Por Allan Kenji, para Desacato.info.
A reação institucional das universidades e de muitos dos críticos de primeira hora foi a pior possível. Imediatamente as universidades federais passaram a emitir notas e declarações públicas reivindicando suas posições nos rankings, seu papel na produção de publicações no mercado editorial científico internacional, as parcerias público-privadas pelas quais são responsáveis e a configurar o bordão “sem papel não há ciência”. Nada mais perigoso que tentar lutar contra os efeitos do neoliberalismo buscando agarrar-se às suas próprias causas.
Os rankings acadêmicos são alguns dos principais mecanismos pelos quais as instituições acadêmicas no Brasil e no mundo concorrem entre si no mercado de matrículas, investimentos, bolsas e recursos públicos. Eles funcionam, assim como os índices acadêmicos produzidos por agências “independentes” e “externas”, com a mesma lógica que as agências de avaliação de risco operam quanto às políticas monetárias e fiscais dos Estados nacionais: aumentando as notas daqueles que cumprem religiosamente os ajustes demandados pelo capital e rebaixando para punir aqueles que se desviam. A produção de índices talvez seja a principal expressão do atual processo de financeirização nas instituições públicas. Como nelas, a financeirização não alcança a propriedade sobre os capitais ou a liquidez de seus ativos; o que interessa é que as modalidades de gestão sejam cada vez mais semelhantes, em tudo quanto seja possível, à lógica das instituições financeirizadas. É assim que as universidades respondem aos investimentos em pesquisa e ensino, retornando uma taxa de produtividade medida por “produtos” (patentes, publicações, serviços prestados, estudantes formados etc.), modulando a organização universitária por modelos de “eficiência”, “governança” e concorrência. Os laboratórios universitários brasileiros concorrem entre si por recursos privados, disponibilizando estudantes, professores e equipamentos custeados pelo Estado para a produção de conhecimentos que não serão apropriados coletivamente, mas privadamente pelas empresas.
Agarrar-se aos rankings e índices acadêmicos não servirá em absolutamente nada para a defesa da educação pública. Alguém realmente imaginou que o Ministério da Educação não conhece os índices com os quais trabalha há pelo menos duas décadas para forçar as universidades e todo o sistema educacional brasileiro à submissão? Ou, ainda, que ao ouvir os reitores invocar esses resultados acadêmicos, o governo cairia em si, dando-se por satisfeito? Seria ingenuidade pensar que o governo não tem projeto, não tem estratégia, não domina suas táticas e não aplica seus métodos para concretizar o destino que traçou para a educação nacional. Mas há algo pior que a ingenuidade porque, fora a disputa simbólica, o que resta é a subjetivação de uma lógica que contrapõe as instituições acadêmicas como se o que estivesse sendo afirmado não é a autonomia das universidades perante todos os governos e os cortes em todas as suas dimensões (técnica, tática e estratégia), mas que se deve cortar daquelas instituições que não têm uma boa posição nos rankings e índices. Essa lógica aceita implicitamente (1) os cortes, como se se tratasse de indicar que não devem ocorrer “nesta ou naquela” instituição, conforme seus resultados “acadêmicos”, (2) aceita a legitimidade dessas métricas concorrenciais (rankings e índices), algumas das quais realizadas por organizações estrangeiras (empresas privadas interessadas diretamente no mercado mundial de educação) e (3) aceita que o ranqueamento das instituições tenha efeitos concretos e efetivos na concorrência interinstitucional pelos fundos públicos e privados, indicando quais instituições devem ser mais ou menos afetadas pelos cortes ou quais devem receber mais investimentos privados em seus laboratórios. É um contrassenso grave que dirigentes das instituições públicas, em nome da autonomia universitária, reivindiquem estratégias como essas. Afinal, o que pode ser mais incompatível do que tentar salvar a autonomia das universidades apelando justamente às métricas externas, comprometidas com a formação de um mercado mundial de educação superior como o Times Higher Education?
Não seria esse o momento de passarmos em revisão todos os dispositivos legais e infralegais que possibilitaram que as universidades públicas se tornassem tão vulneráveis ao assédio dos capitais e dos governos? Talvez nenhum momento tenha sido tão propício para analisarmos a fundo o quanto a criação de entidades como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), e outras fundações de apoio à pesquisa, tornaram as universidades e a formação de pessoal de nível superior reféns de capitais e do governo. Embora tenham cumprido importantes papeis no financiamento da formação, da pesquisa e diversos projetos, essas entidades e fundos são responsáveis hoje pelo gravíssimo grau de vulnerabilidade da ciência brasileira. Bastaria ao governo congelar os recursos de qualquer uma delas para paralisar a pós-graduação e grande parte dos laboratórios nacionais. Seus financiamentos evitaram durante muitas décadas um debate mais amplo sobre a vinculação do orçamento destinado às universidades para garantir o orçamento dessas instituições de forma independente dos governos. Sem isso, a autonomia universitária não existe além do plano simbólico.
Que seja um governo como o de Jair Bolsonaro que detenha em suas mãos os poderes que controlam a vida acadêmica e universitária apenas lança luz sobre um problema que sempre existiu e persistiu com a conivência da maioria dos acadêmicos. A história vai mostrar se esses mesmos setores estarão dispostos a enfrentar finalmente a questão da autonomia universitária, mesmo que isso signifique pôr fim a todos os avanços neoliberais que destroçam nossas instituições ou se suas lutas não ultrapassam o desejo de retornar à ilusão anterior de que tudo se passava muito bem com a educação superior nacional até a chegada de um suposto “louco” ao poder.
Seja como for, não temos qualquer tempo a perder. Enquanto a maioria dos dirigentes universitários parecem acreditar que o “bom comportamento” acadêmico seria razão de serem poupados, nós não podemos ter quaisquer ilusões: o tempo da conciliação de interesses terminou, finalmente a luta de classes alcança as universidades sem máscaras. O governo Bolsonaro tem um destino muito preciso para educação superior e para o Brasil no mundo, não podemos nos enganar com futilidades, o governo dá mostras consistentes de que sabe o que fazer e, o principal, como fazer. Cabe a nós dirigirmos nossa luta por nossas próprias mãos e pelos nossos próprios métodos, munidos das melhores experiências sindicais e estudantis reunidas na história.
+ Bolsonaro e os cortes na educação. Considerações preliminares – 1ª parte
+ Bolsonaro e os cortes na educação superior: considerações preliminares (II)
+ Bolsonaro e os cortes na educação superior: considerações preliminares (III)
Referências
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