Por Juliano Giassi Goularti.
O Brasil fez ou não fez a sua Revolução Burguesa? Essa é uma questão muito discutida por Caio Prado Jr, Florestan Fernandes, Celso Furtado dentre outros intérpretes do Brasil. Há, inclusive, amplo debate entre Nelson Werneck Sodré, por meio do livro Introdução à revolução brasileira (1958), Celso Furtado A pré-revolução brasileira (1962) e Caio Prado A revolução brasileira(1966). Acrescentaríamos também A revolução burguesa no Brasil (1975) de Florestan Fernandes nesse debate.
Cada autor apresenta um enfoque diferente. A leitura marxista de Sodré e Prado é diferente da interpretação estruturalista de Furtado que é diferente da análise sociológica de Florestan. Porém, todos concordam com a tese de que a Revolução Burguesa representa um processo de evolução da sociedade, que perpassa pelo sistema político, pela organização social, pela formação cultural e pela reestruturação do padrão econômico. O espírito burguês ergue-se contra a estrutura da sociedade colonial, emancipa-se dos estamentos senhoriais e passa a circunscrever um novo processo civilizatório.
Partindo dos intérpretes do Brasil, observa-se que existe um sentimento de angústia com uma Revolução Burguesa mal realizada. Com a Revolução, existiria o antes e um depois. Assim, podemos dizer que na França existe o antes da Revolução Francesa (1789) e o depois. O mesmo com a Revolução Alemã (1848) e Russa (1917). Foram convulsões em que o povo marchou nas ruas em direção ao palácio de Versalhes, palácio do Rei Frederico Guilherme 4º e palácio do Kremlin de Inverno, derrubando monarquias e estabelecendo novas relações.
Enquanto no Brasil, a nossa Revolução Burguesa, associada à Revolução de 1930 que pôs fim à Primeira República Brasileira, conhecida popularmente como República Velha ou República do Café com Leite, não teve a participação do povo como protagonista marchando em direção ao palácio do Catete.
Por aí, podemos melhor refletir o caráter da Revolução Brasileira, se é que podemos definir enquanto Revolução, e enquanto Burguesa. Os proprietários de riqueza que se constituem os donos do poder (terra, capital, dinheiro e trabalho) não ofereciam nenhuma perspectiva de alteração da estrutural radical em 1930 (como na França, Alemanha e Rússia). Estavam de costas para o povo e de olhos bem fechados para enfrentar o velho sistema colonial primário mercantil.
Sob o estatuto colonial propriamente dito, o que houve foi que o senhor rural se converteu em aristocracia agrária e parou por aí, não se convertendo numa burguesia agrária. Numa economia que por quase longos cinco séculos se constituiu com base no trabalho escravo, na grande propriedade, na monocultura e numa colônia de exploração/exportação, a formação de uma classe burguesa significaria uma insurreição com a estrutura agrária e com o tipo de dominação tradicional, ou seja, patrimonialista.
Se não se formou uma burguesia, o que então prevalece? Para mim, um patronato com pele de burguês. Numa linha cronológica, em 1888 abolimos a escravidão, em 1889 proclamamos a República, 1880 a 1932 é o período embrionário da indústria nacional, 1933-1955 há um processo de industrialização, embora restringida, pós-1956 com o bloco de investimentos correspondeu um novo padrão de acumulação, a industrialização pesada e, por fim, em 1964 os militares com apoio civil dos donos dos meios de produção dão um golpe.
Cada período histórico é acompanhado por um novo processo técnico. As ondas de inovação Schumpeteriana em cada um desses períodos levaram ao desenvolvimento do modo especificamente de produção capitalista. Porém, em cada período, a mentalidade, o espírito e os cacoetes dos proprietários de riqueza continuaram enraizados ao velho estatuto colonial. Como então podemos definir esta classe enquanto propriamente burguesa se está presa ao estatuto colonial e sob os grilhões da dominação tradicional? Isto não é burguesia no seu sentido autêntico, mas sim patronato com pele de burguês.
Quando Getúlio Vargas tomou o poder em 1930, bem que tentou romper os grilhões da dominação patrimonialista e fazer a Revolução Burguesa, isto é, 141 anos depois da Revolução Francesa, 82 anos depois da Alemã e 13 depois da Russa. Todavia, as pretensões de Vargas em fazer a lição de casa foram sepultadas em 1964 quando a emergente burguesia se associou novamente com o velho patronato da Casa Grande.
Sem missão histórica nenhuma a cumprir, a aliança cordial entre a burguesia emergente e o velho patronato resultou no reforço do estatuto colonial e nessa condição de colônia de exploração na qual o Brasil é um grande negócio. Este é seu sentido e sua posição dentro da divisão internacional do trabalho.
Desta forma, a nossa Revolução Burguesa não passou de um mero ensaio. Pois então, como fazer uma autêntica Revolução Burguesa sem uma classe propriamente burguesa? Com uma economia de acumulação primitiva permanente? Como fazer uma Revolução Burguesa numa economia colonial, periférica e dependente? Sob condições adversas, Vargas bem que tentou esse ensaio em 1930. Foi traído, não pelo povo, mas pelo patronato. Esse mesmo patronato tratou de se reorganizar para não perder os anéis e depois os dedos. Penso que Vargas imprimiu forças para romper, em parte, com essa herança. Mas como demonstra sua carta testamento, “Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida”.
A modernização e o desenvolvimento pela via nacional ensaiado por Vargas esbarraram no agrarismo rústico, no estatuto colonial, no plano internacional e no pacto de dominação interna das elites patrimoniais. Assim a modernização foi conservadora, a Revolução não foi burguesa, as forças populares foram aniquiladas e o capitalismo nacional foi associado ao grande capital internacional de modo que a Ordem e Progresso estampado na nossa bandeira significassem a dominação da terra, da força de trabalho e dos recursos públicos.
Por isso o status quo da ordem patrimonialista e do progresso conservadordiante de uma elite entreguista que não pensa com sua própria cabeça e um Estado patrimonialista que está estruturado em relações políticas estritamente atrasadas conscientemente delivery ao poder do atraso é certa forma de manter as relações de dominação e de poder. Nesse esquema em que o Estado está dominado pelo poder do atraso, assistimos à grilagem de terras públicas, à usurpação indevida dos recursos públicos, à institucionalização corrupta da dívida pública, ao desmatamento da Amazônia e ao achincalhamento de qualquer iniciativa popular de caráter mais progressista.
Para tanto, se houve uma Revolução no Brasil ela não foi burguesa, foi patronal. Eis então a dominação tradicional como fonte da estabilidade econômica e política do patronato brasileiro.
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Juliano Giassi Goularti é doutorando do Instituto de Economia da Unicamp.
Fonte: Brasil Debate.