidos’.

 Washington não pagará qualquer compensação, tal como não pagará por todas as ditaduras e massacres perpetrados na América Latina e no resto do mundo. Pelo contrário, ele continua a intimidar e a se fazer de vítima. O típico mestre do que então se chamava “raça livre” (brancos), um ladrão e estuprador que acusava negros e mestiços de serem ladrões e estupradores. Tal como quando o Haiti se libertou da França e da escravatura e teve de pagar onerosas compensações aos traficantes de escravos imperiais durante mais de um século. Tal como os senhores brancos nos Estados Unidos, que receberam uma compensação pela perda da sua “propriedade privada”, e não os escravos.

A frágil soberania panamenha

RF. O Panamá tem a soberania necessária para defender o Pacto Carter-Torrijos que lhe devolveu o Canal?

JM. Não. Nas relações internacionais, os impérios assinam tratados até deixarem de servi-los. Podemos ver isso muitas vezes nos tratados que Washington assinou com os povos indígenas, com os mexicanos, com os caribenhos, desde o século XVIII até hoje, quando em 2015 Obama assinou o tratado com o Irã para limitar a tecnologia nuclear e, no dia seguinte (dois anos depois), Trump o ignorou.

Agora, com o México, o Panamá, o Canadá, a Colômbia ou a Europa, devemos recordar a máxima de Henry Kissinger, um dos seus criminosos mais famosos: “Ser inimigo dos Estados Unidos é perigoso, mas ser seu amigo é letal”.

O Panamá só tem duas opções: (1) prender-se como uma das prostitutas de Trump para receber algo em troca ou (2) estabelecer uma política de Estado baseada em acordos e uniões com países mais confiáveis, aqueles que partilham os mesmos problemas de segurança face à eterna aplicação da Doutrina Monroe. Ou seja, tratados comerciais e de união estratégica com os seus irmãos latino-americanos e com outros países, sejam europeus, africanos ou asiáticos.

Essa ideia do valor da união vem dos nativos americanos: você pode quebrar uma lança facilmente, mas se tentar quebrar várias juntas não conseguirá. Os colonos anglo-americanos ouviram e aprenderam tão rapidamente que não deixaram tempo para que as nações nativas se unissem de forma eficaz. Hoje é um símbolo irônico no brasão dos Estados Unidos.

Na briga com a China, Estados Unidos precipita um final violento para sua hegemonia

RF. As acusações de Donald Trump contra a China de usar o canal para si têm fundamento?

JM: É falso e contraditório. A presença chinesa no Panamá é insignificante. O problema é que a China não para de fazer bem as coisas e, como qualquer potência industrial e comercial, tem o direito de usar o Canal do Panamá e qualquer outro porto se não usar a violência como é tradicional nos Estados Unidos e nos impérios anglo-saxónicos.

O que mais irrita da China é que recuperou o seu estatuto de superpotência mundial sem invadir ou destruir qualquer país. Os “comunistas empobrecedores” não só se separaram do resto em termos de desenvolvimento, mas os capitalistas bem-sucedidos devem-lhes fortunas.

Se os Estados Unidos fossem uma nação moderadamente inteligente, razoável e não fanática, geririam os seus terríveis problemas económicos, financeiros e sociais e o seu próprio declínio como império numa transição negociada com a China para garantir a colaboração estratégica. Mas, pelo contrário, Washington apela desesperadamente ao fim violento da sua hegemonia.

Temos tudo para ser um país desenvolvido e mais feliz, mas somos totalmente o oposto. Imagine que isso seja um fato enquanto ainda somos uma superpotência mundial e ainda podemos criar a moeda global digitando zeros num teclado. O que deve acontecer quando não temos esses privilégios e, ainda por cima, temos que enfrentar um mundo que não nos perdoa por sermos filhos da puta (sic) por tanto tempo?

Como responder a um agressor e ser independente de vez

RF. Como deveriam reagir os países afetados, direta e indiretamente, na América Latina, quer tenham as suas costas no Pacífico ou no Atlântico?

JM. Uma resposta razoável a curto prazo seria “negociar com Trump”. Foi mais ou menos isso que o México acabou de fazer ao suspender as taxas por um mês. Em parte podemos compreender Claudia Sheinbaum: os seus cidadãos estão em primeiro lugar e ela não quer uma recessão que atinja os mais pobres, por mais breve que seja.

A resposta mais estratégica a longo prazo é, simplesmente, não negociar com um chantagista. Nem é preciso se envolver numa disputa dialética, midiática e diplomática. O silêncio e a indiferença são a única maneira eficaz de lidar com um agressor.

Se Trump impor tarifas de 25 por cento, o México deverá impor 30 por cento. É claro que isto deve ser feito em coordenação com o resto dos afectados, como o Canadá, a China e a Europa, e com o resto das futuras vítimas de novas agressões do Macho Alfa. O México deve procurar colocar os seus produtos noutros mercados. Não será apenas uma lição sobre o que acontece quando um país não respeita outro, mas também uma estratégia para garantir maior estabilidade no futuro.

O México é o principal parceiro comercial dos Estados Unidos e vice-versa, mas quando é que os Estados Unidos trataram o México como igual ou, pelo menos, com respeito? Quem não quer ver não vê.

Trump acredita que irá reverter o declínio do seu império intimidando as economias mais pequenas, mas seguir em frente é alimentar a fera. É um mal para o mundo e é um mal para nós aqui, que tenhamos de prolongar a agonia de uma mentalidade psicótica que não consegue ser feliz nem com todo o ouro do mundo.

*Jorge Majfud é um escritor, romancista e ensaísta uruguaio. Estudou arquitetura, graduando-se na Universidad de la República. Na atualidade, dedica-se integralmente à literatura e a seus artigos em diferentes meios de comunicação e é professor na Jacksonville University, na Florida.

Produção: Tali Feld Gleiser

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