Progredimos do ‘integrar para não entregar’ dos militares de outrora para o ‘integrar para entregar’ dos de agora
Por Caetano Scannavino.
O termo “grileiro” é designado aos ladrões de terras públicas. Vem de uma prática antiga para forjar papeis falsificados da propriedade, que eram colocados em uma caixa cheia de grilos. Passado um tempo, a ação dos insetos dava aos documentos um tom amarelado e envelhecido, como se fossem originais.
Hoje em dia o “grilo” está mais sofisticado, com o uso de mapas e GPS, registros nos Cartórios de Terras, replicação também junto aos órgãos fundiários e da Receita, se aproveitando de um sistema precário de informação, controle e fiscalização, ao que tudo indica, propositalmente ineficiente. Com isso, dão uma aparência legal à fraude. Aí é só aguardar as esperadas anistias e facilidades para regularização definitiva, publicadas de tempos em tempos pelos nossos governos, reféns do lobby ruralista.
Como resultado, tem-se um caos fundiário com títulos de propriedade que se sobrepõem em uma mesma área, muitas vezes com mais registros de terras no papel do que terras. Se no Brasil bem público é de ninguém, faz todo sentido quando dizem que a Amazônia é “terra de ninguém”, até porque grande parte das suas terras é pública, em tese, minha, sua, de todos os brasileiros, sobretudo dos povos tradicionais que já viviam nelas antes mesmo dos portugueses chegarem.
Assim está escrito na Constituição, só que na realidade essas terras vêm sendo historicamente surrupiadas, e pior, com a conivência do Estado. E nossa também, que além de deixarmos levar o que é nosso, ainda pagamos para fazerem isso.
Poucos se deram conta da MP da Grilagem – Medida Provisória nº 759 – aprovada pelo Congresso em 2017, anistiando invasores recentes de terras publicas antes florestadas de até 2.500 hectares com valores para regularização muito abaixo do mercado. Estudo do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) estima algo em torno de 118 bilhões de reais a ser custeado pela sociedade brasileira para legalização destes grileiros.
A história se repete também nos estados da Amazônia Legal, cujas terras sem destinação fundiária são maioria, o que tornam as regras estaduais tão ou mais impactantes que as federais. No ano passado, depois de tramitar somente por 50 dias, o Amapá publicou um projeto de lei copia-e-cola da famigerada MP 759. Neste ano, foi a vez do Mato Grosso, com uma lei aprovada sem audiência publica que favorece a especulação imobiliária.
Agora em junho, no estado recordista em conflitos fundiários, a Assembleia Legislativa do Pará aprovou em caráter de urgência, com apenas 33 dias de tramitação, uma nova lei de regularização fundiária que praticamente legaliza a grilagem de suas terras. É o PL Estadual nº 129/2019, que seguiu para sanção do governador. Se não vetar, ele terá que explicar para os paraenses porque está abrindo mão de R$ 9 bilhões que o Estado deixará de arrecadar diante dos valores irrisórios estipulados para privatização dessas terras, nove vezes abaixo do valor de mercado, conforme aponta Nota Técnica do Imazon recomendando veto integral.
Ao invés de medidas de combate às irregularidades para que as boas práticas predominem, o que temos visto são políticas que querem acabar com as ilegalidades legalizando o ilegal. Com isso, premiam aqueles que se apropriam das riquezas que são de todos, cometem crimes fundiários e ambientais que compensam, turbinam seus ganhos sem que o Estado arrecade, e ainda deixam a conta para todos pagarem.
Justificam o injustificável em nome de um progresso que mais parece vanguarda do atraso. O caos fundiário está muito mais para indutor do subdesenvolvimento do que o contrário. É um dos principais causadores dos conflitos que colocam o Brasil como recordista de assassinatos no campo.
Alimentam um ciclo perverso de corrupção e roubo de florestas publicas para serem desmatadas e esquentadas como áreas de usufruto privado. Ainda sobre o Estudo do Imazon, “a MP da Grilagem pode levar a um desmatamento adicional de 16 mil km2 até 2027, com emissões de gases de efeito estufa na ordem de 6,5 megatoneladas de CO2 – o que equivale a 15 anos de emissões do setor de energia no Brasil”.
O negócio está mais para o lucro fácil com a especulação de terras do que com o que se produz nelas, visto que os níveis de produtividade agropecuária na Amazônia estão entre os mais baixos do país. Como aponta levantamento do Ipam (Instituto de Pesquisas da Amazônia), já desmatamos duas Alemanhas, sendo que 65% desta área é ocupada por pastagens de baixíssima produtividade, com menos de uma cabeça de gado por hectare. Como agravante, vai-se a floresta sem que suas riquezas se convertam em bem-estar para os amazônidas – a titulo de informação, o Norte supera o Nordeste em proporção de extrema pobreza (IBGE).
Um modelo de ocupação que, ao favorecer a cultura do ilegalismo, atrai o que há de pior, afugentando quem quer fazer a coisa certa, investimentos sérios que poderiam consolidar uma outra cultura, a da responsabilidade socioambiental.
Se pelo tal progresso novas leis de grilagem como essas prosperarem, somadas aos projetos defendidos pelo atual governo – como os que acabam com a reserva legal ou liberam a aquisição de terras por estrangeiros – de fato, progredimos: do “integrar para não entregar” dos militares de outrora para o “integrar para entregar” dos de agora.
A continuar assim na Pátria Amada, nem ordem nem progresso…