Por José Eustáquio Diniz Alves.
“Proletários de todo o mundo, uni-vos!”
Marx e Engels, 1848
A ideia da União Europeia (UE) ou dos “Estados Unidos da Europa” é um sonho antigo no sentido de unir e tornar pacífico um continente que foi responsável pelas maiores guerras mundiais nos últimos 500 anos. A integração de países heterogêneos sempre foi uma ideia progressista e que buscava superar os interesses provincianos e a estreiteza da soberania nacional em nome de uma soberania regional que pudesse abrigar uma maior diversidade e o livre fluxo de pessoas que falam diferentes línguas e possuem diferentes culturas. O grande sonho seria uma União mundial pacífica com democracia e livre circulação de pessoas, intercâmbio e ideias. A União Europeia seria um primeiro passo para um mundo sem fronteiras e a União Global. Mas ao invés da união e da solidariedade entre os povos, um espectro ronda a Europa, o espectro da divisão, do nacionalismo, do isolacionismo e da xenofobia.
Desde o embrião da União Europeia, tem havido um conflito entre dois caminhos para a Europa: a visão liberal-clássica e a visão social-democrata (a opção socialista, de cunho marxista, nunca teve força). A visão liberal-clássica valorizava a liberdade individual como o princípio mais importante do Ocidente e do cristianismo. Para tanto, trata-se de garantir os direitos de propriedade e a economia de livre mercado em uma Europa de fronteiras abertas. O Tratado de Roma, assinado em 1957, foi a principal realização para a criação de uma Europa baseada no liberalismo clássico. O tratado estabeleceu quatro liberdades básicas: livre circulação de bens, livre oferta de serviços, livre movimentação de capital financeiro e livre migração. De acordo com essa visão, não haveria nenhuma necessidade de se criar um super-estado europeu.
Na visão social-democrata, defendida por políticos como Jacques Delors e François Mitterrand e por diversos interesses estatistas, nacionalistas e socialistas, a “União Europeia seria como um império ou uma fortaleza protecionista para quem está de fora e intervencionista para quem está dentro” (conforme a crítica liberal). Os defensores dessa visão compartilham do desejo de um Estado forte europeu, reproduzindo, de certa forma, as nações-estado, mas em um nível continental. Eles queriam um estado de proteção social, buscando a redistribuição de renda e riqueza, a regulamentação econômica e a harmonização das legislações dentro da Europa.
Contudo, o processo de construção da União Europeia não cumpriu todos os requisitos econômicos e políticos requeridos para gerar uma governança democrática e eficiente em termos econômicos. As disputas internas cresceram, enquanto o desempenho econômico diminuía. Em 1980, os países que fazem parte da UE (28 paises) representavam 30% do PIB mundial os Estados Unidos (EUA) representavam 22% e a China somente 2,3%, segundo dados do FMI. A União Europeia era 13 vezes maior do que a China e tinha 8,3 pontos a mais do que os Estados Unidos. Em 2015 a UE (16,9%) já perdia para a China (17,6%) e estava um ponto à frente dos EUA (15,7%). As projeções do FMI para 2021 apontam que a UE estará quase empatada com os EUA, em torno de 15%, enquanto a China deve atingir 20% do PIB mundial. A Europa está estagnada há oito anos. O PIB per capita da zona do euro está abaixo do nível de 2008 e a desigualdade de renda aumentou. Existe uma revolta contra a globalização que tem favorecido os países do leste asiático e enfraquecido as classes trabalhadoras do “velho mundo”.
É difícil manter um sonho de União em meio a uma estagnação econômica e social. A disputa entre as forças liberais e social-democratas nunca deixou de existir. Após a crise de 2009, a grave recessão econômica dos PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) já indicava que uma parte da UE não estava bem e dependia da ajuda dos países mais ricos da União, acirrando a disputa ideológica. O caso da Grécia foi mais grave e a saída do país (Grexit) da UE era uma possibilidade muito concreta, mas, de imediato, foi evitada (ou adiada). O Leviatã da União Europeia está sufocado por uma burocracia ineficiente, uma dívida crescente e diversos problemas de corrupção e mau uso dos recursos. Além disto a tecnoburocracia de Bruxelas é vista como opressora econômica e promotora do austericídio.
Mas o maior golpe à integridade da União Europeia veio do Reino Unido, que no dia 23/06/2016, uma quinta-feira, quando a maioria dos cidadãos votou por abandonar a UE em histórico referendo. O chamado Brexit recebeu 51,9% dos votos, enquanto 48,1% votaram pela permanência no bloco. A diferença foi pequena. Apesar de 51,9% da população terem votado pela saída, a Escócia, a Irlanda do Norte, e cidades britânicas como Londres, Manchester, Liverpool votaram, em sua maioria quase absoluta, pela permanência na UE. Inglaterra e Gales apoiaram majoritariamente o Brexit. A votação que abala o projeto europeu teve participação recorde de 71,8% (30 milhões de pessoas) e incentiva o movimento contra o establishment político que vem crescendo no continente. Sai a segunda maior economia do bloco, ao qual os britânicos pertencem há 43 anos. Isto mostra que o Reino Unido está dividido, como mostra a figura abaixo.
A Escócia que votou pela permanência na União Europeia, provavelmente não vai querer ficar junto com aqueles que votaram pela saída. A chefe do governo escocês, Nicola Sturgeon, afirmou que a saída da UE provocaria a convocação de outro referendo, dessa vez para decidir a permanência da Escócia no Reino Unido. Ou seja, a Gran Bretanha está a caminho de se tornar a Pequena Bretanha.
Diante da crise separatista, o primeiro-ministro, David Cameron, anunciou que deixará o seu cargo depois do congresso de seu partido em outubro. A negociação sobre o processo de saída ficará a cargo de outro Primeiro-Ministro. O político populista e xenófobo, Nigel Farage, líder do partido independentista UKIP, e um dos defensores do referendo do Brexit, pediu ao Palácio de Westminster (sede do Parlamento) que substitua Cameron por um Executivo que seja partidário da desfiliação. O conservador Boris Johnson é o favorito para ser o próximo primeiro-ministro. O Brexit foi comemorado pelos eurocéticocs e xenófobos do continente, como Marine Le Pen, presidenta da Frente Nacional francesa e o holandês Geert Wilders que tem um projeto político abertamente anti-imigração. Donald Trump também defende o protecionismo e a xenofobia nos Estados Unidos. Sarah Palin, a ridícula figura do “Tea Party”, navegando na onda britânica, quer que os Estados Unidos saiam da ONU. A vitória do Brexit certamente foi uma derrota da ideologia social-democrata, mas ao contrário de ser uma vitória da ideologia liberal-clássica, parece ter sido uma conquista especial da xenofobia e do provincialismo.
Outro derrotado do Brexit foi Jeremy Corbyn que tem sua liderança no Partido Trabalhista ameaçada. Dois membros da legenda abriram uma moção de não-confiança contra Corbin, que fez uma forte campanha pela permanência do país no bloco europeu. Porém, o empobrecimento da classe trabalhadora e a insegurança gerada pela crise econômica e a insegurança do desmonte do estado de bem-estar social levou a base do partido trabalhista para votar pela saída da União Europeia, esquecendo de qualquer aspecto do lema: “Proletários do mundo, uni-vos”. A Gran Bretanha está saindo de forma voluntária da UE, mas a Grécia pode sair involuntariamente em função de uma dívida impagável. A Turquia que queria entrar deve desistir de fazer parte de um edifício em ruínas. Aliás, problema não é o que falta na Turquia. Existe uma divisão interna dentro dos países e uma divisão externa entre os países da UE.
A decisão dos britânicos desencadeou uma histórica queda da libra esterlina e das bolsas europeias e mundiais, colocando a União Europeia diante de um desafio sem precedentes e o mundo em um território desconhecido. Logo na manhã de sexta feira, nos EUA, os mercados abriram no vermelho, o preço do ouro (uma mercadoria que muitos investidores fogem para em tempos de incerteza) foi para cima, e os comerciantes em todo o mundo preparado para um dia de perdas (NASDAQ -4,12%). No Brasil o índice Bovespa caiu 2,8% e o dólar subiu. Provavelmente o “mercado urso” vai continuar nesta segunda-feira.
A saúde da economia internacional é significativamente influenciada pelas políticas e regulamentos que regem os sistemas financeiros. Os mercados não gostam da incerteza. Com os mercados de ações e moeda já em baixa, alguns analistas estão preocupados com o que vai acontecer com os mercados imobiliários. Segundo Raquel Landim “A saída do Reino Unido da União Europeia é uma irresponsabilidade política e um suicídio econômico”. A Bloomberg mostrou que as 400 pessoas mais ricas do mundo perderam US$ 127.400.000.000 na sexta-feira. O ex-presidente do Banco Central dos EUA, Alan Greenspan disse que o Brexit “É apenas a ponta do iceberg”, pois “A economia global está em sérios apuros reais”. O bilionário e especulador, George Soros, parece ter registrado grande lucro da inesperada saída do Reino Unido da UE. Ele disse que o Brexit torna a “desintegração da UE praticamente irreversível”.
De fato, o comércio internacional que já vinha em retração desde 2015 deve sofrer com o crescimento do protecionismo. O gráfico abaixo uma grande expansão da globalização após a queda do Muro de Berlim e o Fim da URSS. Com a entrada da China na OMC e o superciclo das commodities houve um aumento expressivo do comércio internacional que bateu todos os recordes até 2008. A crise de 2009 foi passageira e o comércio se recuperou rapidamente em 2010 e 2011. Mas as exportações mundiais ficaram estagnadas entre 2012 e 2014 e caíram rapidamente em 2015.
O gráfico também mostra que o valor das exportações mundiais em 2015 (em torno de 16 trilhões de dólares) é equivalente ao valor comercializado em 2008. Ou seja, o mundo está caminhando para uma “década perdida” no comércio internacional. No primeiro quadrimestre de 2016 o valor das exportações caiu 2% em relação ao mesmo período de 2015, como mostra a Organização Mundial do Comércio. O “livre comércio” deixou de ser fonte de estímulo para as economias nacionais e a globalização está virando desglobalização.
A saída do Reino Unido da União Europeia deve estimular outros separatismos e novas barreiras ao comércio internacional. Por exemplo, o zagueiro Piqué, do Barcelona e da seleção espanhola de futebol, famoso por sempre defender a sua terra natal, a Catalunha, e sempre favorável à independência, causou polêmica no dia 21/06, ao fazer um gesto obsceno durante o hino espanhol, antes da partida contra a Croácia, pela Eurocopa, dois dias antes do Brexit. Os jornais espanhóis, repercutiram com o catalão Mundo Deportivo chamando de incrível e o Marca avaliando como lamentável. Já existem os termos Nexit (Holanda), Frexit (França) e Swexit (Suécia) e o recuo da UE está posto no horizonte.
O voto pela saída do Reino Unido da EU e seus desdobramentos pode ser o estopim de uma grande crise econômica internacional, crise esta que já estava incubada esperando o momento propício para desencadear uma nova recessão mundial. Segundo o jornal britânico “The Independent”, 3 milhões de pessoas assinaram no fim de semana uma petição ao Parlamento para que o Reino Unido celebre um segundo referendo sobre a União Europeia (UE). Mas como disse o irônico Winston Churchill: “O problema em se cometer suicídio político é que você, continuando vivo, pode se arrepender”. O Reino (des)Unido cortou o cordão umbilical com a UE.
Os estudos mostram que a globalização do passado, “pré-Queda do Muro de Berlim”, em um ambiente de energia barata e menos problemas ambientais, promovia uma maior integração global com benefícios esperados da otimização de competências, redução de custos e novas oportunidades. Isto mudou com a entrada da China na globalização, pois o “Império do Meio” virou a fábrica do mundo e provocou recuo no poder da classe trabalhadora nos países ocidentais que foram os líderes do capitalismo mundial dos séculos XIX e XX. Mas globalização do século XXI associada ao avanço tecnológico desintegrou a chamada “classe trabalhadora” da Europa e do Ocidente. Países que ganharam com o preço baixo das mercadorias chinesas agora encontram ampla resistência em sua opinião pública para reformas necessárias para enfrentar a nova realidade econômica e demográfica, como as do mercado de trabalho e da previdência. A crise nos países ocidentais deve reverberar na China que também já conta com um grande volume de problemas internos. Estamos diante da globalização dos riscos.
O sociólogo Wolfgang Streeck, professor do Instituto Max Planck, acredita que o sistema capitalista democrático do pós-guerra caminha para o seu fim. Para ele o casamento do capitalismo com a democracia está praticamente encerrado e há uma tendência de baixo crescimento, sufocamento da esfera pública, avanço da oligarquia financeira, da corrupção e da anarquia internacional. A baixa taxa de juros praticadas pelos bancos centrais dos países desenvolvidos e as políticas de afrouxamento monetário para prover o mercado com liquidez, como as chamadas “quantitative easing”, causam bolhas financeiras. Esse processo gera também grande especulação nas bolsas de valores, o que pode levar a uma grande queda (crash), como em 1929, 1987 e 2008. Por exemplo, Porto Rico tem uma dívida monstruosa e impagável. Portanto, há muitos sinais de uma próxima crise financeira e de um novo colapso da economia global.
A economia internacional está abalada pela baixa produtividade dos fatores de produção e por uma dívida global que ultrapassa US$ 200 trilhões. O protecionismo, a xenofobia e as guerras (Ucrânia, Líbia, Iêmen, Iraque, Síria, Afeganistão, República do Congo, etc.) só agravam a situação. O Brasil vive a sua mais longa e profunda recessão da história. A Venezuela está entrando em colapso total. A América Latina está vivendo dois anos de recessão. O crescimento econômico da África desacelera. Os países exportadores de petróleo estão em crise e a Arábia Saudita pode virar uma outra Síria se não conseguir resolver seus problemas internos e a competição com o Irã. O aumento da taxa de juros nos EUA e a eleição de Donald Trump pode acelerar a crise econômica e a decadência americana. Uma desglobalização nos termos desenhados pelos últimos acontecimentos pode ser pior do que a globalização que prevaleceu desde o fim da Guerra Fria. Talvez a desintegração do Reino Unido aconteça antes da desintegração da União Europeia, o que pode desestabilizar as forças centrípedas da “montanha-russa” da globalização pós-Gueda do Muro.
Mas as forças centrífugas surgem do centro e também da periferia. O Partido Comunista Grego (KKE), criticando a “aliança reacionária das classes burguesas da Europa capitalista, com o objetivo de sangrar à morte as classes trabalhadoras”, divulgou resolução sobre o Brexit, dizendo na conclusão: “Os interesses do povo grego, do povo britânico e de todos os povos da Europa não podem ser abrigados sob ‘falsas bandeiras’. Não podem ser postos sob as bandeiras dos diversos setores da burguesia, que estabelecem suas escolhas e suas alianças de acordo com seus próprios interesses e com base na maior exploração possível dos trabalhadores. A necessária condenação da aliança predatória do capital e a luta pelo desmembramento de todos os países da União Europeia, para ser efetiva, tem de estar conectada à necessária derrubada do poder do capital pelo poder dos trabalhadores. A aliança social da classe trabalhadora e as demais camadas populares, o reagrupamento e o fortalecimento do movimento comunista internacional são precondições para pavimentar o caminho que levará a essa esperança”.
Contudo, a conjuntura atual indica um enfraquecimento das forças de esquerda e um aprofundamento da crise europeia e mundial. O Brexit pode marcar o fim do Reino Unido, o fim da União Europeia e o fim da globalização tal como conhecemos. As três primeiras semanas de janeiro de 2016 entraram para a história como o pior começo de ano de todos os tempos para o mercado financeiro e para a economia global. Agora em junho o Brexit é um sinal que as dificuldades da globalização vão colocar novos desafios. Para usar os termos do sociólogo Zigmunt Bauman, a modernidade sólida se desmanchou e a modernidade líquida está fervendo em função do calor da crise econômica e do aquecimento global.
Parece que o mundo vai passar por grandes dificuldades em decorrência da conjugação das crises econômica, social e ambiental.
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: [email protected]
Fonte: EcoDebate.