Por José Eustáquio Diniz Alves.
No passado distante, a China era o pais mais avançado do mundo. Mas regrediu nos séculos XIX e XX, após o declínio da dinastia Qing, que governou a nação entre 1644-1912. A República da China foi fundada em 1912, sob liderança de Sun Yat-sen e prevaleceu até 1949, sob hegemonia do Kuomintang (Partido Nacionalista), de Chiang Kai-shek, a partir de 1928. Em 1 de outubro de 1949, Mao Tse-tung e Chu En Lai proclamaram a República Popular da China. Ações equivocadas, como o “Grande Salto para a Frente” e a “Revolução Cultural”, aprofundaram a pobreza e isolaram o país da comunidade internacional.
Todavia, em 1972, o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, visitou a China e se encontrou com Mao Tse-tung e Chu En Lai, iniciando um novo período de relacionamento que mudaria a Guerra Fria e a correlação de forças internacionais. Os dois grandes líderes da Revolução Comunista morreram em 1976. Em 1979, Deng Xiaoping inicia as reformas para a chamada fase do “socialismo de mercado” e visitou os Estados Unidos para fortalecer uma aliança competitiva estratégica.
A China era uma nação muito pobre e estava completamente atrasada em relação aos países mais desenvolvidos do mundo, em 1980. A renda per capita (em poder de paridade de compra – ppp) era de somente US$ 306,8. Na mesma data, a renda per capita brasileira era de US$ 4.809,6. O Brasil era, em termos de renda média, 16 vezes mais rico do que a China em 1980, segundo dados do FMI.
No ano 2000 a renda per capita da China era de US$ 2.888,3 contra US$ 9.108,1 do Brasil. A renda dos chineses era menos de um terço da renda brasileira no início do século XXI. Mas em 2016, a renda per capita da China (de US$ 15.095) já era maior do que a renda per capita brasileira (de US$ 15.048). As projeções do FMI para o ano de 2020 são de renda per capita de US$ 20.189,7 para a China e de US$ 16.576,4 no Brasil.
O que aconteceu de diferente na China e no Brasil, entre 1980 e 2016, para que o primeiro país, 16 vezes mais pobre, superasse o segundo, em apenas 36 anos, se tornando uma potência mundial?
Evidentemente, as diferenças são amplas e significativas. Vamos tentar resumir de maneira sintética em dois modelos: o Japão, Coreia do Sul e China adotaram o modelo de “promoção das exportações” (export-led growth), enquanto o Brasil e a América Latina adotaram o modelo da “substituição de importações”.
O desafio da China, no final da década de 1970, era superar o isolamento, o atraso tecnológico, a pobreza e a baixa produtividade. O país precisava aumentar os investimentos para renovar a economia e incorporar o desenvolvimento tecnológico. Mas o mercado interno era muito pequeno (como proporção do PIB) e o baixo poder de consumo da maioria da população não permitia que o mercado interno sustentasse altas taxas de crescimento econômico e de absorção de mão de obra.
A opção foi adotar o modelo “export-led growth”, fazendo a economia crescer (criando empregos em abundância) de maneira competitiva para conquistar os mercados internacionais. A China não precisa proteger o mercado interno, pois a população não tinha poder de consumo, além disto o país manteve baixo o consumo, como proporção do PIB, e manteve o investimento alto (como proporção do PIB). Isto foi possível devido aos altos níveis de poupança das famílias, das empresas e do governo.
Os economistas de orientação kaleckiana (Michal Kalecki, 1899-1970) dizem que é impossível manter poupança elevada em um país de baixa renda. Mas a China comprovou que Kalecki estava errado. O gráfico abaixo mostra que a China, mesmo sendo um país muito mais pobre (em termos per capita) do que o Brasil, conseguiu manter taxas de investimento duas vezes superior. Foi esta alta taxa de investimento que propiciou se chegar ao pleno emprego e a uma rápida renovação da economia, que avançou de forma produtiva e competitiva.
Entre a Revolução Comunista (1949) e a morte de Mao Tse-tung (1976), a China tinha uma percentagem de somente 1% no comércio internacional. Mas a partir das Reformas promovidas por Deng Xiaoping, no final dos anos de 1970, a conquista de mercados externos disparou e a presença chinesa nas exportações mundiais chegou à impressionante cifra de 14%, em 2015 (contra 9% dos EUA).
Até o início do século XX, o saldo comercial da China era baixo, mas ultrapassou US$ 200 bilhões em 2007 e 2008, reduziu um pouco entre 2009 e 2011 e voltou para os patamares acima de US$ 200 bilhões, em 2012, e alcançou a impressionante cifra de aproximadamente US$ 600 bilhões de superávit comercial em 2015 e 2016. Nunca houve no mundo um superávit tão grande. Estes enormes superávits comerciais permitiram que a China acumulasse reservas internacionais de mais de US$ 3 trilhões, se transformando também em um grande exportador de capital e investidor internacional.
Ou seja, o segredo do sucesso econômico da China está na capacidade de manter o consumo baixo (como proporção do PIB) e o investimento alto. Desta forma, a produção cresce na frente do consumo. E como grande parte da produção é voltada ao mercado externo, ela precisa ser competitiva para conquistar parcelas crescentes do mercado internacional. Isto possibilitou que a China apresentasse taxas de crescimento econômico de cerca de 10% ao ano por mais de três décadas. A renda per capita aumentou mais de 30 vezes neste período. Assim, o consumo interno aumentou consideravelmente e a China retirou mais de 1 bilhão de chineses da pobreza. Mas o “milagre” foi sempre manter o consumo baixo em relação ao investimento, isto é, reservar uma parte elevada da produção, antes de consumi-la.
A China colocou o mercado externo na frente do mercado interno e fortaleceu os dois. Ela se abriu para o mundo, mas manteve uma inserção soberana no processo de globalização. Fechar a economia para crescer via mercado interno, como propõem certas tendências brasileiras é repetir uma rota que já se mostrou equivocada. Nenhum país consegue se atualizar tecnologicamente e competitivamente sem se expor à concorrência do resto do mundo.
Dentro desta estratégia geral de “export-led growth”, a China manteve sua moeda desvalorizada (taxa de câmbio competitiva), baixa taxa de juros interna, baixa carga tributária, baixa taxa de inflação, baixo nível de endividamento público e grande incentivo aos negócios e ao empreendedorismo. Houve também investimentos significativos em saúde e educação básica e de qualidade. A mortalidade infantil na China era menor do que no Brasil mesmo quando a renda per capita chinesa era muito menor do que a brasileira. A educação melhorou não somente em termos quantitativos, mas também em termos qualitativos. Os alunos chineses são incentivados a estudar matemática e ciências, com pouco tempo gasto em academicismo e juridiscismo. O resultado é uma população economicamente ativa capaz de sustentar uma sociedade industrial e cada vez mais avançada tecnologicamente.
O lado negativo é que todo este crescimento econômico gerou uma grande degradação ambiental e uma grande poluição nas cidades. Em dezembro de 2016, o norte da China passou pelo pior momento de poluição atmosférica do ano. A nuvem tóxica atingiu quase um sexto do território do país, cerca de 1,4 milhão de metros quadrados. Neles vivem 460 milhões de pessoas, que tentam driblar como podem tanto o risco de respirar esse ar de péssima qualidade quanto as limitações derivadas do alerta vermelho.
Mas até neste ponto a solução tem sido o aumento das taxas de investimento em energias alternativas e na produção de carros elétricos. A China já é líder disparada na produção de energia renovável. A capacidade instalada em energia solar fotovoltaica na China mais do que dobrou em 2016, transformando o país no maior produtor de energia solar do mundo em capacidade, que subiu para 77,42 gigawatts (quase 6 usinas de Itaipu), com a adição de 34,54 gigawatts ao longo do ano. A Chinas pretende impulsionar o uso de fontes não fósseis de geração de energia para 20 por cento de sua matriz em 2030, ante 11 por cento hoje. Tudo isto só está se tornando realidade porque a China tem altas taxas de poupança e investimento e baixo déficit fiscal bruto.
Outra especificidade da China refere-se à dinâmica demográfica. A política de filho único (adotada em 1979) é a política neomalthusiana mais draconiana da história mundial e fere frontalmente a noção dos direitos sexuais e reprodutivos, aprovados na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), ocorrida na cidade do Cairo, em 1994. Do ponto de vista dos direitos humanos esta política é totalmente equivocada. Mas do ponto de vista econômico ela se mostrou efetiva, pois a família pequena (pai, mãe e uma criança) permite alta mobilidade social ascendente, ainda mais em um contexto de pleno emprego.
Como o sistema de creches é bom na China, as mulheres puderam se qualificar no sistema de ensino e entrar no mercado de trabalho. Do ponto de vista microeconômico, a família composta por um casal de dupla renda e somente um filho tem alta capacidade de poupança. O filho único tem como apoio dois pais e quatro avós. Assim os ascendentes promovem o bem-estar dos descendentes e cada nova geração avança em relação à geração precedente. Do ponto de vista macroeconômico, a política de filho único gerou um bônus demográfico aumentando a parcela da população em idade ativa e reduzindo a razão de dependência demográfica.
Observa-se, desta forma, que as reformas promovidas, no final da década de 1970, rumo ao “socialismo de mercado” foram planejadas em seus diversos aspectos e faziam parte de um projeto de nação para restituir à China o lugar de destaque que ela sempre teve no cenário internacional ao longo dos últimos milênios. Evidentemente, existem os custos ambientais e os custos aos direitos humanos e à liberdade de expressão e organização. Mas o que se evidencia da experiência chinesa é que a política econômica e social foi articulada para ter uma inserção soberana no processo de globalização.
O Brasil seguiu o caminho oposto. Enquanto o consumo na China tem permanecido abaixo de 50% do PIB, no Brasil ele fica acima de 80%. Ao proteger o mercado interno, para possibilitar a substituição de importações, o Brasil se distancia dos padrões produtivos internacionais, perde competitividade global e tem que pagar mais caro pela produção interna. Foi assim no passado e foi assim recentemente com a política realizada de maneira amadora e equivocada dos “campeões nacionais”. O Brasil nunca conseguiu elevar suas taxas de poupança internas. Assim, manteve sempre baixas taxas de investimento e alta dependência de capital externo (poupança externa). Baixas taxas de investimento significam baixa incorporação de capital humano e de tecnologia. Significa baixa produtividade e baixa competitividade. Significa que a produção cresce de forma anêmica. Desde 1985, o Brasil virou um país submergente e cresce menos do que a média da economia internacional.
E o pior é que o Brasil, pela primeira vez na história, vai ter queda na renda per capita por 4 anos seguidos. O Brasil entrou em um atoleiro entre 2014 e 2017. Existe uma crise econômica, social, política e moral. Mas em vez de aumentar as taxas de investimento – inclusive investindo em educação de qualidade, energia renovável, carros elétricos e proteção do meio ambiente – muitos economistas brasileiros falam apenas em aumentar o gasto social e combatem o ajuste fiscal. Como disse o ex-ministro Mangabeira Unger, o “Keynesianismo vulgar” só pensa em aumentar os gastos, sem se importar com os níveis de endividamento e com o aumento das taxas de investimento. Mas o problema central do Brasil atual são os 12 milhões de pessoas procurando emprego e os 23 milhões de habitantes desocupados ou desalentados. O desperdício do potencial produtivo é coisa séria.
O fato é que Brasil e China estão em polos opostos. Existem muitas diferenças entre os dois países, mas o fator fundamental que diferencia essas duas grandes nações é que a China privilegia o investimento antes do consumo e o Brasil está profundamente viciado no consumo antecipado, em vez de garantir o aumento do investimento.
Privilegiar o consumo em detrimento do investimento é ficar preso na mesmice do presente ao mesmo tempo que se elimina o futuro. Em artigo que escrevi no Ecodebate (12/12/2016), com o título “Brasil sem futuro” dizia: “A crise política agrava a crise econômica e ambas agravam a crise social. Existe uma entropia e dispersão da energia do desenvolvimento. A arquitetura que sustenta a ideia de ”ordem e progresso” – inscrita na bandeira nacional – está desmoronando. A situação é temerária. O Brasil está desperdiçando o seu melhor momento demográfico e a perda do bônus demográfico pode significar que o país fique preso eternamente na “armadilha da renda média”. Os positivistas que tiveram papel importante na Proclamação da República tinham como lema máximo: “O Amor por princípio, a Ordem por base; o Progresso por fim”. No quadro atual, o que tem prevalecido, na conjuntura nacional, é o ódio, a desordem e o regresso”.
O cineasta Cacá Diegues, em artigo de O Globo (05/02/2017) também contesta a tese do “Brasil, país do futuro” e diz que vivemos uma expectativa pessimista: “Pelo menos para os que têm o poder de influenciar a opinião pública, o Brasil não presta para nada e não tem futuro algum. Somos um país definitivamente fracassado”.
Para o Brasil deixar de ser um país submergente e sem futuro é preciso priorizar o investimento de qualidade para mudar a maneira como lidamos com a economia, com as relações sociais e com o meio ambiente.
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: [email protected]
Fonte: EcoDebate, ISSN 2446-9394, 22/02/2017