Ela conta que vinha sendo perseguida por ser oposição e protestar contra o governo que estava no poder na época e que chegou a ficar presa ilegalmente por um mês.
Lina afirma que seu marido já havia fugido pelo mesmo motivo e, depois de ser libertada, decidiu fazer igual. Ficou escondida algum tempo e, então, aproveitou um visto brasileiro de turismo que tinha tirado há pouco.
Aqui no Brasil, ela encontrou seu lugar na comunidade crescente de congoleses. Depois de algum tempo, reencontrou-se com o marido.
Mas ela diz que nunca conseguiu um emprego na área em que se formou e foi morar na periferia, onde conseguia pagar as contas com os trabalhos que surgem, graças aos outros e por iniciativa própria.
A vida foi se ajeitando, mas Lina acha que pode ser obrigada a partir de novo. Ela diz que, de uns anos para cá, as hostilidades contra os congoleses ficaram mais frequentes.
Conta que sua casa foi invadida e que seu marido recebeu uma ameaça de morte. Lina decidiu se mudar com a família para outro bairro – e, alguns dias depois, um amigo, que também era africano, foi assassinado pelo vizinho.
Lina não se sente mais segura no Brasil. A notícia de que Moïse Kabagambe, um congolês de 24 anos, foi espancado até a morte ao cobrar um pagamento pelo bico que fazia em um quiosque no Rio, só aumentou seu medo.
“Não foi um caso isolado. O que aconteceu com o Moïse já aconteceu com outros. Muita gente acha que a situação vai piorar ainda mais”, diz ela. “Muitos estão pensando em sair do Brasil.”
O governo da República Democrática do Congo, por meio da sua embaixada no Brasil, disse que Moïse foi o quinto congolês morto no país nos últimos seis anos.
O Congo disse que pediu explicações ao governo brasileiro, mas que nunca recebeu retorno.
A BBC News Brasil questionou o Itamaraty, que não respondeu se foi ou não questionado pelo governo do Congo sobre os crimes.
O ministério falou apenas do caso de Moïse e disse que “expressa sua indignação com o brutal assassinato e espera que o culpado ou culpados sejam levados à Justiça no menor prazo possível”.
Três homens foram presos e acusados de matar o congolês. Imagens de câmeras de segurança registraram o crime.
“Não queremos mais ficar no país”, disse a mãe de Moïse à revista Marie Claire. “Pretendemos ir embora do Brasil quando se fizer justiça pelo meu filho.”
Crise humanitária no Congo é uma das mais complexas do mundo
Os congoleses são a terceira nacionalidade que mais recebeu refúgio no Brasil na última década.
Foram 1.050 pessoas entre 2011 e 2020, segundo o Ministério da Justiça e Segurança Publica, só menos do que os venezuelanos (46.412 – de longe, os mais numerosos) e os sírios (3594).
Mas os especialistas alertam que as estatísticas de migração costumam ser subnotificadas, e os números na prática são provavelmente maiores.
Desde 1999, 2.552 pedidos de refúgio de congoleses foram aceitos pelo Brasil, de acordo com os dados oficiais. A maioria absoluta deles ocorreu nos dez últimos anos.
Isso faz parte de uma mudança radical no perfil da imigração para o Brasil. O país costumava receber mais pessoas de países desenvolvidos, especialmente os funcionários de empresas e suas famílias.
Mas, na década passada, o Brasil começou a ser o destino de cada vez mais gente de outros países em desenvolvimento.
Isso tem em parte a ver com os fluxos gerados por crises humanitárias, como no Haiti, na Síria e na Venezuela.
No caso do Congo, uma guerra civil eclodiu após o longo período de ditadura e mergulhou o país na violência a partir de 1997.
Oficialmente, o conflito acabou em 2003, mas o país continuou a sofrer com instabilidades políticas e sociais.
“A guerra nunca acabou”, diz o congolês Bas’Ilele Malomalo, professor de Relações Internacionais da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab) e pesquisador de movimentos migratórios africanos no Brasil.
Malomalo explica que o Congo continua a sofrer com a violência por causa dos conflitos vizinhos que transbordam pelas fronteiras.
Também há uma sangrenta disputa pelo controle de territórios para mineração das enormes reservas de coltan do Congo – o minério é usado na produção de componentes de aparelhos de tecnologia e, de tão valioso e badalado, ganhou o apelido de “ouro azul”.
“As multinacionais financiam grupos rebeldes para conseguir extrair o minério com a ajuda de políticos locais”, diz Malomalo.
A Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que a situação humanitária do Congo hoje “é uma das mais complexas e desafiadoras em todo o mundo”, porque “múltiplos conflitos afetam várias partes do país”.
A ONU calcula que mais de 5 milhões de pessoas tiveram de abandonar suas casas só entre 2017 e 2019 por causa da violência.
“Além disso, a pobreza também não acabou e, apesar de ter havido um avanço democrático com as eleições de 2018, ainda tem repressão”, afirma Malomalo, que chegou ao Brasil em 1997 para estudar Teologia.
Como o Brasil se tornou destino dos congoleses
O pesquisador explica que o Brasil não era tradicionalmente o destino dos imigrantes congoleses.
Eles costumavam ir para os Estados Unidos e, por causa da facilidade de já falarem francês, para a Bélgica – que colonizou o Congo – e a França.
Mas, a partir dos anos 2000, ficou cada vez mais difícil imigrar para esses países, e as fronteiras do Brasil se abriram com os acordos culturais e econômicos fechados com países africanos.
Essa não é a primeira onda de imigração congolesa (e africana em geral) para o Brasil, explica Malomalo: “70% da população escravizada que veio para cá saiu da parte da África onde está o Congo”.
O samba, os quilombos, o “pretuguês” – a influência dos idiomas africanos sobre o português – são alguns dos exemplos que o professor cita da influência dos congoleses.
“Nossos avós moldaram o Brasil e ajudaram a construir a identidade nacional.”
Uma característica em comum entre os congoleses que vêm para cá nesta nova leva de imigrantes é ter uma boa instrução. Em geral, ensino médio completo e, em vários casos, faculdade.
Mas eles têm dificuldade de conseguir trabalho no Brasil que não seja braçal ou mal remunerado.
Um imigrante congolês formalmente empregado ganha R$ 1.862 em média, apontam dados do governo. É o segundo menor valor entre todas as nacionalidades. Só os haitianos ganham menos (R$ 1.776).
Os entrevistados também avaliam que nos últimos anos ficou mais demorado e difícil conseguir vistos e refúgio no Brasil. Dizem que o governo aumentou a burocracia dos processos de propósito para reduzir o fluxo do Congo para cá.
Procurados pela BBC News Brasil, os ministérios da Justiça e das Relações Exteriores não responderam sobre esse assunto até a publicação da reportagem.
Os dados oficiais mostram que, no caso dos congoleses, o número de refúgios concedidos vem caindo ano a ano desde o pico de 2015, quando 708 pedidos foram aceitos.
Em 2019, o último ano antes da pandemia, foram 80 – 90% a menos.
E 2020 foi o primeiro ano nos últimos cinco em que mais pedidos de refúgio de congoleses foram negados (41) do que aceitos (34). Em 2021, 21 foram negados e 28, aceitos.
“Cerca de metade das pessoas que pedem refúgio hoje em dia não conseguem e acabam indo para o limbo dos indocumentados”, diz Malomalo.
“Elas não conseguem procurar emprego, abrir um negócio. É uma categoria de gente sem cidadania.”
Pandemia agravou a situação dos congoleses
Os congoleses vivem hoje no Brasil, na maioria absoluta dos casos, nas periferias e favelas. É onde eles conseguem aluguéis mais baratos e sem burocracia.
Eles são invisíveis, diz a advogada Karina Quintanilha, que é especializada em migração e refúgio e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
São invisíveis porque ficam longe da vista de muita gente, vivendo nas franjas das grandes cidades, mas também são invisíveis para o Estado, que não cria políticas públicas para eles, diz Quintanilha.
“Isso ficou muito claro durante a pandemia, porque não havia uma previsão específica do auxílio emergencial para esses imigrantes”, afirma a advogada.
Ao mesmo tempo, a pandemia deixou muitos congoleses sem renda.
Vários são ambulantes, têm comércios ou pequenos negócios e trabalham com cultura e, especialmente, com turismo – uma vantagem que falar francês confere a eles.
Também ficou mais difícil contar com a ajuda que eles normalmente recebem da comunidade.
Aline Thuller, coordenadora do Programa de Atendimento a Refugiados da Cáritas RJ, organização de assistência que é mantida pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, diz que ela voltou a ver refugiados que há muito tempo não procuravam ajuda.
“Eram pessoas que estavam estabilizadas. São pobres, mas a vida estava organizada, e agora vieram pedir uma cesta básica, ajuda para o aluguel pra não serem despejadas, um medicamento…”
A assistente social diz que muitos dos congoleses chegaram ao Brasil com a intenção de trabalhar para sustentar a família aqui ou mandar dinheiro para quem ficou no Congo.
Mas Thuller afirma que muitos começaram a ter problemas para fazer isso nos últimos anos, porque o custo de vida subiu, e os salários não acompanharam.
“Acaba sobrando muito pouco. Muitos pensam em sair do Brasil porque não conseguem mais se sustentar aqui.”
‘Violência é cotidiana’
A tudo isso se soma que os refugiados são mais vulneráveis à violência urbana por causa de onde vivem.
“Já ouvi de muitas mães que elas saíram do Congo para que a guerra não matasse o seu filho, mas que nunca tinha ouvido tanto tiro quanto no Rio de Janeiro”, afirma a assistente social.
Os relatos e acontecimentos também deixam claro como os imigrantes africanos são frequentemente alvo de racismo e xenofobia.
“As pessoas sempre acham que eles são menos civilizados, são chamados de macacos, na escola a merendeira diz que a criança não pode recusar um alimento porque veio de um país onde se passa fome”, diz Thuller.
Lina diz que percebeu desde as últimas eleições que o ódio contra os imigrantes ficou mais evidente.
“Na feira, no ônibus, na rua, nas lojas… as pessoas viram e falam ‘tem muito estrangeiro no bairro…’, ‘por que você não volta pra sua terra?’ ou ‘o governo tá cuidando mais do imigrante do que do brasileiro’. A gente é xingado, espancado, assaltado. As nossas casas são invadidas. Isso só tem aumentado.”
Ela conta que, quando anda na rua com as roupas tradicionais do Congo, tem gente que acha que ela é “macumbeira”.
“Já teve gente que fugiu de mim quando fui pedir uma informação, mudou de banco no metrô, já teve motorista de ônibus que não parou”, diz Lina.
“De onde eu venho, racismo não existe. O Brasil foi para mim uma grande escola da discriminação de seres humanos.”
Os casos recentes de violência física contra imigrantes, como o de Moïse, só aumentam ainda mais a sensação de insegurança entre os congoleses e outros imigrantes. “Tenho medo do futuro para os meus filhos”, afirma Lina.
“Não é só pela violência física, mas tem a psicológica também, porque a gente não tem os direitos mais básicos respeitados. Queria que o Congo tivesse paz para que eu pudesse voltar para a minha terra.”
Karina Quintanilha diz que os crimes que vêm a público são uma parte muito pequena parte dos que realmente estão acontecendo por aí.
“Nas conversas com os imigrantes, vamos achando novos casos que a gente nem imaginava. Teve um haitiano que morreu na empresa em que ele trabalhava, e sumiram com o corpo dele. Tem muito desrespeito a direitos trabalhistas, casos de trabalho escravo e também ofensas racistas. A violência é cotidiana.”
A advogada diz que é preciso rever a imagem do Brasil como um país da imigração, porque os casos e relatos deixam claro que na prática não é assim.
Lina, com a propriedade que sua experiência lhe confere, resume bem o motivo: “O Brasil recebe, mas não acolhe”.