Por Marcelo Menna Barreto.
A relação do Brasil com o mercado financeiro é marcada por uma dependência crônica de taxas de juros elevadas, uma política que perpetua desigualdades e limita o desenvolvimento econômico. Essa dinâmica é comparada por especialistas a uma “Síndrome de Estocolmo”. O país parece fascinado pelo mesmo sistema que o sequestra.
Mas para entender esta história, é preciso voltar algumas décadas. A novela dos juros altos no Brasil remonta à década de 1980. O país enfrentava uma hiperinflação galopante e, a fim de conter a escalada de preços, o governo federal adotou medidas de ajuste fiscal e monetário que incluíam a elevação das taxas de juros. A estratégia criou um ciclo vicioso: quanto mais altos os juros, maior o endividamento público; quanto maior o endividamento, mais o governo precisava aumentar os juros para atrair investidores estrangeiros.
Após a estabilização econômica proporcionada pelo Plano Real em 1994, os juros altos se impuseram como ferramenta definitiva da política monetária. O Banco Central passou a utilizar a taxa Selic como principal instrumento para controlar a inflação. No entanto, essa política teve um custo social elevado: o crédito caro limitou o acesso de empresas – em especial, pequenas e médias – ao financiamento, freou o consumo das famílias e ampliou a desigualdade.
Um país viciado em juros altos

Paulo Kliass, economista e especialista em políticas públicas. Foto: Acervo pessoal
Paulo Kliass, doutor em Economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, é contundente: “O país está viciado em taxas de juros muito elevadas”.
Ele explica que a estratégia inicialmente justificada no Plano Real como necessária para controlar a inflação, consolidou-se como uma armadilha. “Você monta um sistema que fortalece a política monetária e subordina o restante ao medo de voltar à inflação elevada”, afirma. O resultado foi a atração de capital estrangeiro especulativo, criando um círculo vicioso: “Colocar dinheiro no Brasil a curto prazo se tornou a maior rentabilidade do planeta”, declara.
A crítica de Kliass vai além. Ele aponta a falta de medidas de regulação, como quarentenas para capitais externos. Elas, segundo o economista, poderiam reduzir a volatilidade e limitar o impacto da “ciranda financeira”. Para ele, a dependência dos juros altos consolidou o “financismo”, uma estrutura que, mesmo após três décadas, permanece difícil de superar.
“A armadilha foi criada por nós mesmos”, assegura. Kliass destaca que oportunidades de mudança, como o início do governo Lula em 2003, foram perdidas por falta de ousadia política.
Oportunidade perdida por Lula
Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, doutora em Direito Administrativo e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), concorda com a análise de Kliass. Ela relaciona a dependência do Brasil ao sistema financeiro à “Síndrome de Estocolmo”.
Para ela, a Emenda à Constituição 126, que, em 2022, abriu as portas para a possibilidade de revogação do teto de despesas primárias criado pelo governo Michel Temer com a PEC do Fim do Mundo (2016), representou uma oportunidade histórica e perdida para repensar a política macroeconômica. Afirma também que o governo Lula preferiu manter “um modelo desgastado, perdendo a chance de promover mudanças estruturais”.
“Era como se o governo atual estivesse numa Síndrome de Estocolmo, adotando a agenda anterior”, compara Élida. Ela critica a postura conservadora da gestão Lula por manter metas de inflação irreais e ceder às pressões do mercado financeiro.
“O teto de despesas primárias havia se provado incapaz de entregar o que havia prometido”, diz, destacando que o governo poderia ter adotado metas mais realistas e construído alternativas de médio prazo.
“A comparação com a Grécia de 2015 é inevitável”, sugere. Assim como o partido Syriza, que perdeu apoio popular ao não questionar as bases de sua inserção na crise do Euro, o governo brasileiro deixou escapar a chance de mobilização e mudança estrutural. “Agora está enredado com uma corda no próprio pescoço, numa questão de chantagem”, conclui.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a abertura do 6º Brasil Investment Forum (BIF 2023), no Palácio Itamaraty. O evento reúne ministros e representantes do setor empresarial para discutir as oportunidades no Brasil para investidores estrangeiros. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
A influência do mercado financeiro e a austeridade como política
Mas o que veio para substituir a Emenda 126 foi o Arcabouço Fiscal, defendido pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tão austero quanto a PEC do Fim do Mundo.
Para Élida, ainda houve inconsequência da atual equipe econômica prometer para a sociedade um superávit primário em 2025.
“Bastou o governo tentar desacelerar o ajuste fiscal em 2024 para o mercado financeiro precificar riscos e gerar instabilidade”, lembra ela, destacando a dependência das decisões públicas em relação às expectativas do mercado.
As medidas, tanto o Teto de Gastos Públicos de Temer e o Arcabouço Fiscal de Lula/Haddad, acabaram reforçando a dependência do país ao mercado financeiro.
Ambos os mecanismos impuseram limites às despesas primárias (gastos com saúde, educação, segurança e infraestrutura), sem controlar diretamente os gastos com juros da dívida pública.
Isso gera uma série de efeitos que aumentam a influência do rentismo sobre a economia brasileira.
David Deccache, doutor em Economia e assessor técnico da bancada do PSOL na Câmara dos Deputados, frisa que o sistema financeiro exerce influência significativa sobre as políticas fiscal e monetária do Brasil. Destaca a forte defesa da chamada austeridade fiscal, em especial nos gastos sociais e investimentos públicos.
A ideia nada mais é do que manter a economia desacelerada. Economistas liberais, exemplifica Deccache, chegam a apontar o quanto um país pode crescer.
“Eles têm uma taxa de desemprego que acham ideal, chamada de NAIRU (Non-Accelerating Inflation Rate of Unemployment), que é a taxa de desemprego que não acelera a inflação. A ideia é que, se o desemprego cai muito, os trabalhadores pedem aumento de salário, o que aumenta os custos para os patrões. Aí, os patrões repassam esses custos para os preços, gerando inflação”, explica.
Não são meras coincidências manchetes como a da agência de notícias Reuters no dia 10 de janeiro passado e da Bloomberg Línea em 30 de agosto de 2024. A agência britânica noticiava que as Bolsas de Nova Iorque tiveram forte queda após “dados de emprego acima do esperado nos EUA”. Já o braço do conglomerado norte-americano para a América Latina registrava a queda do Ibovespa com “a taxa histórica de desocupação no Brasil”.
Deccache questiona a necessidade do teto de gastos. Desde o primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, passando pelos dois primeiros mandatos de Lula e os de Dilma Rousseff, “o Brasil sempre funcionou só com a meta de resultado primário”, baseado no tripé macroeconômico adotado no país em 1999: Metas de inflação, Câmbio flutuante e Responsabilidade fiscal.
Ele questiona a necessidade do teto de gastos, afirmando que “o Brasil sempre funcionou só com a meta de resultado primário”.
Sem o teto, Deccache garante que seria possível expandir gastos “em setores com alto impacto multiplicador”. Assim, a economia cresceria e geraria mais receita, permitindo alcançar superávit primário. “Foi o que Lula fez em seus primeiros mandatos”, recorda.
Meta irreal dá munição à chantagem do rentismo

Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli critica a justificativa de que o aumento da Selic ajuda a controlar a inflação, argumentando que o Brasil sofre, principalmente, com inflação de custos (preços administrados, combustíveis, energia) e não de demanda
Foto: Igor Sperotto
É aí que vem a grande crítica do economista ao governo. “Poderia ter enviado apenas uma meta de superávit primário ao Congresso, como sempre foi no Brasil”, lamenta, ao afirmar que entende que existe a correlação de forças no Congresso. “Mas o Lula nem tentou”, registra indignado.
A hipótese aventada por Deccache é que governo, neste ambiente de polarização, “tenta sinalizar para as classes dominantes que é confiável para manter a ordem, ao contrário da extrema-direita”.
Só que, na mesma linha de Élida, Deccache entende que o governo está colocado em uma camisa de força. “Hoje, a gente tem o tripé macroeconômico, mais o teto de gastos”, pontua.
Todos os especialistas ouvidos por Extra Classe são unânimes também sobre a meta de inflação do Brasil. A classificam de irreal e que dá desculpas para o Banco Central aumentar a Selic. Da mesma forma, as críticas são unânimes ao governo.
Se, de um lado, o BC se tornou independente no governo Bolsonaro, por outro, o governo tem maioria no Conselho Monetário Nacional (CMN) para definir um patamar mais condizente com a conjuntura e menos permissível.
“Poderiam ajustar a meta de inflação para 4,5%, o que forçaria uma redução na taxa de juros”, projeta Deccache.
Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli destaca o tamanho do impacto de cada 1% na taxa Selic. “É gerado um custo de R$ 55,2 bilhões ao ano em juros da dívida pública. Isso porque o aumento leva à emissão de novos títulos da dívida. Um ciclo vicioso de juros sobre juros, explica ela. “É um sistema que se retroalimenta e não para de crescer”, aponta.
Ela critica a justificativa de que o aumento da Selic ajuda a controlar a inflação, argumentando que o Brasil sofre, principalmente, com inflação de custos (preços administrados, combustíveis, energia) e não de demanda. “Subir juros não vai fazer o preço do diesel cair”, diz. Ela também condena os cortes sociais e a redução do reajuste do salário mínimo, no esforço da “chamada responsabilidade fiscal”, feita para banqueiro ver.
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