Cadáver negro, estudante de medicina branco

Por Allan Brum de Oliveira.

Quando a então Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo era fundada em 1912, sob os auspícios das organizações médicas e da elite de SP, ninguém realmente realista esperava que a comunidade de estudantes fosse significativamente composta por descendentes de escravos. Hoje, embora tenham passado mais de 100 anos de sua história, menos do que 3% dos estudantes se autodeclaram pretos¹.

Um estudante médio, na altura do terceiro ano do curso, já manuseou inúmeros cadáveres e peças anatômicas, já dissecou a maior parte dos sistemas, já treinou técnicas de cirurgia em pulmões e corações frescos, entre outros procedimentos².


Mas afinal, quem é esse cadáver?

Os corpos de estudo são fornecidos pelo Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC-USP), para onde é trazida qualquer pessoa que morra por causas mal-definidas ou sem acompanhamento de um médico capacitado que possa atestar a causa de morte. Veja bem, se uma pessoa morre em leito hospitalar, muito provavelmente um médico deve assinar seu atestado de óbito e, com isso, o cadáver será encaminhado diretamente para um serviço funerário. Não é o caso dos indivíduos que morrem longe de equipamentos sociais de saúde (em casa, na rua etc). Descartada suspeita de morte por causas violentas, essas pessoas são encaminhadas para o SVOC, onde é realizada autópsia e apurada a causa mortis. Ali é realizada a seleção dos cadáveres aptos para estudo e, em seguida, esses corpos são distribuídos sem custo às entidades de ensino cadastradas da cidade de São Paulo.


[Trecho da audiência da Comissão da Verdade (2014) que discutiu irregularidades no SVO, entre desaparecimentos e adulteração de laudos]

Mas, afinal, quem é esse cadáver? Essa pergunta orienta o artigo e, como veremos, não é nada fácil respondê-la. Sobretudo devido a escassez de trabalhos que busquem definir o perfil dos cadáveres. Podem nos ajudar, no entanto, (1) o traçado regional de origem dos corpos e (2) os critérios de seleção do centro de pesquisa.

(1) – Vejamos, então, o mapeamento dos corpos que chegam ao SVOC-USP.



[O mapa territorializa o risco relativo de um cadáver ser encaminhado para o SVOC-USP. Por exemplo, as populações das regiões vermelhas tem o dobro de chance de chegar ao SVOC do que a população geral da cidade. Já as populações das regiões azul escuro tem metade da chance de serem encaminhadas para o SVOC em relação a população geral]

Como percebemos, o mapa revela (irregularmente) uma proporção maior de corpos que chegam ao SVOC na medida em que nos distanciamos do centro da cidade. Por agora, isso indica apenas que nas regiões periféricas existe menor proporção de população com acesso a equipamentos sociais de saúde, onde um médico capacitado poderia estabelecer a causa de morte e encaminhar o corpo diretamente para um serviço funerário. Isso pode indicar (1) escassez de unidades de saúde naquele terrítorio; (2) impossibilidade dessas populações acompanharem seu adoecimento a longo prazo (por exemplo, devido a alta carga horária de trabalho) em uma unidade, na qual haveria registro e detalhamento de caso; (3) e\ou distância das unidades em casos de eventos agudos (derrame, infarto agudo do miocárdio etc) acarretando mortes em trânsito (dentro da ambulância ou outra forma de transporte).  

Tudo isso naturalmente não deve parecer novidade pro leitor, familiarizado com o fato de que as periferias padecem pela falta de serviços assistênciais públicos e concentram a parcela da população com menor acesso aos serviços privados de saúde.

Também não deve surpreender o cruzamento dessa mapa com a distribuição da população negra na cidade de São Paulo. Vejamos.



A semelhança entre os gráficos é auto-explicativa: a população negra, via de regra, reside nas regiõescom menor disponibilidade de recursos assistenciais; isso sugere que, entre os corpos que chegam ao SVOC, muito provavelmente existe uma maior proporção de negros do que entre a população geral de São Paulo;  além disso, como se pode perceber, o SVOC e a Faculdade de Medicina da USP estão localizados na subprefeitura mais branca da cidade (Pinheiros).

(2) Soma-se a isso um segundo fator, consequente dos critérios de seleção dos centros de pesquisa: para que um cadáver no SVOC se torne elegível, ou ele foi doado pela família (pequena parte dos casos), ou ele deve ser não-identificado e não-reclamado. Assim, tem-se por pressuposto que a grande maioria dos cadáveres elegíveis para pesquisa são corpos de indigentes mortos. Segue trecho de declaração do Ministério da Saúde sobre o último censo com a população em situação de rua:

“A Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua 2008, do MDS,(…) revelou que 18,4% dos entrevistados já passaram por experiências de impedimento de receber atendimento na rede de saúde. (…)A população em situação de rua, estimada em 50 mil adultos, é caracterizada como um grupo de pessoas que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, que habita em espaços públicos como ruas, praças, viadutos e, ocasionalmente, utiliza abrigos e albergues para pernoitar. Segundo o MDS, essa população é composta predominantemente por homens (82%), negros (67%)”.

Ou seja, quando traçamos a origem regional dos corpos e os qualificamos enquanto indigentes, temos um indicativo preliminar importante de que a população de cadáveres dissecados e estudados nas faculdades de medicina é predominantemente composta por corpos negros, pobres e periféricos.


Racismo de Estado


Em suma, o fenômeno em discussão se trata de uma tendência geral do uso de corpos negros para experimentação médica por parte de pesquisadores e estudantes brancos. Nesse sentido, é inevitável demarcar desde já uma relação de poder e interpretar os fatos a partir da noção de uma guerra permanente entre grupos sociais, isto é, uma histórica estrutura de dominação que se estabelece a partir do sequestro dos povos africanos, do seu cativeiro e da exploração escravagista. As elites, desde então, impõem um regime de repressão à insurreições e defendem sua vitória de raça e de classe, perenizando a sujeição dos corpos negros.  

Essa relação de poder se manifesta de diversas formas no cenário atual. Poderíamos nos atentar sobre a faceta mais diretamente assassina dessa arquitetura social, através da incursão seletiva do aparato penal sobre os corpos negros. Estaríamos, nesse caso, discutindo as técnicas de poder do sistema de justiça, o encarceramento em massa e o genocídio que se abate sobre a juventude negra nas periferias de São Paulo. No entanto, essa discussão não nos auxiliaria nesse momento, já que os corpos negros exterminados, seja pela Polícia Militar, seja pelas mílicias etc, em geral são enviados ao Instituto Médico Legal (o IML, ligado a Secretaria de Segurança Pública), junto com todos os mortos com suspeita de causas não-naturais. Esses corpos nunca chegam, então, no SVOC, que recebe apenas os mortos devido a causas naturais. Sabemos, dessa forma, que corpos exterminados não poderiam, portanto, se tornar os corpos de estudo das faculdades de medicina.



[“Militantes sagram, denunciando a justiça seletiva que criminaliza, condena, dizima, população empobrecida. A Síria se assustaria com 8 carros funerários saindo do mesmo bairro, no mesmo horário” – Eduardo\A era das chacinas]


Talvez nos seja mais útil analisar uma faceta igualmente insidiosa, porém menos direta dessa guerra permanente. Afinal,“(…)a política é a guerra continuada por outros meios”. Vamos, nesse caso, analisar um poder que se expressa não por “fazer morrer” os corpos negros, mas por “deixá-los morrer”. Um biopoder que arregimenta a segregada e racista sociedade brasileira e que se fundamenta sobre a capacidade de prolongar algumas vidas humanas, de prevenir os seus percalços, de postergar o processo de adoecimento de determinados grupos sociais em detrimento de outros. Assim, essa perspectiva nos ajuda a refletir sobre uma regulamentação dos diferentes grupos sociais pelo poder público, uma regulamentação que delimita o nível de exploração do trabalho e a distribuição dos recursos entre esses diferentes estratos da sociedade. Com isso, observamos que os recursos de seguridade (previdência e assistência em saúde, sejam eles privados ou originários do fundo público) são desviados em direção às populações brancas e privilegiadas em termos de classe. O efeito é justamente que as populações mais exploradas, com os postos de trabalho mais precarizados, fadadas a maiores agravos de saúde, sejam as mesmas populações negligenciadas pelo poder público, desassistidas pelo sistema de saúde e residentes das zonas urbanas mais vulneráveis. São essas populações que nos oferecem os corpos negros a serem estudados nas Faculdades de Medicina em São Paulo.

“Então, nessa tecnologia de poder, (…)como vai se exercer o direito de matar e a função do assassínio, se é verdade que o poder de soberania recua cada vez mais e que, ao contrário, avança cada vez mais o biopoder(…) regulamentador? Como um poder como este pode matar, se é verdade que se trata essencialmente de aumentar a vida, de prolongar sua duração, de multiplicar suas possibilidades, de desviar seus acidentes, ou então de compensar suas deficiências? Como, nessas condições, é possível para o poder político matar, reclamar a morte, pedir a morte, mandar matar, dar a ordem de matar, expor à morte não apenas seus inimigos, mas seus próprios cidadãos? Como que esse poder, que tem essencialmente o objetivo de fazer viver, pode deixar morrer? Como exercer o poder da morte, como exercer a função da morte, num sistema político centrado no biopoder? É aí, creio eu, que intervém o racismo”. (Foucault\ Em defesa da Sociedade\ 17 de março de 1976)


O cronicamente subfinanciado Sistema Único de Saúde brasileiro que, por príncipio, deve buscar formas de superação dessa lógica (por exemplo, mediante distribuição equitativa de seus recursos e através de campanhas de enfrentamento ao racismo no SUS), é também o primeiro a voltar seus parcos recursos para isentar os gastos privados da elite branca, seus planos particulares em seguradoras privadas, e a pagar os lucros milionários das indústrias de equipamentos, de insumos e de medicamentos etc. Enquanto isso, aos contribuintes menos privilegiados restam os planos coletivos de trabalho, os segmentos mais sucateados do sistema de saúde e os serviços mais distantes dos grandes centros de atenção.

Não surpreende que entre a população negra exista maior morbimortalidade materno-infantil, maior risco de morte por causas externas, maior prevalência de doenças adquiridas em condições desfavoráveis (desnutrição, anemia, doenças do trabalho, DST\HIV\aids, abortos sépticos, depressão etc) e maior prevalência de quadros de evolução agravada ou tratamento dificultado (hipertensão, diabetes, coronariopatias, insuficiência renal, câncer etc).

Em resumo, não surpreende que a população negra tenha menor expectativa de vida e maiores chances de se tornar uma peça anatômica.


[Ato em repúdio ao caso da estudante Mônica Mendes, barrada pela segurança da Faculdade de Medicina da USP em uma noite de confraternização.]



Encerramento

Pelo menos duas contradições se sobressaltam dessa discussão.

1) Apesar de avanços recentes e importantes no quadro geral do ensino superior no Brasil, as Faculdades de Medicina em São Paulo seguem conservando um perfil majoritariamente embranquecido e elitizado. Assim, em geral, são brancos os estudantes e pesquisadores que dissecam os cadáveres majoritariamente negros.

Isso não nos surpreende: o corpo negro apenas conserva seu tradicional status de objeto de estudo por parte dos sujeitos brancos que podem acessar as entidades de pesquisa e lançar seu olhar verticalizado sobre a realidade das populações negras. Esse é apenas mais um fator que expõe a urgência por medidas que democratizem o acesso à universidade, como as cotas raciais, que embora mínimas, são uma possibilidade de enfrentamento com a histórica hegemonização do ambiente universitário pela elite branca de São Paulo, a quem o vestibular realmente serve.

2) Na democracia burguesa brasileira, erigida desde de seus primórdios sobre o cadáver da população negra, os grupos sociais que oferecem corpos de estudo pras faculdades de medicina são justamente os grupos sociais menos propensos a colher os benefícios do avanço científico e assistencial que as universidades desenvolvem. Ironia: em uma sociedade na qual prevalece uma medicina mercantilizada, os milagres do conhecimento e da tecnologia são relativamente incapazes de socorrer e prolongar a vida dos mesmos corpos negros marginais que continuamente escorrem para os laboratórios dos grandes centros tecnológicos.

Evidentemente que a dissecção e os estudos anatômicos são fundamentais para a formação profissional e para o desenvolvimento científico da medicina. O trato com os tecidos biológicos e com o cadáver é elementar para se esclarecer as causas de morte e, assim, trazer alguma paz às famílias. Com esse trabalho, podemos estabelecer dados epidemiológicos e saberes essenciais para adoção de políticas de saúde adequadas. Assim, o que está em jogo aqui não são propriamente os fundamentos dessas práticas. Afinal, ninguém consideraria desejável que retornássemos a uma época em que a Igreja sacralizava os corpos e proscrevia as experimentações com cadáveres. No entanto, não podemos deixar de questionar quais setores da sociedade são servidos pelos produtos dessa medicina. E de que grupos ela se serve.

[1] – Conforme questionário de avaliação socioeconômica da Fuvest. A metodologia parte de uma média simples entre os dados referentes aos matriculados nos últimos 6 anos. Obtivemos 76.95% autodeclarados brancos, 2.88% autodeclarados pretos, 12.93% autodeclarados pardos etc.

[2] – É inquestionável que os cadáveres estão entre os principais professores de qualquer estudante de medicina. Ao longo do curso, é necessário que os jovens amadureçam sua relação existencial com a mortalidade. O cadáver guarda em seu semblante o próprio tabu da morte.“Ele nos lembra que somos criaturas de um dia – que somos transitórios e evanescentes e que a consciência da nossa finitude pode nos ensinar algo sobre como podemos ou devemos viver” (Irvin D. Yalom).

*Allan Brum de Oliveira é estudante da Faculdade de Medicina da USP e atua na Rede Emancipa de Cursinhos Populares.

 

Fonte: Carta Maior

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