– Bom dia senhores passageiros: quero sobreviver


#AOutraReflexão

#SomandoVozes

 Por Evânia Reich, para Desacato.info.

“Bom dia senhores passageiros, eu que não fui de estudar, a guerra me tornou guerreiro, não tô de papo pro ar. Conheço bem o desespero, mas não dou mole pro azar. Vim pra vender meu produto, não sou de roubar, nem matar.

A bala que “nego” te vende 10 por um real, eu trago em oferta que é sensacional, tu levas mais cinco pra eu ter tua moral. Macia e é um bom passa-tempo, quem provou gostou. Tô deixando a prova na mão do senhor, até o motorista já sabe o sabor.

Desculpe eu sei que o silêncio já incomodei, mas foi com humildade que eu cheguei, e graças a Deus não vou atrapalhar. E agora tô quase indo embora, já deu minha hora. Vendi quase tudo da sacola, só falta essas três pra acabar.”  (O Baleiro, Elvis Marlon).

A letra deste samba feita pelo cantor e compositor Elvis Marlon é a descrição poética da situação pela qual passam milhares de brasileiros, no Rio de Janeiro, mas igualmente em praticamente todas as grandes e médias cidades do nosso Brasil a fora.  A informalidade no mundo do trabalho assola o país que vive atualmente uma das suas maiores crises no mercado de trabalho. O índice de desemprego de 12,7% tenderá a perdurar ao menos por mais quatro anos, segundo o IBGE, e trará consequências devastadoras para milhões de famílias brasileiras.

Para tentar sair da situação de desempregado, milhares de brasileiros ganham as ruas todos os dias em busca de uma renda, uma renda que nunca será fixa, que nunca dará garantia de ganha pão futuro, mas que ao menos pode garantir o alimento daquele dia, o transporte, e com muita sorte a moradia.

Andar pelas ruas de uma cidade como a do Rio de janeiro é andar em um shopping em céu aberto. Dos biscoitos mais simples aos eletrônicos mais sofisticados, o asfalto se transforma na imensa prateleira de uma loja que parece não ter fim.

A cada dia que passei por esse shopping sem entrada e saída, perguntava-me: que Brasil é esse? Que Estado é esse que deixa desprotegido no mundo da precariedade e insegurança milhares de brasileiros? O menino de rua que começa vendendo bala por 1 real, se transformará no vendedor de biscoite na adolescência, e no vendedor de eletrônicos na fase adulta, e retornará para os grampos de roupa na velhice? Que Brasil é esse que joga milhares de brasileiros para o mundo da informalidade? Para o mundo da incerteza cotidiana. Como diz a letra do poeta, “conheço bem o desespero, mas não dou mole para o azar”. Milhares de brasileiros conhecem todos os dias o desespero da incerteza. Jogar-se para o mundo do trabalho informal é não ter certeza de mais nada. É não ter certeza se as balas serão vendidas, se o espaço desse grande shopping ao céu aberto será seu um dia, ou no dia seguinte. Ou se a disputa pela venda de uma mesma mercadoria não levará à violência entre aqueles que se encontram na mesma situação de extrema vulnerabilidade.

O mundo da informalidade é o mundo dos desassistidos. É o mundo onde o Estado recuou. O Estado diz: venda suas balas, porque caso contrário você perecerá. Eu não estou aqui para te ajudar. Convença seus fregueses que “sua oferta é sensacional”. Rasgue “o silêncio” dos transeuntes, mas não o meu.  Esvazie “a sua sacola”, com tua “humildade”, mas não espere meu reconhecimento.

Um levantamento feito pela Agência Pública afirma que 25% do total de furtos de alimentos no estado de São Paulo, foram cometidos por desempregados. O chamado furto famélico é praticado quase sempre em supermercados por pessoas vulneráveis ou sem trabalho em busca de alimentos para suas famílias em situação de inanição. Onde está o Estado que não garante o mínimo para a sobrevivência dos seus cidadãos? Que Estado é esse que joga seus cidadãos para o mundo da informalidade e da pobreza?

Certamente o mundo da informalidade no Brasil não é de hoje. Mas ele piora a cada dia, a cada hora, a cada segundo, com a retirada do Estado e as políticas do novo governo. Há muito o povo brasileiro mais vulnerável vai as ruas vender seus produtos para “se virar”, como costumamos falar no Brasil. O jeitinho brasileiro, conceito criado pelo sociólogo Buarque de Holanda, apesar de ter uma conotação bem negativa, pode e é visto por uma boa parte dos brasileiros como algo positivo. Somos o povo que damos um jeitinho na ineficácia do sistema, tentamos nos proteger da escancarada desproteção do Estado aos direitos mais elementares que estão esculpidos na constituição brasileira. Teto, alimentação, educação e saúde. Aqueles que vivem no mundo vulnerável da informalidade lutam a cada dia para suprir ao menos o segundo desses direitos, os quais deveriam ser garantidos pelo Estado. Fica difícil, no entanto, garantir o resto. A informalidade não dá acesso à saúde, à previdência, à educação. O menino vendedor de rua não tem tempo e nem disposição para sentar nos bancos de uma sala de aula. Afasta-se precocemente das instituições de ensino. O homem negro ou branco, a mulher jovem ou velha não podem se dar ao luxo de ir ao posto cuidar de sua saúde. Não há tempo para esses cuidados. Parafraseando Édouard Louis, jovem romancista francês, “esses cidadãos pertencem à uma categoria de humanos a quem a política reserva uma morte precoce”.

Para milhares de brasileiros, adentrar no mundo do trabalho informal significa lutar diariamente pela sobrevivência. É não ter certeza se o lucro da venda de um dia será o mesmo no dia seguinte. Se o aluguel poderá ser pago no final do mês, e se a comida na mesa será garantida todos os dias. Mais uma vez, como diz o romancista, “o mundo é dividido entre corpos que são protegidos e corpos que são destruídos”. “A política tem menos efeito sobre o corpo dominante, do que sobre o corpo dominado”. Assim, o baleiro da música do compositor representa o corpo dos desprotegidos e dos dominados. Os dominados por um sistema político e econômico que os coloca a margem do mundo que conta. Do mundo que é protegido e que domina. O mundo da informalidade é o mundo dos corpos dos desprotegidos e dos corpos dos dominados. Não há garantia de emprego, não há garantia de qualquer tipo de assistência por parte do Estado. A retirada do Estado na proteção dos direitos trabalhistas pode significar a morte para a classe dos desassistidos. Uma morte que é lenta, mas constante. Morre-se a cada dia no Brasil pela mão do Estado.

Esses homens e mulheres que ganham as ruas, dia após dia, pelas cidades brasileiras em busca de clientes para suas mercadorias são as grandes vítimas de um sistema político e econômico que nega a proteção de um dos direitos mais basilares do ser humano, o direito a garantia de um trabalho protegido por lei.

Imagem: Youtube

Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC – Pesquisa do pós-doutorado em Filosofia Política pela UFSC.

 

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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