Caminhada pela verdade

verdade13
Por Elaine Tavares.
O dia primeiro de abril em Florianópolis foi um dia de verdades. Depois de muito tempo, os mais diversos grupos de esquerda que atuam na cidade marcharam juntos para repudiar o golpe cívico-militar de 1964. Vieram os comunistas, os socialistas, os anarquistas, os trotskistas, os torturados, os estudantes, o povo da ocupação Amarildo, os indígenas, o MST, a CUT, a CTB, a Conlutas, os partidos políticos do campo da esquerda e os jovens que ainda buscam caminhos. Todas as divergências que muitas vezes separam, deram lugar a uma única convergência: um não sonoro à tortura, ao terror e ao estado de exceção que o Brasil viveu por longos 20 anos. Foi um dia de lembranças amargas, mas também de esperanças, de que nunca mais esse país venha viver o que já passou.
À frente da marcha ia uma mulher pequena, de rosto quadrado e olhos que sorriem. Era Derlei Catarina de Luca, professora e militante do grupo Tortura Nunca Mais, uma das tantas pessoas que, nos anos de chumbo, viveu a terrível experiência de ter seu corpo torturado por dias e dias. “Eu fui presa pela Operação Bandeirante, naqueles dias eu militava no grupo Ação Popular. Eles buscavam por uma mulher chamada Maria Aparecida Costa, e achavam que ela era eu. Por dias eu fiquei no pau-de-arara, tomei muito choque. Eles não acreditavam que meus documentos eram verdadeiros. Pensavam que Derlei era o meu nome de guerra. Depois de dias de tortura eles tiraram as minhas digitais. Eu pensei: estou salva. Porque no Dops ninguém tirava digitais, já que seria uma prova de que a pessoa tinha passado por ali”. Falar sobre a tortura é algo que ultrapassa a condição humana. Quem viveu esse horror prefere calar. Por isso, tanta dor acaba acumulada.
Derlei escreveu um livro, “De Corpo e Alma”, onde expõe essa chaga aberta da nossa história e que vive no seu próprio corpo. “Foi uma catarse e também uma necessidade. A guerrilha urbana, a preparação da guerra popular, a guerrilha do Araguaia, o sequestro de diplomatas, as reuniões clandestinas, a publicação de jornais e folhetos, a solidariedade pura e simples aos combatentes, a campanha pela anistia, foram táticas diferentes empregadas por diferentes grupos e revelam o espírito aguçado do povo brasileiro, destroem o mito de povo pacífico e constituem uma formidável história de luta. As novas gerações precisavam saber de tudo isso e eu precisava contar”.
E foi essa mulher valente, que insiste em manter viva a lembrança de todos os caídos, que conduziu a marcha que serpenteou pela cidade, mostrando os lugares onde se expressou o terror de um regime que matou e violou todos aqueles que pensavam diferente.
A caminhada começou na sede da União Catarinense de Estudantes, onde nos anos da ditadura se concentrava a luta estudantil. Foram os estudantes brasileiros os que primeiro se levantaram contra o golpe, em manifestações e batalhas, e de suas fileiras saíram os mais frutíferos militantes das organizações clandestinas que passaram a lutar com mão armada contra o regime militar. Assim, foi simbólico que a marcha começasse ali, depois de uma bonita performance teatral que sujou de vermelho-sangue as pedras do pátio. Era o sangue de todos aqueles que caíram nos porões, sob as mais terríveis torturas, por terem decidido lutar pela liberdade.
Em seguida, o povo saiu pelas ruas do centro da cidade, contando para a população sobre a verdade daqueles dias. Na porta das lojas, rostinhos juvenis vinham espiar, escutando curiosos uma história de sangue e terror. “A gente quase não estuda nada sobre isso no colégio”, disse uma vendedora de olhos arregalados. Ela tem razão. Pouco se fala da tortura, bem como do que aconteceu na cidade de Florianópolis nos anos de chumbo, com a terrível Operação Barriga Verde, a partir da qual 42 militantes comunistas foram presos e passaram por torturas terríveis. Foi um tempo em que os aliados do golpe, ligados à UDN,  também aproveitaram para matar os inimigos políticos, como foi o caso do prefeito de Balneário Camboriu, Higino João Pio. Seu único crime foi o de ser amigo de João Goulart. Por conta disso, o carimbaram como “comunista” e o prenderam acusado de “irregularidades administrativas”. Poucos dias depois ele apareceu morto na cela, enforcado, num caso muito parecido com o de Vladimir Herzog.  Para a família, alegaram ser suicídio. Não foi. O mataram.
A marcha percorreu a movimentada Conselheiro Mafra e parou em frente ao que hoje é a farmácia Catarinense. Ali, nos anos da ditadura, funcionava a Livraria Anita Garilbaldi, gerenciada pelo escritor Salim Miguel. Por ser o escritor ligado ao Partido Comunista, as autoridades locais decidiram queimar todos os livros da livraria, numa operação grotesca de violência e ignorância, típica dos regimes de força. Os livros foram tirados da livraria e queimados na calçada, enquanto as pessoas silenciavam cada dia mais. Os “perigosos” volumes continham obras da literatura mundial, sociologia, história, economia e política. Arderam porque poderiam gestar vozes críticas.
A caminhada seguiu depois para a frente do prédio da Faculdade de Educação (FAED), onde naqueles dias de chumbo funcionava a sede do Quinto Distrito Naval, que tinha o serviço secreto mais eficiente do Brasil, o  Centro de Informações da Marinha (Cenimar). Todas as informações relacionadas aos então chamados “subversivos” estavam ali registradas e, ao longo da ditadura, o Cenimar extrapolou das suas funções chegando a prender e torturar militantes, com a mesma violência usada pelo temível DOI-CODI. Era uma fonte importante de informação, cujos arquivos até hoje não foram totalmente abertos. E, para lembrar os mortos de desaparecidos catarinense, as gentes na marcha foram dizendo os nomes daqueles que ousaram lutar. Arno Preis! Presente! Frederico Eduardo Mayr!  Presente! João Batista Rita! Presente! Luis Henrique Tejeda Lisboa! Presente! Paulo Stuart Wrigth! Presente!… E tantos outros, cujos corpos nunca foram encontrados mas, que vivem na lembrança dos companheiros. Nunca esquecidos! Vivos, portanto…
E lá se foi a marcha da verdade, da memória e da justiça, juntando velhos e novos militantes numa única vontade. Re-cordar, passar de novo pelo coração, para que nunca mais torne a acontecer. A próxima parada foi em frente ao Palácio Cruz e Souza, hoje um museu, mas que nos anos da ditadura era sede do palácio do governo. Foi ali que a gente de Florianópolis acendeu o pavio da grande virada democrática com a histórica “novembrada”, a revolta popular que encurralou o presidente João Figueiredo e o governador Jorge Borhausen. Comandada pelos estudantes da UFSC, muitos dos quais acabaram presos, a novembrada apontou o rumo para um tempo novo, no qual as pessoas pudessem outra vez falar, atuar politicamente, sonhar com novas formas de organizar a vida. Ali, já no cair da noite, essa luta foi lembrada por Marize Lippel, uma das estudantes presas naquele conflito.
A caminhada encerrou na Esquina Democrática, espaço histórico da luta social em Florianópolis. Muitas falas emocionadas, muitas canções, e muita alegria. Porque apesar da dor por todos aqueles que tombaram, pelos desaparecidos, pelos que ainda hoje sofrem as sequelas das atrozes torturas praticadas pela repressão, há que celebrar a vida que toda essa gente semeou, tornando possível a claridade de um tempo novo, a democracia, ainda capenga, ainda incompleta, ainda insuficiente. Mas, não fossem eles, estaríamos ainda vivendo as trevas do medo, do silêncio cúmplice, do terror.
Porque nunca é demais  lembrar que a ditadura vivida no Brasil não foi uma coisa isolada. Ela fez parte de uma política dos Estados Unidos para a América Latina, que visava impedir que se espalhasse pelo continente a boa-nova da vitoriosa revolução cubana. Essa luta na ilha caribenha mostrava que era possível vencer o império, que era possível garantir soberania, que era possível repartir as riquezas do país com todos, e não só com alguns. Mas, a grande nação do norte queria seguir dominando, então criou a famosa “Operação Condor”, que plantou ditaduras em  vários países da América Latina. Nos vizinhos Paraguai, Uruguai e Argentina, milhares de vidas também foram ceifadas. Os militares desses países foram treinados para praticar as mais horrendas torturas e, com elas, impor, regimes de força e opressão.
Esse treinamento, feito pela também temida Escola das Américas, até hoje sobrevive nas cartilhas militares de todo o continente, sendo ainda responsável pelas práticas de tortura que seguem sendo feitas nas milhares de cadeiras e quartéis desse país e dos demais da América Latina. Basta citar o emblemático caso do pedreiro Amarildo, embora milhares de anônimos sigam sofrendo nos porões.
Essas verdades duras, essas verdades nuas, caminharam também pela linda Miembipe, a Desterro da gente, a Florianópolis de hoje. E junto com a multidão que marchava iam os nossos mortos: Adolfo, Paulo Wrigth, Higino, Luis, Maria, Sônia, Mosquito, homens e mulheres que pavimentaram com sangue nosso presente de liberdade. Por isso que, ao final de tudo, foi armada uma ciranda. Braços dados, mãos apertadas, corações pulsando, canções. As velhas e as novas gerações, unidas, num átimo de convergência, para  dizer “nunca mais, nunca mais”.
E esse primeiro de abril se fez, de verdade, memória, justiça.

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