Bombas em Jerusalém

Por Fernando Evangelista.

Antes do caminhão cruzar a grande Avenida de Jerusalém, os manifestantes se aproximaram do posto de controle, onde dezenas de militares israelenses, fortemente armados, aguardavam ordens para agir. Manifestantes e soldados ficaram próximos demais – separados apenas por pequenos blocos de cimento. Peguei a máquina, ajeitei o foco e fiquei à espreita. Eu sabia, todos nós sabíamos, que aquilo não teria um final feliz.

Era abril de 2002. Israel deflagrara a Operação Militar Escudo Defensivo, com o pretexto de “eliminar a infraestrutura do terrorismo”. As cidades palestinas foram ocupadas por soldados e tanques de guerra israelenses e ninguém podia entrar ou sair sem salvo-conduto.

A Operação foi aprovada pelos habitantes de Israel, com exceção dos pacifistas judeus e dos palestinos com cidadania israelense, cerca de 20% da população. Esses dois grupos organizaram o ato de solidariedade em Jerusalém.

O objetivo era levar um caminhão com alimentos e remédios a Ramallah, isolada do mundo por causa do bloqueio militar nas estradas. De acordo com entidades de defesa dos Direitos Humanos, hospitais estavam sem remédios e as casas sem comida.

Para acompanhar a manifestação, a trupe de jornalistas se posicionou na lateral da avenida, a uns 20 metros do posto de controle, sobre um pequeno monte de areia. “Se jogarem bombas de gás lacrimogêneo na avenida ou aqui, onde estamos, não teremos para onde correr”, cochichou uma jornalista francesa. Não dei ouvidos.

Muitos manifestantes palestinos carregavam cartazes com fotos de Yasser Arafat, encurralado no Mukata, quartelgeneral do presidente da Autoridade Palestina, cercado por 20 tanques de guerra israelenses. A foto de Arafat também aparecia em bandeiras, camisetas, muros e nas capas dos principais jornais internacionais.

Analistas tentavam prever como seria a região se o grande símbolo da causa palestina fosse assassinado. Arafat era um político carismático, corrupto e ardiloso, um ex-guerrilheiro que não abandonou as armas e recebeu o Nobel da Paz, um líder corajoso que desafiou Israel e as potências ocidentais, assentando as demandas do seu povo na agenda política internacional. Um homem-mito que sobreviveu a 40 atentados, a um acidente aéreo e a um enfarte. Quem o substituiria?

A confusão na avenida começou quando um homem tentou botar fogo numa bandeira norte-americana e foi impedido por algumas pessoas. Um furioso empurra-empurra se alastrou pela multidão, que se aproximava mais e mais dos militares. A primeira explosão fez com que eu desse um salto para trás, como um reflexo. Que diabos era aquilo?

Era uma bomba de gás lacrimogêneo, seguida por bombas de pimenta, bombas de efeito moral e balas de borracha. A maioria dos manifestantes fugiu para o final da avenida. E então, exatamente onde estavam os jornalistas, caiu uma bomba de gás e com ela vieram os empurrões, alguns gritos e a indecisão.

Não adiantaria correr para a avenida, ali na nossa frente, completamente tomada pelos gases. Para lá, nenhum jornalista pensou em fugir, se é que alguém conseguia pensar alguma coisa. Segundos depois, outra bomba foi lançada em nossa direção e o que era ruim ficou bem pior. Atrás de onde estávamos havia um terreno baldio, protegido por uma cerca de arame farpado. Fomos todos naquela direção.

Meus olhos ardiam, mal conseguia respirar, o nariz escorria e as pernas ficaram bambas. Pensei que fosse vomitar. Vertigem. O que estou fazendo aqui? Fui seguindo, com o corpo e o tato, as pessoas próximas. Quando tentei pular a cerca de arame farpado, minha calça prendeu, rasgando na lateral, e eu me estatelei no chão. Quem foi que disse que o jornalismo é a melhor profissão do mundo?

A cena era surreal: fotógrafos, repórteres, cinegrafistas deitados ou sentados, mergulhados na fumaça branca, xingando os soldados, as mães dos soldados e a mãe de Sharon. Alguns, talvez mais experientes, tentavam simplesmente manter a calma e respirar.

Isso tudo aconteceu antes da chegada do caminhão com alimentos e remédios. Quando ele finalmente deu o ar da graça, quase uma hora depois, já sem os gases, sem bandeiras queimadas, e sem jornalistas vomitando, foi recebido pelos manifestantes com aplausos e música. A saudação do Exército foi um pouco mais incisiva: bombas e balas de borracha. Outra vez, outro caos. Corri pela avenida e me joguei no primeiro ônibus que apareceu. Chega de guerra. Game over de confusão.

Voltei a pensar em Arafat, provavelmente o líder de relevância internacional com mais derrotas no currículo. Ele não conseguiu nenhum dos seus objetivos principais: a construção do Estado Palestino, a saída de Israel dos territórios ocupados, não conseguiu garantir o retorno dos palestinos exilados, nem resolveu o impasse de Jerusalém. Será mesmo que chegara ao fim da linha?

A resposta veio dois anos depois. Arafat ficou confinado no seu quartel-general até outubro de 2004, quando foi levado para a França por motivos de saúde. Morreu em novembro, aos 75 anos, em circunstâncias mal explicadas. Entre as muitas especulações sobre a morte, a de maior eco aponta para um possível envenenamento.

Em janeiro de 2005, o moderado Mahmoud Abbas, conhecido como Abu Mazen, foi eleito presidente da Autoridade Nacional Palestina. O primeiro-ministro israelense Ariel Sharon, em julho do mesmo ano, ordenou a retirada de todos os mais de sete mil colonos israelenses da Faixa de Gaza.

No dia 4 de janeiro de 2006, aos 78 anos, Sharon sofreu um acidente vascular cerebral. Ele está, desde então, internado em estado vegetativo. Dias depois, o Hamas venceu as eleições para o Parlamento, derrotando o Fatah de Arafat.

Era o fim de um ciclo, mais um capítulo encerrado de um conflito permanente. A Operação Escudo Defensivo foi a última grande batalha entre Sharon e Arafat e, por instantes, fiquei feliz por ter testemunhado tudo aquilo, por ter conseguido boas histórias e, acima de tudo, feliz por ter saído ileso.

Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes. Cobriu três guerras no Oriente Médio e conflitos na Europa e América do Sul. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira.

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