Por Paulo Nogueira Batista Jr.
Ultimamente, tenho pensado muito – não só com a cabeça, mas também com o coração – no papel planetário do Brasil. Isso pode parecer estranho, quando se considera o ponto baixíssimo em que nos encontramos, dentro e fora de casa. Reconheço que é mesmo estranho. Mas nosso país, leitor, tem que pensar grande. Não pode cuidar apenas de si mesmo e da sua vizinhança imediata.
Estou exagerando? Não creio. O Brasil teve, ou começou a ter, em tempo não muito distante, exatamente esse papel planetário. Eu mesmo participei disso, no âmbito do FMI, do G20 e dos BRICS, e sei do que estou falando. O que vou escrever, hoje, está ancorado não apenas em desejos ou projetos, mas também em vivências. Convido o leitor a passar ao largo da nossa conjuntura deplorável e voltar os olhos para o futuro. Também do futuro se pode ter saudades.
Megalomania e nanomania
Bem sei que toda vez que o Brasil procura se comportar à altura da sua dimensão e do seu potencial, ergue-se, sinistro, o coro das vozes discordantes, céticas ou derrotistas. Denuncia-se, muito mais dentro do que fora do país, não raro com agressividade, a suposta megalomania de projetos nacionais brasileiros.
Ora, ora, francamente! Megalomania? Ao contrário! O brasileiro sofre de nanomania, como notou o chanceler Celso Amorim. Exatamente isso: nanomania, mania de ser pequeno, termo que talvez tenha sido cunhado pelo próprio ex (e, espero, futuro) Ministro das Relações Exteriores do Brasil.
O nosso problema nunca foi uma suposta mania de grandeza. Aliás, nem tem cabimento falar nisso. O Brasil é grande – objetivamente falando. Nem precisamos, portanto, ter mania de ser o que já somos.
O que nos falta, claro, é a dimensão subjetiva da grandeza, a autoconfiança que transforma a grandeza objetiva, factual em uma realidade completa. Mas a base objetiva e factual é de uma abundância clamorosa.
Permita, leitor, que eu me repita um pouco, antes de entrar propriamente no assunto deste artigo. É que a repetição costuma ser um recurso absolutamente essencial. Já dizia Nelson Rodrigues que tudo aquilo que não é repetido, com insistência, com determinação e com descaro, permanece rigorosamente inédito. Seguindo essa recomendação, tenho então apontado incansável e obsessivamente para o óbvio ululante: o Brasil é um dos gigantes do mundo. Temos o quinto maior território, a sexta maior população e a oitava economia do planeta. O Brasil faz parte de um grupo de apenas cinco países, junto com os Estados Unidos, a China, a Índia e a Rússia, que integram as listas das dez maiores nações em termos de PIB, extensão geográfica e habitantes. Não foi por outra razão que batizei o meu livro mais recente de “O Brasil não cabe no quintal de ninguém”.
Esses dados de tão óbvios nem precisariam ser mencionados, muito menos insistentemente. Nem seria necessário que um economista brasileiro escrevesse um livro com esse título. É a nossa nanomania que torna a insistência inescapável, ou pelo menos desculpável.
Isso tudo a título de introdução. Eis o que eu realmente queria dizer: ao Brasil está reservado um destino planetário e, por isso, não podemos pensar apenas em nós mesmos e nossos vizinhos próximos. Messiânico? Que seja. Mas tento explicar.
Europa, Estados Unidos, China
Começo pelo quadro mundial. Há um vácuo escandaloso no planeta. Nenhuma das principais potências, apesar dos seus méritos, consegue oferecer uma visão de mundo convincente.
A Europa, por exemplo, é uma maravilha. Que continente! Quanta cultura, história, beleza e variedade! E, no entanto, envelheceu. Não tem mais o mesmo vigor, nem a mesma criatividade. Enquanto em países como o Brasil tudo está por se fazer, na Europa o peso do passado esmaga as gerações presentes. Preconceituosa e fechada, repliée sur soi même, a Europa sequer se interessa, realmente, pelo resto do mundo. Defensiva e agarrada a suas conquistas e seus privilégios, pouco oferece, pouco inventa em benefício dos outros. Eu mesmo vi como no FMI e no G20, os europeus, em bloco, resistiam tenazmente à reforma das instituições internacionais.
Os Estados Unidos são inegavelmente uma grande nação, que já deu e ainda dará muito para o desenvolvimento da civilização. Sem ter cultura e história tão antigas e tão ricas quanto às da Europa, os americanos compartilham com os europeus valores, tradições, princípios. E, também, alguns receios fundamentais. Temem o fim da hegemonia duramente conquistada no século 20. Lidam mal com a perda gradual de expressão econômica e demográfica, em face da ascensão dos países de economia emergente, especialmente a China. No meu convívio com os americanos, no FMI e no G20, pude notar como é difícil, às vezes impossível, trabalhar em cooperação com eles. Mesmo quando há acordo nos temas em discussão! Prevalece do lado americano uma atitude arrogante e uma certa mania de se autodesignar líder mundial e pretender, com frequência, impor seus pontos-de-vista.
Isso muda com Biden? Ele está se esmerando em recuperar a coesão interna do país, erodida por décadas de políticas econômicas e sociais de cunho neoliberal e pelos tumultos ocasionados por seu antecessor imediato. Tem plena consciência de que atacar as desigualdades, injustiças e ineficiências que se acumularam nos últimos 40 anos é condição sine qua non para enfrentar o desafio representado pela China. Ao fazer esse esforço interno, Biden rompe com políticas regressivas e manda uma mensagem positiva para o mundo.
Infelizmente, a essa altura, já ficou claro que uma coisa é a sua política interna, inovadora e louvável, e outra a sua política externa, marcada pelos vícios e egoísmos arraigados da potência imperial. Solidariedade, justiça e desenvolvimento para dentro. Imperialismo, hostilidade ou indiferença para fora. É isso mesmo? Não quero ser injusto nem preconceituoso, mas a política internacional de Biden não escapa por enquanto dos trilhos tradicionais. Até gostaria de poder dizer o contrário. Mas como? Para citar apenas um exemplo: até agora Biden não deu um passo sequer para relaxar a absurda política de embargo em relação a Cuba, intensificada no período Trump.
E a China? Ela tem condições de ocupar o vácuo deixado pelas potências tradicionais? De oferecer uma mensagem nova para o mundo? Os chineses, assim como os europeus e americanos, têm qualidades – e não são poucas. São notáveis a sua disciplina, capacidade de trabalho, dedicação, sentido de coletividade e patriotismo. Os chineses se orgulham, com toda razão, do sucesso estrondoso do país ao longo das mesmas quatro décadas em que grande parte do Ocidente empacou no atoleiro neoliberal. A China, diga-se de passagem, nunca comprou o “Consenso de Washington” que tanto sucesso fez aqui na América Latina.
A coesão que falta aos Estados Unidos sobra na China (talvez seja até excessiva). E repare, leitor, que as qualidades dos chineses se fizeram sentir com toda a força na forma rápida, disciplinada e eficaz com que enfrentaram o desafio da Covid-19 – um contraste impressionante com as hesitações, irracionalidades e incompetências que se viram, e ainda se veem, no Ocidente.
E, no entanto, apesar de algumas iniciativas de impacto, notadamente a Rota da Seda, como ainda é estreita e pouco criativa a agenda internacional da China! Tanto no FMI, como no G20 e nos BRICS, pude observar como os chineses concentram seus esforços em poucos pontos-chave, que julgam do seu interesse, e deixam o resto mais ou menos em segundo plano. Isso deve mudar, acredito, mas não de uma hora para outra.
Nos anos mais recentes, com Xi Jinping no comando, perdeu-se um aspecto que me parecia importante – um certo cuidado, uma certa humildade no trato com outros países. O sucesso talvez tenha subido um pouco à cabeça. Nota-se agora certa arrogância, certo chauvinismo. A China, ainda mais do que antes, tem dificuldade em despertar a confiança de outros países e, em especial, dos seus vizinhos. Não tem liderança e hegemonia asseguradas nem mesmo no Leste da Ásia. Há muita inveja, intriga e propaganda anti-China, sem dúvida, mas os chineses também fomentam as reações negativas a eles no exterior.
O papel planetário do Brasil
Mas era do Brasil que queria falar. Como fica então o nosso país nesse quadro internacional? Pois bem, prepare-se, querido leitor, para uma declaração bombástica: o Brasil destina-se por sua própria história e formação a exercer um papel singular, a trazer uma mensagem de esperança, generosidade e união para o planeta inteiro.
O texto já está ficando longo demais e preciso tentar ser mais direto. Por circunstâncias da vida, coube-me viver grande parte do tempo no exterior. E cedo pude perceber as grandes qualidades do brasileiro em comparação com outros povos – vivacidade, alegria, cordialidade, afetuosidade, doçura, criatividade, capacidade de inventar e improvisar, entre outras. Desde 2015, e sobretudo desde 2019, fomos jogados na negação disso tudo. O brasileiro já nem se reconhece mais. Mas não é em alguns poucos anos que se consegue destruir o espírito de um povo. E é justamente desse espírito que o planeta está precisando, urgentemente, para fazer face a suas crises econômicas, sociais, climáticas e de saúde pública.
A nossa história nos prepara para exercer naturalmente um papel planetário. O Brasil é um país universal na sua própria origem e formação. Para cá confluíram os povos originários, oriundos da Ásia, os portugueses, os africanos, outros povos europeus, italianos, espanhóis, alemães etc. A maior população japonesa fora do Japão está no Brasil. A população brasileira de origem libanesa é maior do que a população inteira do Líbano. Salvador é a maior cidade negra fora da África, superada em número de habitantes por apenas quatro ou cinco cidades do outro lado do Atlântico Sul. O Brasil, em suma, contém o planeta dentro de si mesmo.
Quase diria: não é só que o Brasil não cabe no quintal de ninguém, mas é o mundo que cabe no nosso quintal. Mas isso já seria arrogância, algo que o brasileiro sabe bem evitar. Não é que o mundo cabe no nosso quintal. Ele está dentro de nós, na nossa história, na nossa formação, no nosso sangue. O mundo nos constituiu.
Nem preciso frisar que esse papel internacional do Brasil depende da retomada de um projeto nacional de desenvolvimento, que começa com o resgate do próprio povo brasileiro, resgate que precisa ser consubstanciado na geração de empregos e oportunidades e na luta contra a desigualdade, a pobreza e a injustiça dentro do País, como procurei ressaltar em artigo recente nesta coluna (“Lula lá”, 28 de junho de 2021). Esse resgate tem que tomar a forma de uma verdadeira ofensiva, um movimento em marcha forçada, concentrado no tempo e apoiado em nossas experiências bem-sucedidas na área social.
Mas o ponto que queria frisar hoje é que o nosso projeto nacional de desenvolvimento, não poderá ser apenas nacional, estreito e egoísta. Nacional, sim, mas não apenas nacional. Brasileiro, sim, mas não fechado e excludente. O projeto brasileiro haverá de ser nacional e universal ao mesmo tempo. É o nosso destino.
Estou usando aqui a palavra destino cum grano salis. O Brasil pode perfeitamente continuar infiel a esse destino. E deixar, assim, uma imensa lacuna no planeta.
A nossa vivência
A quem duvide disso tudo e queira desqualificar o que estou dizendo como mero delírio, utopia ou devaneio tenho apenas o seguinte a dizer: o Brasil já mostrou, na prática, insisto, que tem condições de caminhar nessa direção. Foi o que vimos há pouco tempo, durante o governo Lula e, em menor medida, no governo Dilma. O Brasil já foi, como disse na época Chico Buarque, um país que não falava grosso com a Bolívia e nem piava fino com os Estados Unidos. Tratava todos com cuidado e consideração. Mais do que isso: começou a atuar em todos os quadrantes do mundo, trazendo sempre uma palavra de paz, justiça e congraçamento. Eu morava no exterior durante a maior parte desse tempo e posso testemunhar da influência crescente do Brasil e do respeito e da simpatia que suscitávamos.
Mais do que testemunha fui, em determinadas áreas, participante ativo dessa ascensão brasileira, no âmbito do FMI, do G20 e dos BRICS. Tínhamos energia, leitor, para nos preocuparmos até com temas remotamente ligados a interesses imediatos do País. Por exemplo: a Islândia estava sendo injustiçada por outros europeus? Lá estávamos nós para ajudar os islandeses a se defender no FMI. A Grécia era massacrada pela Alemanha e outros europeus? Lá estávamos nós para denunciar e criticar, em detalhe, os absurdos do ajustamento econômico imposto aos gregos. Os países pequenos e frágeis precisavam de uma atenção especial? Lá estávamos nós para construir iniciativas e mecanismos de atuação em defesa desses países dentro do FMI. Os países de língua portuguesa, da África e da Ásia, estavam abandonados e negligenciados? Lá estávamos nós para tentar auxiliá-los e, se possível, trazê-los para dentro do nosso grupo no FMI.
Nos grandes temas então, de interesse imediato e estratégico do Brasil, a atuação brasileira subia aos mais altos níveis de governo, ao ministro da Fazenda, ao ministro das Relações Exteriores e ao Presidente ou à Presidenta da República. Por exemplo: o G7, composto apenas pelos principais países desenvolvidos, se mostrava estreito demais para enfrentar os desafios da crise internacional? Lá estávamos nós para ajudar, e em certos momentos, liderar o movimento para transformar o G20 em foro de líderes e colocá-lo no lugar do G7 como principal instância de cooperação internacional. O Banco Mundial e outros bancos multilaterais mostravam-se intrusivos, lentos e defasados? Lá estávamos nós, junto com os outros BRICS, para criar um banco multilateral, o Novo Banco de Desenvolvimento, desenhado para inaugurar um novo padrão de financiamento do desenvolvimento, focado na sustentabilidade social e ambiental e fundado no respeito aos países em desenvolvimento e às suas estratégias nacionais. O FMI resistia a reformas em sua governança? Lá estávamos nós, de novo com os BRICS, para criar um fundo monetário próprio capaz de atuar de forma independente.
Mencionei apenas exemplos da minha esfera de atuação imediata. O Brasil fez muito mais no campo internacional. Muitas das nossas iniciativas ainda não frutificaram ou ficaram pelo caminho depois que o Brasil mergulhou na sua crise política e econômica. Estávamos apenas começando e cometemos, certamente, muitos erros. Mas ninguém estranhava que o Brasil estivesse presente e atuante em quase todas as grandes questões internacionais. É o que se espera de um país-gigante como o nosso.
É verdade, também, que a súbita ascensão do Brasil contrariou interesses e despertou inquietações e ciúmes em algumas partes do mundo desenvolvido, notadamente nos Estados Unidos, ainda que isso nem sempre se manifestasse claramente. E essas inquietações deram lugar a ações externas que explicam, em parte, as nossas desgraças atuais – como ficou claro nas informações que têm vindo à tona no passado mais recente. Temos que proteger melhor os nossos flancos e a nossa retaguarda da próxima vez.
Retomar o papel planetário do Brasil é retomar um projeto de gerações anteriores de brasileiros que souberam pensar grande. Celso Furtado, por exemplo, o patrono da cátedra que estou conduzindo na UFRJ, encerrou conferência pronunciada na USP em 2000, com o seguinte apelo aos jovens brasileiros:
“Temos que preparar a nova geração para enfrentar grandes desafios, pois se trata de, por um lado, preservar a herança histórica da unidade nacional, e, por outro, continuar a construção de uma sociedade democrática aberta às relações externas. (…) Numa palavra, podemos afirmar que o Brasil só sobreviverá como nação se se transformar numa sociedade mais justa e preservar a sua independência política. Assim, o sonho de construir um país capaz de influir no destino da humanidade não se terá desvanecido”.
Sobrevivemos!
Vou terminando este texto que me saiu longo demais. Espero que o leitor tenha chegado até aqui. Apesar de todos os argumentos e explicações, o artigo talvez tenha ficado, mesmo, meio delirante. Paciência. Não é, afinal, pelo delírio que se chega ao fundo das coisas? E nem me parece tanto delírio assim reconhecer que o Brasil tem condições, dimensão e experiência para atuar de forma decisiva, positiva e solidária nas grandes questões que preocupam o mundo hoje – na crise ambiental, no combate à miséria e à fome, no combate a pandemias presentes e futuras.
Entendo perfeitamente que afirmações como as que fiz possam despertar desconfiança e ceticismo. Sofremos e estamos sofrendo muito, eu sei. A destruição foi grande – e ela continua. Mas, como disse Nietzsche, o que não nos mata nos torna mais fortes. Sobrevivemos e estamos nos preparando para dar a volta por cima. Em retrospecto, nossos tormentos recentes e atuais serão lembrados, acredito, como a provação que tivemos que atravessar para nos preparar melhor e de forma mais profunda para o papel planetário a que estamos destinados.
Releio o que escrevi. Está muito emotivo. Carreguei demais nas tintas? Acho que não. Mas veremos.
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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 23 de julho de 2021.
O autor é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017 e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.
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