Por Bernardo Gutiérrez, no El Periódico de España | Tradução: Rôney Rodrigues.
Quando o Brasil chegou a 400 mil mortes por covid, o artista Mundano quis preparar um troféu genocida para Jair Bolsonaro, declaradamente contra o uso de máscaras e vacinas. Ele começou a fazer moldes de gesso do rosto do presidente e um dia destruiu uma das figuras. “Indignado com tantos contratempos sociais, ambientais, culturais, acabei quebrando uma dessas esculturas em uma performance e compartilhei nas redes. As pessoas me agradeceram”. O gesto artístico de Mundano acabou se transformando em uma série. Nasceram bustos dourados em forma de troféu. E bolsonarinhos de cera. “Foi uma piscadela para derreter o racismo, a homofobia, tudo o que Bolsonaro representa”, garante o artista. Os vídeos bombaram: viraram terapia para multidões e saltaram para a rua. Os bustos começaram a ser destruídos, queimados, derretidos. Jogado em latas de lixo. Amassados em manifestações. Pulverizado em frente aos ministérios em Brasília.
Mundano é um dos muitos artistas brasileiros que lutam contra um presidente que acossa duramente a cultura. Bolsonaro não tem Ministério da Cultura (apenas Secretaria). Ele cortou fundos para a Agência Nacional de Cinema (ANCINE) e para a Cinemateca Brasileira, entre outras instituições. Tenta apagar todas as criações críticas, como o beijo Trump-Bolsonaro do grafiteiro Bad Boy Preto. Pressiona para censurar, como aconteceu com uma obra do Coletivo Es uma Maluca, no Rio de Janeiro, que recriou um esgoto cercado de baratas de onde saia a voz de Bolsonaro.
“Ele chegou ao poder com ódio revanchista contra os artistas e a cultura, porque é daí que vem a capacidade de luta e dignidade”, diz Stella Rabello, atriz com reconhecida carreira internacional, que desde 2018 atua na Frente de Teatro RJ, uma rede de 23 coletivos da região metropolitana do Rio de Janeiro que se opõe ao desmonte cultural.
Como, então, está o trabalho dos artistas brasileiros que se rebelaram contra Bolsonaro?
Projeções para estarmos juntos
Durante um panelaço que ocorreu no início da pandemia, a frase Fora Bolsonaro foi projetada em muros de todo o país. Assim nasceu o coletivo Projetemos, no qual se envolveram centenas de VJs (video jockeys), artistas visuais e designers. O Projetemos viralizava frases como “fique em casa” e “lave as mãos”. As projeções foram elevando o tom em defesa da saúde pública e contra Bolsonaro. “Nosso papel é projetar na parede o que as pessoas estão pensando. Gritamos nas paredes o que você não pode gritar nos ouvidos das pessoas”, diz VJ Spencer, um dos artistas envolvidos. Essa autoproclamada “rede nacional de projecionistas livres” converteu-se naquilo que Bruna Rosa, outra das articuladoras, chama de “rede de informações e afetos”. O Projetemos apostou em perder o controle. Em seu site, ele disponibilizou ao público uma ferramenta para projetar e compartilhar imagens da atualidade, através de um grupo aberto de WhatsApp.
“Materializar em luz os desejos sufocados se tornou uma forma de transbordar. Isso nos ajudou a tomar partido publicamente”, assegura o artista plástico Paulinho Fluxus, colaborador do Projetemos, que realizou intervenções no Brasil e na Europa. As projeções aconteceram em locais emblemáticos como a Torre de Londres, no Parlamento Britânico e nas embaixadas brasileiras.
“Bolsonarocentrismo”
Bolsonaro é o epicentro. O alvo de todos os dardos. Sua figura produz uma obsessão absorvente. E protagoniza muitas das artes visuais da plataforma Design Ativista, por meio da obra de alguns conceituados designers como CrisVector e PorraCristo, e nos cartazes de protesto de artistas como Carlos Contente, Ítala Isis, Gustavo Speridião ou Marcelo Oliveira. Na música “Desgoverno/ Impeachment já”, composta por músicos consolidados como Zeca Baleiro, Zélia Duncan e Chico César, Bolsonaro é o leitmotiv. Até a cantora Anitta, considerada pela Time e Forbes como a mulher mais poderosa do Brasil, critica constantemente Bolsonaro. O bolsonarocentrismo, para o gestor cultural paulista Demétrio Portugal, pode acabar sendo um problema: “Combater o fortalece”.
Se o bolsonarocentrismo é a tônica, a visibilidade da distopia é o outro lado da moeda. No cinema, alguns dos longas-metragens mais celebrados, como Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles) ou Divino Amor (Gabriel Mascaro), recriam um futuro Brasil violento e autoritário. Na literatura, o ícone musical Chico Buarque publicou o romance Essa gente, que tem uma atmosfera ultradireitista asfixiante. Em Odiolândia, a artista Giselle Beigelman coleciona comentários nas redes sociais sobre ações policiais contra mendigos da Cracolândia. Os comentários não apenas elogiam a polícia, mas exigem mão de ferro contra gays, imigrantes nordestinos ou o MST. O próprio Mundano, em sua última exposição (Semana de Arte Mundana), usa materiais de tragédias ambientais: cinzas de incêndios na Amazônia, lama da tragédia de Brumadinho ou óleo derramado no litoral nordeste. A distopia comanda e veicula a criatividade.
A atriz e diretora teatral Gabriela Carneiro da Cunha, idealizadora da peça Altamira 2042, que aborda a tragédia causada pela megabarragem do rio Xingu, denuncia um presente “radicalmente distópico onde um presidente se esforça para disseminar um vírus letal”. Por outro lado, Isabel Ferreira e Eduardo Bonito criaram o festival Brasil Sequestrado, que já contou com artistas como Zahy Guajajara, Alice Ripoll ou Emerson Uýra. “O fascismo (de Bolsonaro) é como uma espécie de máquina sequestradora de sonhos que opera no subconsciente coletivo, sequestrando o futuro, interrompendo violentamente todos as potências, tudo o que estava sendo construído”, diz Isabel.
Lutas temáticas
No final de 2021, o prestigiado Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) recebeu a exposição Moquém – Surarî: arte indígena contemporânea, integrante da 34ª Bienal de São Paulo. Pela primeira vez, o curador indígena Jaider Esbell tornou visíveis desenhos, pinturas, fotografias e esculturas de etnias da América Latina. Por outro lado, a influente Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), dedicou sua última edição às plantas, tendo como título a palavra Nhe’éry, que em guarani denomina o bioma da Mata Atlântica. As vidas ameaçadas pelo governo Bolsonaro tornam-se material artístico. “As narrativas apagadas ao longo da história não são mais vistas como algo minoritário, estão passando por um processo de fortalecimento”, diz Demétrio Portugal, destacando o crescimento de autores indígenas, negros e trans.
Para Felipe Brait, produtor cultural e integrante do coletivo Frente 3 de Fevereiro, a fragmentação temática ocorre porque “tem mais adesão dentro de seu próprio nicho”, mas também para evitar os haters. A polarização agressiva do Brasil faz com que os artistas, nas palavras do gestor cultural Jonaya de Castro, às vezes evitem o confronto direto: “Cada um trabalha na sua linha principal de investigação, o racismo, a destruição ambiental. Escolhem caminhos que não são necessariamente mais sutis”. Para o artista e pesquisador Alex Frechette, autor do livro Bolsonarismo e Arte – Notas sobre um cotidiano autoritário, a fragmentação não é negativa: “Na arte a coisa ganha outro tempo e busca-se uma reflexão que se conecte com a história, a psicanálise, a filosofia. Os caminhos são múltiplos”.
Negritude e vidas resilientes
Especialmente exuberante é a produção cultural de autores negros. A música brasileira subiu o tom das reivindicações através de artistas como Emicida, Drik Barbosa, Caio Prado, Linn Quebrada e Liniker (estes últimos, mulheres trans), entre outros. Por outro lado, a nova onda de escritores negros encabeça a lista de prêmios e vendas, conforme noticiado pelo The New York Times. Destacam-se Djamila Ribeiro, Pieta Poeta, Itamar Vieira Júnior (cujo best-seller Torto Arado já conquistou o mundo), Geovani Martins (O sol na cabeça foi publicado em espanhol) ou Jefferson Tenório (ganhou o prêmio Jabuti em 2021, o mais importante do Brasil), entre muitos outros.
O que é mais eficiente contra Bolsonaro, os trabalhos contra sua figura ou a criação em campos identitários? Brígida Campbell, artista e professora da Faculdade de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sustenta que o papel da arte é se opor à lógica bolsonarista e apresentar outra forma de ver a vida: “Essas ações mais sutis são um poderoso campo simbólico construído por meio de fragmentos, mas que compõem um corpo político crítico, ramificado, rizomático, que se infiltra no imaginário político e crítico do país”. As intervenções performativas do Desvio Coletivo, que colocam o corpo da mulher em desobediência, tornam visível outra realidade possível. A resistência, como aponta a artista Joan Zatz em sua tese de doutorado Arte em Fuga, consiste na continuidade de modos de vida dissidentes. Essas vidas – negras, trans, gays, indígenas, cooperativas – causam conflito entre as perspectivas de mundo. A reprodução da vida se opõe à pulsão de morte de Bolsonaro.
Anos atrás, a Ocupação 9 de Julho, espaço efervescente de resistência em São Paulo, pediu ajuda a alguns artistas. E decidiram que sua contribuição artística seria a construção dos fogões de cozinha. Desde então, sob o lema “comida para alimentar a luta”, divulgam a vida cotidiana que rodeia seus fogões.
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