Por Ana Paula Evangelista e Caroline Oliveira.
Até o dia 10 de fevereiro deste ano, foram registradas 204 mortes de quilombolas devido à covid-19, cerca de 20 mortes por mês, e 5.119 casos confirmados, segundo levantamento da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq).
Entre a população indígena, foram 962 mortos e 48.405 casos confirmados, de acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), até o dia 12 de fevereiro.
Os dados são extraoficiais. Em relação aos quilombolas, o governo federal não produz dados sobre o impacto da pandemia acerca da população. Quanto aos indígenas, segundo a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, até o dia 11 de fevereiro foram 42.508 casos confirmados e 564 óbitos.
A pandemia atinge a todos da mesma forma?
“Essa doença está impactando de forma igual a sociedade brasileira? Além dos mais vulneráveis em função de idade ou comorbidades, existem outras vulnerabilidades?”, questiona Fernando Ferreira Carneiro, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Ceará.
Em suas palavras, estudos mais recentes mostram que as populações tradicionais e mais pobres têm sido as mais afetadas pela pandemia.
“Se já é difícil o acesso ao Sistema Único de Saúde na cidade, imagina em zonas remotas, de difícil acesso para as equipes de saúde da família, populações que tem dificuldades de se deslocar até os sistemas de saúde e que muitas vezes não estão nas nossas bases de dados. E, para piorar essa herança histórica, vivemos hoje um apagão de dados do Ministério da Saúde”, afirma Carneiro.
Segundo Carneiro, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Ceará, a discrepância ocorre porque a Apib “considera também os indígenas que vivem nas cidades, os não aldeados e os que estão aguardando a homologação de suas terras”.
Governo recua de prioridade a quilombolas na vacinação
Em entrevista ao Brasil de Fato, José Carlos Galiza, integrante da Conaq, afirmou que a organização já vinha denunciando, desde o início da pandemia, o descaso do governo Bolsonaro em relação aos quilombolas.
Segundo Galiza, as políticas públicas não chegam. E, quando chegam, é com deficiências, seguindo a linha de falta de estrutura de saúde para a população.
“A maioria dos quilombos não tem posto de saúde; e os que têm funcionam com deficiência. Não tem agentes de saúde em todas as comunidades. Algumas que têm, não cobre todas as famílias”, afirma Galiza.
“O acesso ao sistema de saúde é muito precário e principalmente quando se trata da questão de urgência e emergência. As comunidades estão em um lugar de difícil acesso e muitas das vezes são tratadas de forma discriminatória pelo Estado brasileiro.”
Para se ter uma ideia, os quilombolas estavam dentro da lista do grupo prioritário do Plano Nacional de Imunização até dezembro de 2020. A partir de janeiro de 2021, no entanto, o governo federal recuou.
Incompatibilidade de dados sobre indígenas
“Nós temos uma incompatibilidade de dados que tem a ver com a definição do que é ou não ser indígena. Em função disso, são eliminados 500 mortos, por exemplo.”
As iniciativas das organizações da sociedade civil de produzir dados sobre a realidade da crise sanitária sobre as populações tradicionais do Brasil revelam a ausência do poder público nessas localidades.
Sem os esforços para produzir informações sobre a situação da crise entre tais populações, o governo federal também acaba por não dispor de ferramentas para mitigá-la, fazendo com que continuem “invisibilizadas historicamente pelas políticas públicas”.
Vigilância Popular da Saúde e Ambiente
Diante da situação das populações tradicionais, Carneiro questiona se não é a hora de criar o que se pode chamar de uma Vigilância Popular da Saúde e Ambiente.
“No contexto atual de negacionismo e muitas vezes de até acusações de práticas de genocídio ao governo federal, temos que nos perguntar sobre o que está acontecendo com essas populações”, afirma o pesquisador.
Em um artigo publicado na Revista Trabalho, Educação e Saúde, denominado Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente, Carneiro e Vanira Matos Pessoa, também da Fiocruz Ceará, afirmam que o Brasil tem populações isoladas geograficamente e que estão expostas a riscos de saúde diferentes dos conhecidos pelas populações urbanas.
“Há um modo de produzir que vai desde a pesca artesanal até a agricultura, o extrativismo, a mineração, que expõem essas populações a um conjunto de agravos específicos, que precisam ser conhecidos e cuidados pela vigilância da saúde e atenção primária de saúde”, afirmam os pesquisadores.
Nesse sentido, a ideia de uma Vigilância Popular da Saúde e Ambiente nasce como uma alternativa, que leva em consideração as condições e características das populações, à invisibilização das mesmas quando o assunto é cuidado com a saúde, principalmente durante a pandemia de covid-19.
Outras lições
Além da atuação da Apib e Conab, outras lições que podem ser aproveitadas são as iniciativas, por exemplo, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de organizações das favelas das cidades que estão formando agentes populares de saúde como uma forma de organização comunitária.
“É muito importante, ao discutir a Vigilância Popular da Saúde e Ambiente, resgatar um conceito de saúde do próprio MST, que é lutar contra tudo que nos oprime. E nesse momento de apagão de dados, que se reforça a invisibilidade dessas populações, é muito importante que o SUS, as instituições de pesquisa e as universidades contribuam com dados, informações para que essas populações sejam realmente cuidadas”, conclui Carneiro.
Outro lado
O Ministério da Saúde, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), afirmou em nota enviada à reportagem “que os dados epidemiológicos estão organizados por Distritos Sanitários Especiais Indígenas [DSEI] e não detalham etnia, localidade e nomes dos pacientes por respeito ético”.
“A Sesai mantém atualizado, com dados qualificados, o Boletim Epidemiológico que registra todos os casos e óbitos por covid-19 entre indígenas aldeados, inscritos no SIASI – Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena, conforme legislação vigente. Os boletins estão disponíveis no site https://saudeindigena.saude.gov.br”, diz o texto.
A secretaria afirma ainda que leva serviços de atendimentos básicos de saúde à aproximadamente 6 mil aldeias em todo país, “por meio de 34 DSEI, por meio de mais de 14 mil profissionais de saúde em área, sendo quase 60% indígenas e, em 2020, realizou mais de 11 milhões de atendimentos de saúde. Também contratou mais 714 profissionais de saúde e instalou 283 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UAPI) com oxigenoterapia, dentro de aldeias, para casos leves a moderados de covid-19”
“Além dos serviços rotineiros, atualmente a SESAI está trabalhando na imunização da população indígena maior de 18 anos inscritos no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS) e especificidades da ADPF 709, conforme a prioridade determinada pelo Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra Covid-19”.
O Ministério da Saúde também afirma que todas as ações da pasta à Saúde Indígena “foram tomadas por iniciativa de seus gestores, no mais absoluto cumprimento da legislação vigente, com o único objetivo de oferecer aos indígenas brasileiros o serviço básico de saúde e a proteção dos povos indígenas do contágio pela covid-19”.
A Sesai afirma ainda que, em parceria com o Ministério da Defesa, “realizou 19 missões interministeriais, em 14 DSEI, e mais de 60 mil atendimentos. Ainda enviou mais de 5,7 milhões de itens de insumos para complementação dos estoques dos 34 DSEI como testes para covid-19, medicamentos e Equipamentos de Proteção Individual (EPI)”.
A secretaria afirma que trabalha acompanhada pelo Fórum dos Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde Indígena (FPCONDISI), órgão de Controle Social da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNAPSI).
“Os Conselhos Distritais de Saúde Indígena (CONDISI) atuam na elaboração e acompanhamento dos Planos Distritais de Saúde Indígena (PDSI) e são formados por 50% de representantes indígenas, 25% trabalhadores de saúde e 25% de gestores de saúde.”
Edição: Leandro Melito.