Artesã começou a produzir bonecas negras ao receber a primeira apenas aos 22 anos, e atende de crianças empolgadas a adultos emocionados
Andréa Ramos tinha 22 anos quando ganhou um presente diferente do namorado: uma boneca negra de pano. Ao recebê-la, a jovem ficou em choque. Como nunca tinha visto algo parecido em toda sua vida?
Lembrou-se da infância, em que os desenhos infantis, os programas da TV e os brinquedos não tinham pessoas, bonecas ou personagens parecidos com ela. “Foram várias perguntas ao mesmo tempo, foi uma bagunça. Essa falta de produtos, de representatividade e identidade formam uma mentalidade negativa e uma baixa autoestima que vêm desde a infância. Para mim, o choque resultou em um projeto positivo”, conta.
Andréa é a fundadora da marca NegaFulô, que produz bonecas negras de pano em diversos tamanhos e estilos. “Faço arte com identidade”, diz a administradora de 42 anos. Hoje, ela conta com a ajuda de outras quatro costureiras para produzir entre 200 e 300 bonecas por mês em um projeto que, na raiz, sempre dependeu inteiramente dela, apesar dos questionamentos já recebidos sobre o seu trabalho.
“Procurei em lojas, na 25 de março, em tudo quanto foi lugar, e aí encontrei uma pessoa que fazia bonecas de pano – todas brancas, é lógico. Eu propus para ela produzir bonecas negras. A resposta foi: ‘Mas pra quê boneca negra? Boneca é boneca’.”, conta.
Por insistir em fazer suas peças com a identidade que nunca encontrara até então, Andréa foi chamada de “xiita”, “radical” e até mesmo de racista. A prevalência de bonecas brancas, loiras e de olhos claros até hoje no mercado causa incômodo na artesã, e mais fôlego para conseguir difundir o seu trabalho e a ideia dele.
“A brincadeira é a linguagem principal da criança”
A psicanalista Isabel Gervitz explica que o ato de brincar é essencial na vida de toda criança, ainda que ele não necessite de nenhum brinquedo em especial para funcionar ou ser divertido.
A boneca, nesse sentido, é mais um aporte para uma infinidade de possibilidades, mas que comumente é utilizada para reafirmar papéis sobre o que é ‘de menino’ e o que é ‘de menina’. Além desses estereótipos, a aparência da boneca também pode mostrar, para a criança, modelos da cultura vigente – que, no Brasil, é atravessada pelo racismo.
“Os aspectos da boneca podem ter também um papel de importância na brincadeira, principalmente à medida que o brincar é também uma aproximação da cultura e que a nossa cultura tem uma lógica excludente.”, diz Gervitz.
“A brincadeira de boneca, especificamente, pode estar ligada a muitos sentidos diferentes: a criança pode de alguma forma encontrar na boneca uma representante de si mesma, pode experimentar ficar num papel de quem cuida de um outro, pode criar narrativas e personagens que se relacionam com seu mundo imaginário e com questões que vivencia e que precisa elaborar”, exemplifica a psicanalista.
Andréa Ramos conta que adultos reagem entre a emoção e a resistência em adquirir um brinquedo diferente do que sempre fora estipulado, enquanto as crianças nomeiam, animadas, primos e amigos semelhantes aos modelos ao cruzarem com seu estande nas ruas.
Entre um ponto e o outro, a artesã acredita no afeto que seu projeto pode perpetuar em gerações de futuros meninos e meninas negros e brancos. “É trabalhoso, mas é conseguir transformar isso em amor, em representatividade e em identidade, que é a nossa marca.”