Por Carlos Eduardo Martins.
A crise ambiental e diplomática promovida pelo governo brasileiro, em razão de sua cumplicidade com o Dia do Fogo organizado por setores do agronegócio na Amazônia e das hostilidades que dirigiu ao governo francês, é apenas mais um capítulo de um projeto, em curso, de submissão neocolonial ao imperialismo unilateral de Trump e à extrema-direita estadunidense. Apresentada por Bolsonaro e sua base como uma reação do governo brasileiro a um imperialismo francês e europeu que pretenderia internacionalizar a Amazônia, representa em verdade o exato oposto: a subordinação visceral de um subimperialismo títere e vassalo ao poder estadunidense e à internacional fascista que o trumpismo organiza.
Fragilizado internacionalmente com a diminuição acelerada de sua competitividade a partir de 2008, pressionado pela expansão de sua dívida pública, pela projeção da China na economia mundial, pela afirmação de distintos projetos de integração regional e de um novo eixo geopolítico mundial, através da rota da seda, do BRICS e das pretensões de um projeto de Sul Global, os Estados Unidos têm buscado reagir a essa conjuntura que lhe é globalmente desfavorável de diferentes formas.
Obama combinou as políticas de ampliação da globalização neoliberal com as de desestabilização, cerco ou intervenção militar, a pretexto humanitário, de acordo com espaços e circunstâncias. Expressão da busca de ampliação da globalização neoliberal foi a tentativa de firmar o Acordo de Parceria Transatlântica em Comércio e Investimento com a União Europeia, a assinatura do Acordo de Parceria Transpacífica, o acordo com o Irã sobre enriquecimento do Urânio e o projeto de flexibilização do bloqueio a Cuba, para frear sua integração crescente à economia chinesa. As políticas de cerco e desestabilização se orientaram para a Rússia – buscando separá-la de regiões fronteiriças, como a Ucrânia, e confrontá-la à União Europeia – para o Norte da África e, principalmente, a América Latina, por meio da preparação e apoio aos golpes de Estado no Paraguai e no Brasil, ou do cerco à Venezuela, declarada ameaça à segurança dos Estados Unidos. As políticas de intervenção se manifestaram nas coalizões que liderou para a intervenção na Líbia, ocasionando a derrubada e assassinato de Muammar Al Gaddafi, e na Síria, que fracassou em função do apoio da Rússia a Bashar-al-Assad.
Trump rompe com as políticas regionais de livre-comércio e investimento, paralisa organismos multilaterais como a OMC, assume uma perspectiva hostil à defesa do ecossistema, retirando os Estados Unidos do Acordo de Paris e se opõe ao Pacto Mundial Para Migração. Toma a sério os efeitos da globalização neoliberal sobre a destruição do setor industrial estadunidense e o rebaixamento dos salários dos trabalhadores. Entretanto, não rompe com a globalização financeira e a financeirização do capital: corta os impostos das grandes corporações, ampliando o déficit e a dívida pública, e escolhe, como inimigos, os Estados competidores e os trabalhadores imigrantes. Para atingi-los usa a força do Estado não apenas contra a China, mas contra aliados históricos como a Alemanha e o México: impõe tarifas sobre os produtos chineses; ameaça com sanções as empresas e os Estados que negociarem com a Huawei; intimida a Alemanha anunciando o propósito de estabelecer cotas sobre as exportações dos seus automóveis por razões de segurança nacional; e chantageia o México com impostos sobre suas exportações, caso não imponha um controle das fronteiras que impeça ou derrube drasticamente o fluxo migratório para os Estados Unidos, exigindo ainda que compre grandes volumes de sua produção agrícola.
O America First, de Trump, deve ser entendido ainda como uma retomada da Doutrina do Destino Manifesto. Trata-se de restabelecer o controle político e econômico sobre a América Latina e o Caribe, que considera o seu espaço continental vital, reduzindo os seus Estados à condição de semicoloniais e neocoloniais, para enfrentar ameaças estrangeiras ou obstáculos ao expansionismo dos Estados Unidos. Esta doutrina, que guiou a política externa dos Estados Unidos de 1846 até 1933, entre a guerra pela conquista do território mexicano até a Política de Boa Vizinhança de Roosevelt, está sendo ampliada para incluir não apenas o México, o Caribe, a América Central e o Canal do Panamá, como antes, mas a América do Sul, zona então vista como de autonomia relativa. Isto tem relação com o grau de desafio, muito superior, ao imperialismo estadunidense, representado pela ascensão da China no sistema mundial.
Trump dá sequência a um giro já realizado por Obama para conter a integração latino-americana e sua articulação geopolítica mundial. Mas o faz de forma muito mais unilateral e violenta. Rompe com o liberalismo global, restabelece com maior intensidade a estratégia do cerco contra Cuba e busca derrubar o que chamou de Troika da Tirania, que imputou aos governos deste país, da Venezuela e da Nicarágua. Estabelece nova escala de sanções econômicas e de guerras híbridas, estimulando ainda uma intervenção militar na Venezuela por meio do Grupo de Lima. Seu objetivo é o de controlar os imensos recursos estratégicos da região para dar novo impulso à industrialização dos Estados Unidos, ameaçada pela competição internacional. Neste projeto, se reserva a desindustrialização à América Latina, convertendo-a em produtora de alimentos e de matérias-primas minerais e agrícolas. A desindustrialização atinge inclusive o setor petrolífero, onde os Estados Unidos se lançam como uma potência industrial, exportadora de diesel e gasolina, e importadora de petróleo cru. Abre-se assim um enorme espaço para a corrida sobre os recursos naturais da Amazônia visando a exploração mineral, pecuária e agrícola. De especial interesse torna-se a área constituída pela Reserva Nacional do Cobre e Associados (RENCA), que se pretende extinguir, revertendo a demarcação de terras indígenas e outras reservas naturais que estão no seu perímetro e equivalem em tamanho à Dinamarca.
O governo Bolsonaro impulsiona internamente essa estratégia e encontra resistência limitada dos segmentos industriais. Estes aceitam reconverter-se na financeirização, ou em estratégias de diversificação produtivas mais específicas, como a mineração e o agronegócio, recusando qualquer projeto mais amplo de desenvolvimento que eleve o nível de emprego e, com isso, as pressões dos trabalhadores para a redistribuição do excedente. Abandona-se o desenvolvimento em nome do controle político sobre o Estado
O imperialismo unilateral de Trump implica uma mudança na relação com a União Europeia. Trump, ao contrário de Obama, apoia o Brexit e a liderança de Boris Johnson para enfraquecê-la Ele a vê cada vez mais como competidora e busca limitar sua penetração tanto sobre o mercado interno dos Estados Unidos. Busca limitar ainda sua atuação sobre a área que supõe de dominação continental dos Estados Unidos, recuperando a dimensão imperialista da Doutrina Monroe. Quando Mercosul e União Europeia acertaram os termos de um acordo de livre-comércio, Trump exigiu ao Brasil abrir a negociação para firmar um TLC e despachou o Secretário de Comércio Exterior estadunidense, que não vinha desde 2011 a este país, para alertar sobre o risco de armadilhas que inviabilizassem um futuro com os Estados Unidos. Desde então Bolsonaro abriu fogo contra o acordo com a União Europeia, escolhendo a França, a potência europeia mais sensível em questões ambientais, como alvo.
Na véspera da chegada de Wilbur Ross ao Brasil, Bolsonaro desmarcou a reunião com o Chanceler francês, alegando problemas de agenda, para cortar o cabelo, durante o horário marcado, em liveinspirada no registro fotográfico de corte do cabelo de Hitler em uma barbearia. Ele cruzou os braços diante Dia do Fogo, forjado para exibir apoio à sua política para a Amazônia, retardando o socorro à floresta, às reservas indígenas e aos seus habitantes. Acusou as ONGs ambientais de estarem por trás do incêndio, ofendeu a Primeira-Dama francesa, recusou a ajuda da União Europeia para combater o incêndio e promover a reflorestação. Fez o possível para criar um incidente diplomático irreversível que inviabilize o acordo, enquanto simulava um nacionalismo retórico denunciando a suposta tentativa europeia e francesa de internacionalizar a Amazônia, quando em discurso de campanha, afirmou entender não ser mais do Brasil. Ele anunciou estar articulando junto com os Estados Unidos uma solução para a Amazônia e liderar a formulação de um documento de governantes sul-americanos repudiando o intervencionismo europeu.
As atitudes de Bolsonaro não devem ser vistas como improvisadas e impensadas, mas como parte de uma estratégia deliberada e articulada para comprometer o multilateralismo da política externa brasileira e submeter o país ao imperialismo neocolonial de Trump. Representam uma cruzada ideológica para impor um governo forte e repressivo internamente, mas fraco e servil no plano internacional. Sua defesa do nacionalismo brasileiro se revela patética quando os fatos indicam que age como uma marionete de Trump para entregar nossas riquezas e o controle da Amazônia ao capital estadunidense. A imprudência de Macron em revelar sua pretensão de internacionalizar a Amazônia, caso o governo brasileiro não a protegesse, serviu de pretexto para que Bolsonaro levantasse uma cortina de fumaça em torno de suas reais intenções. A ameaça de um imperialismo francês sobre a Amazônia equivale a um risco zero para o Brasil. Não há nenhuma possibilidade de emprego da força francesa ou europeia que contrarie os interesses dos Estados Unidos na região. Por outro lado, o nacionalismo não deve ser defendido como instrumento para aniquilar direitos dos trabalhadores, promover ecocídio, extermínio das populações indígenas, destruir a democracia e ameaçar governos socialistas vizinhos. Foi por esta razão que a Alemanha nazista terminou invadida pela URSS durante a Segunda Guerra Mundial, com amplo respaldo internacional e de grande parcela dos alemães, oprimidos pelo fascismo.
Bolsonaro expressa no século XXI e, de forma acentuada, as formulações da ala fascista que organizou o Golpe Militar do grande capital em 1964, e que teve seus principais representantes nos generais Artur da Costa e Silva e Silvio Frota. Algumas de suas principais inciativas ecoam as diretrizes básicas deste grupo: a subordinação da política externa ao alinhamento ideológico dirigido pela extrema-direita dos Estados Unidos, a aproximação com o sionismo, a redução drástica do Estado na economia, a busca do protagonismo dos militares e dos setores repressivos no aparato de Estado e o rechaço à democracia.
Em Ideais Traídos, Sylvio Frota expõe essas teses: alega que as razões ideológicas são mais importantes que as motivações de comércio exterior; recusa a política externa de pragmatismo responsável e ecumênico de Geisel; ataca o estabelecimento de relações diplomáticas com a China, afirmando que o maoísmo não seria compatível com a civilização democrática (sic) e cristã brasileira, procedimento que Ernesto Araujo reverbera, quando diz que o Brasil não deve vender a alma para exportar soja e minério à China; opõe-se ao voto brasileiro contra o sionismo; rechaça a abstenção no bloqueio à Cuba; e critica o estabelecimento de relações com Angola e Moçambique. Ele ainda acusa Geisel e Golbery de serem de centro-esquerda; arremete contra o capitalismo de Estado na economia, que considera precursor do comunismo; opõe-se à redemocratização e à liberdade de imprensa; propõe o alinhamento radical aos Estados Unidos, nomeando-os como o derradeiro reduto da democracia, ainda que não a todos os seus dirigentes, como Jimmy Carter, a quem imputa agir sob influência soviética quando tentou conter o sionismo.
Um dos aspectos da política de submissão neocolonial de Bolsonaro, que já começa a despontar, é a liquidação das reservas brasileiras para impedir que forças políticas no futuro possam usá-las para o desenvolvimento do país e da integração latino-americana. Apenas em setembro, o Banco Central, sob o comando de Roberto Campos Neto, pretende se vender U$ 11 bilhões a pretexto de manter estável o valor do real frente ao dólar. Tal iniciativa, caso se torne sistemática, pode atuar para reforçar a liquidação dos ativos do Estado e ameaçar as poupanças das camadas médias em favor da centralização financeira em grandes bancos internacionais.
Este projeto, se prosperar, cristalizará o poder quase absoluto de uma burguesia compradora e parasitária sobre o aparato de Estado, que o utilizará para fazer seus negócios particulares, destruindo-lhe a autonomia relativa e impondo um estilo de gestão privado e familiar, como na máfia. Para tanto, buscará colocar no lugar da ciência, da educação e da cultura, o fanatismo religioso e a cultura de extermínio, reduzindo a classe trabalhadora à condição de um lumpemproletariado desamparado, composto por uma ralé de indivíduos pobres, ignorantes, violentos e ressentidos, que sem direitos e o mínimo de consciência anticapitalista, se aproximarão a situações de trabalho análogas à escravidão, tornando ainda mais viva a metáfora do retorno a um Brasil colonial.
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Carlos Eduardo Martins é Professor Associado do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ e Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ). Membro do conselho editorial da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, é autor, entre outros, de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina(2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007) e co-organizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009), ambos publicados pela Boitempo. É colaborador do Blog da Boitempo quinzenalmente, às segundas.
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