Por Murilo Pajolla, do Brasil de Fato.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) lançou de mão de uma “fake news” para defender a aprovação no Supremo Tribunal Federal (STF) do chamado “marco temporal”, tese jurídica que restringe a demarcação de terras indígenas.
Em entrevista à Rede Fonte de Comunicação, de Goiás, o mandatário afirmou que, caso a Corte decida favoravelmente aos indígenas, uma área “do tamanho da região sul” seria demarcada para uso exclusivo dos povos originários.
“[A consequência da rejeição ao ‘marco temporal’ seria] uma área de reserva indígena equivalente ao Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Vai afetar em cheio o agronegócio”, declarou Bolsonaro.
“Falácia”
A declaração foi classificada como uma “falácia” pela advogada do Instituto Socioambiental (ISA), Juliana de Paula. Segundo ela, as terras indígenas demarcadas, em processo de demarcação e judicializadas equivalem a 13,8% do território nacional, índice menor do que a média mundial de 15%.
“É completamente impossível que se chegue ao número mentiroso de Bolsonaro. Fabricam-se números sem prova mínima pra justificar um ‘marco temporal’ que irá, na verdade, impedir a conclusão das demarcações em curso e que já estão incluídas nesses 13,8%”, afirmou Juliana.
De acordo com a advogada, as demandas restantes por demarcações são pequenas fora da Amazônia. No Rio Grande do Sul, por exemplo, as terras indígenas equivalem a 0,4% da área do estado.
A demora do STF em colocar uma “pá de cal” sobre o tema, que se arrasta desde outubro de 2020 na Corte, têm dado margem à circulação de uma série de notícias falsas, por quem busca manipular a opinião pública.
“O propósito é nítido: criar um clima de comoção em razão de uma suposta inviabilidade do agronegócio no caso de o ‘marco temporal’ ser rejeitado”, avaliou a advogada.
O agro não é tech?
Na entrevista ao vivo, Bolsonaro sugeriu também que novas demarcações poderiam impactar centros urbanos com desabastecimento de alimentos e prejudicar o escoamento da produção agrícola.
“Eu acho que o Supremo nem devia estar discutindo isso [tese do “marco temporal”]. Porque simplesmente ao matar praticamente o campo sufoca as cidades”, argumentou.
No acampamento chamado “Luta pela Vida”, maior mobilização indígena do país que prossegue nesta semana após reunir mais de 6 mil pessoas em Brasília (DF), a fala de Bolsonaro soou como mais uma provocação do mandatário.
“O agro é monocultura. Isso é comida de quem? Quem está comendo soja? Os quilômetros de plantação de cana alimentam quem?”, rebateu Marcos Subaru, assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que coordena a mobilização na capital federal.
“O presidente diz que vai faltar comida se o ‘marco temporal’ não passar. Então a culpa seria de quem é? Dos indígenas. Ele propõe uma guerra civil e joga a população contra os indígenas”, denunciou Subaru.
Para Juliana de Paula, do ISA, o agronegócio tem terras mais do que suficientes. Entre os nove principais estados que produzem commodities agrícolas, em sete o percentual do território ocupado por terras indígenas não passa de 1%.
“Se o agro não tem condições de se aprimorar com a quantidade de terras ainda disponíveis, ele terá que para de dizer que é ‘tech, é pop, é tudo’ e assumir o seu autofracasso”, criticou a advogada.
“Marco temporal inverte a história”
Na semana passada, Bolsonaro já havia classificado os manifestantes contrários à tese do “marco temporal” como “uns coitados” e “massa de manobra”. Associou, também, os protestos pacíficos “àqueles que censuram, prendem e atacam os defensores da Constituição Federal”.
Cerca de mil representantes de 176 povos indígenas que se reuniram na capital federal decidiram permanecer na cidade, em vigília, até pelo menos a quarta-feira (1º), quando deve ocorrer a sessão do STF que trará um desfecho sobre a discussão do “marco temporal”.
A tese jurídica defendida por ruralistas prevê que territórios só podem ser demarcados se os povos indígenas conseguirem provar que estavam ocupando a área anteriormente ou na data exata da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, ou se ficar comprovado conflito pela posse da terra.
“O ‘marco temporal’ inverte a história real. Ele coloca o colonizador como o primeiro ocupante da terra e o indígena como imigrante, dando a posse aos grileiros, aos latifundiários e aos senhores de terra”, analisa o assessor político da Apib.
Uma vez julgada, a ação terá repercussão geral, ou seja, poderá ser usada como base para decisões judiciais em casos semelhantes, definindo o futuro de milhares de indígenas brasileiros.
Edição: Anelize Moreira