Por Joaquim Alves da Silva Jr.
“… só temos o testemunho de um dos protagonistas, o invasor.
Ele é quem nos fala de suas façanhas.
É ele também, quem relata o que decidiu aos índios e negros, raramente lhes dando a palavra de registro de suas próprias falas.
O que a documentação copiosíssima nos conta
é a versão do dominador.”
(Darcy Ribeiro).
A ideia desta breve reflexão é remontar pontos históricos da formação do Brasil enquanto Estado e relacioná-los ao recente contexto de intensificação, por um lado, da violência direcionada às diferentes comunidades marginalizadas, e, por outro, ao paradigma de desenvolvimento extrativo e destruidor da biodiversidade. Esses componentes são pilares estruturais de um sistema de dominação que se consolidou durante período colonial, sendo galvanizado institucional e culturalmente por meio da constante reestruturação motivada ideologicamente pelos discursos que lhe correspondem ao longo do tempo. São três os casos recentes a serem comentados: a condenação a 11 anos de prisão imputada ao Rafael Braga, a palestra do deputado federal Jair Bolsonaro na Hebraica do Rio de Janeiro e a intensificação do desmatamento em paralelo ao aumento do genocídio na Amazônia. Em primeiro lugar, retornarei ao quadro histórico do século XIX para entender a inserção do Brasil nas relações comerciais e políticas do Atlântico, bem como a moldagem das influências externas no desenvolvimento do contexto interno do país.
A hegemonia inglesa no Atlântico, o tráfico de escravos e a escravidão
Ao final do século XVIII, há uma intensa remodelação nas regras do jogo imperialista concentrando a disputa entre a Inglaterra e a França, confrontando duas perspectivas: a livre cambista e a colonial expansionistai. Em paralelo, o continente americano seria palco de um dos fatos mais extraordinários da história ao lado da independência das Treze Colônias inglesas e do movimento bolivarianista de independência das colônias espanholas: a revolta escrava da então colônia caribenha francesa de Saint-Domingues, a mais importante produtora de café e açúcar da época, resultando na Revolução do Haiti em 1791ii.
TEXTO-MEIO
Esse momento catalisou inúmeros movimentos abolicionistas na América Latina, em paralelo à reação virulenta das elites coloniais coagindo revoltas de forma violenta. Ademais, surgiu um novo cenário de dominação política e econômica do Novo Mundo, concentrando-se na recém-independente República dos Estados Unidos da América e no Império britânico. Enquanto o Caribe seria continuadamente dominado no âmbito comercial pelos norte-americanos, os britânicos fortaleceriam seus laços com as Américas espanhola e portuguesa, abrindo também um lento caminho para a colonização da África e da Ásia. Na América Latina, os processos de independência foram marcados por três características principais: o controle das elites regionais sobre os novos Estados; a reorientação à expansão dos sistemas de monoculturas tropicais em proveito à crise de oferta do Haiti e; o aumento do tráfico escravista com base no plantation e outras matérias primas fundamentais ao impulso da Revolução Industrialiii.
O Brasil, a era da liberdade e o imperialismo escravista
A problemática da escravidão e do tráfico de povos africanos no início do século XIX era algo teoricamente contrário aos preceitos liberais, o que levou ao surgimento de movimentos abolicionistas e acordos internacionais nas metrópoles sob a liderança britânica. No entanto, a distinção entre tráfico de escravos e o sistema escravocrata nos esclarece os reais caminhos da “era da liberdade”. A pesar de os britânicos verem o fim do tráfico com bons olhos, tomar uma atitude mais enérgica em relação ao escravismo não era um consenso entre as elites, divididas entre a detentora das colônias e a pequena, mas crescente, elite industrialiv.
Mesmo a linear divisão entre os abolicionistas do norte e escravocratas do sul pode ser demarcada com menor linearidade com a entrada dos Estados Unidos como potencia imperialista: a dependência de escravos para o avanço ao oeste, o que levou a um acordo entre abolicionistas e escravagistas no início do século XIXv. Neste mesmo período, a república americana se transformaria na segunda potência marítima no mundo. Tecendo laços com Cuba, daria continuidade ao “ótimo negócio” tráfico de humanos, tanto para os escravistas do sul como os abolicionistas do norte. Os últimos, produtores de navios, controlariam o comércio atlântico do continente americanovi.
A colônia brasileira da época depara-se com a crise da cana-de-açúcar em vista da crescente competição com outras colônias, além da necessidade de garantir de suas fronteiras territoriais. Com o apoio britânico, ocorre transferência da Coroa portuguesa em 1808, abandonando a metrópole a Napoleão. Já o processo de independência em 1822 marca o início da história institucional brasileiravii. No período subsequente, até metade do século XIX, o alinhamento Brasil-Inglaterra foi continuamente enfraquecido, em muito pelo crescente combate ao tráfico escravista por parte dos ingleses, a exemplo da Convenção Antitráfico de 1826, assinada entre britânicos e portugueses, ou na influência na promulgação da Lei Feijó Barbacena de 1831, que proibia a escravidão de pretos aportados no império a partir daquela dataviii.
Por sua vez, o crescente império norteamericano não sofria até então a fiscalização britânica. Já o Brasil fortaleceria o comércio escravista centrado no baronato. Somente na primeira metade do século XIX, o Brasil recebeu aproximadamente 40% de todo o contingente de cerca de cinco milhões de escravos vindos da África durante toda a Históriaix. Há uma crescente insatisfação das elites regionais com a ingerência britânica nas tomadas de decisões relativas à restrição do tráfico escravista. A tensão diplomática se materializou com o aumento de impostos de importação e medidas protecionistas pelo lado do império (Tarifa Alves Branco, de 1844) e a Inglaterra outorgando, de forma unilateral e em caráter internacional, o comércio escravista como ato de pirataria (Lei Bill Aberdeen, de 1845)x.
Esse momento refletiu nas disputas entre a elite escravagista e o império, defensoras de perspectivas teoricamente díspares: a manutenção do sistema escravocrata e o liberalismo. Contudo, o controle cada vez maior dos canais parlamentares garantiu a promulgação de inúmeras legislações favoráveis às elites senhoriais e direcionadas à manutenção da escravidão. Destaca-se a Lei de Terras de 1850, fundamental para instituir a propriedade privada sem qualquer tipo de alteração na estrutura fundiária ou o fomento aos pequenos lavradores, posseiros ou escravos libertosxi. Mesmo a Lei Eusébio de Queirós que proibiu o comércio escravista (curiosamente publicada doze dias antes da promulgação da Lei de Terras), foi elaborada cuidadosamente para tirar as responsabilidades da elite rural em relação aos escravosxii.
Um dos casos de apoio mútuo entre a monarquia e a elite escravocrata ocorreu no episódio da tentativa dos EUA importarem seus escravos para a Amazôniaxiii. A ideia girava em torno de “uma necessidade absoluta de que os negros libertos [fossem] transportados para fora da jurisdição dos Estados Unidos, onde jamais poderão desfrutar de igualdade política ou socialxiv”. A proposta lastreava a pretensão de dominação territorial norteamericana que, contudo, acabou sendo vetada por Dom Pedro II. Havia a necessidade de proteger o ciclo econômico da borracha, em franca expansãoxv. Ainda assim, os EUA realizariam uma contínua campanha a favor do livre comércio na maior bacia hidrográfica do mundo.
Uma das questões mais importante da época girava em torno da ideia de “raças” e as implicações nacionalistas inspiradas pelas abordagens norteamericanas e europeias de eugenia. Em paralelo à preocupação da elite rural com as crescentes revoltas escravistasxvi, a questão racial foi o pano de fundo ao então embrionário meio intelectual brasileiro. As nascentes instituições educacionais da época eram palco privilegiado deste debate, cujo objetivo principal era o estabelecimento de critérios diferenciados de cidadaniaxvii. Isso se traduz na abordagem da incapacidade dos negros e mestiços ao trabalho livre, o que serviu como uma das justificativas à imigração europeia.
Enquanto a abolição era de fato promulgada em 13 de maio de 1888, o golpe senhorial-militar que marcaria o início da República Velha seria dado um ano depois. O caminho do modo de produção capitalista e de uma legislação formalmente liberal, instituídas via políticas de colonização e distribuição de terras às famílias europeias, conviveu com o trabalho escravo ou no máximo livre, especialmente nas zonas cafeeirasxviii.
A dupla face predatória do sistema escravista de plantation
A exploração da força de trabalho escravista está intrinsecamente relacionada com a forma de manejo dos recursos naturais. Entre o início da colonização até final do século XVIII, o Brasil participava do sistema mercantil extraindo recursos florestais e minerais. Havia uma agropecuária de caráter diversificado, visando o atendimento do mercado interno com as crescentes incursões para as Minas Gerais, bem como a cana-de-açúcar no nordeste e sudeste para exportação. Contudo, o sistema agrícola empreendido foi rapidamente sobrepujado pelas colônias inglesas, francesas e holandesas, que desenvolviam técnicas de melhorias partindo das experiências e aprendizados na África e Ásiaxix.
Com uma lógica arcaica baseada na abertura de áreas de plantio por meio do fogo, da usurpação das terras de indígenas e de pequenos posseiros, o sistema(?) agropecuário era improdutivo e predatório. A extração madeireira completava o ciclo exploratório, pois esta não somente fornecia lenha doméstica e para a mineração, como também para o avanço da grande lavoura por meio das suas cinzas. Nenhuma importância era dada à pesquisa da biodiversidade, ao conhecimento ecológico local, ou mesmo à utilização potencial desses recursos.
A vinda da Coroa ao Brasil no início do século XIX traz renovações liberais e científicas. Ligada a império britânico, a metrópole tentava superar o paradigma mercantil de exploração irracional da biodiversidade. Há o exemplo do surgimento de naturalistas brasileiros tais como José Bonifácio de Andrada e Silva, assim como a construção do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, também fundado em 1808, que abriu caminho para ações de conservação da Mata Atlântica. Entretanto, como argumenta o historiador Warren Deanxx, as elites rurais do centro sul, especialmente as fluminenses, instigadas pelo ciclo cafeeiro, estabeleceriam uma estratégia calcada em quatro movimentos.
Em primeiro lugar, a elite forçaria manutenção da escravidão até as últimas possibilidades: a Coroa portuguesa tinha a intenção de extinguir o tráfico de escravos, fato este que já ocorria em outras colônias conjuntamente à crescente pressão britânica. Por outro lado, a expansão do café e a intensificação do tráfico escravista seguiram. Havia resistência ao uso de técnicas para melhorias produtivas, causando não somente a sobre-exploração do trabalho escravo como a expansão da grande lavoura sobre os ecossistemasxxi. Adicionando o fato de que foi a escravidão, e não o café, a “atividade econômica” mais rentável da época para baronato rural;
Em segundo lugar, as elites acabariam com os obstáculos ao monopólio privado sobre terras públicas: ao final do século XVIII houve uma tentativa de maior controle sobre as terras da Coroa em relação ao regime de sesmarias, nada mais que um sistema de doação de terras públicas às elites rurais. Neste período surgiu uma corrente de pensadores reformistas que defendiam a necessidade de fixação dos limites das propriedades, parcelamento para pequenos posseiros e escravos libertos, reivindicação de terras abandonadas e a promulgação de políticas de conservação mais sólidas. Seria hoje o que chamamos de reforma agrária e, obviamente, nunca passaria do campo das ideias da época, enquanto a realidade mostrava um aumento sem precedentes de aberturas de terras e intensificação do tráfico escravista para nutrir o ciclo cafeeiro;
Em terceiro, temos a remoção de indígenas das terras e recrutamento forçado para o trabalho: aqui não há conflitos entre elites rurais, Coroa ou mesmo as correntes liberais da época. A escravidão de povos africanos não significava alívio algum aos indígenas, forçados às constantes fugas pelo avanço do plantation. A lógica da assimilação ou extinção seguia: capturados para trabalhos forçados, crianças vendidas, mulheres prostituídas, fixação das ‘aldeias’, algo semelhante ao processo de genocídio indígena durante a conquista do oeste nos EUAxxii. A elite rural organizava milícias caçadoras de indígenas, comumente chamados de bugreiros, com atuação em São Pauloxxiii e em Santa Catarinaxxiv. Como se apreende de uma frase dita na época: “A terra encharcada de sangue é terra boaxxv”.
O quarto ponto foi enfraquecer a legislação florestal: no período colonial, a Coroa proibia o corte de pau-brasil e de madeira de lei, bem como tinha o monopólio sobre a extração e venda dos mesmosxxvi. Ao início do século XIX, a extração madeireira, seja pela sua retirada em propriedades privadas, seja na interlocução com comunidades locais e indígenas, alimentava a indústria naval e as crescentes serrarias. Paradoxalmente, a dependência em relação à Europa era espantosa a ponto de o Rio de Janeiro importar mogno da Jamaica mais barato que os preços praticados das madeiras de leis locais, estas amplamente subsidiadas aos europeus. Outro interesse de exportação eram os animais e flores raras. A caça, tanto para alimentação dos posseiros como atividade de lazer das classes médias da época, extinguia rapidamente a fauna local, especialmente em áreas próximas às periferias urbanas.
O período em questão iniciaria a consolidação da unidade nacional marcada pela desigualdade estrutural do regime de acesso a terra, em adição à pratica predatória que destruiu boa parte da Mata Atlântica, não sendo nada além de um prelúdio ao que ocorreria com outros ecossistemas brasileiros. Após a proibição do tráfico de escravos, houve a migração de trabalhadores livres para o sudeste e para a região amazônica, esta última incentivada pelo ciclo da borracha. Já a região sul estabeleceria um regime diferenciado, em vistas da colonização de povoamento e da sua crescente importância regional como produtor de alimentos e de madeira para a nascente indústria paulista. A política de distribuição de terras em lotes familiares para os colonos europeus foi o pilar desta diferenciação estrutural no sul. Não que a região em questão não tenha se aproveitado do trabalho escravoxxvii, ou mesmo que não tenha destruído suas florestas de araucáriasxxviii, pelo contrário.
A questão atual é a mesma de sempre…
A evolução dos dois últimos séculos para os dias atuais evidencia um flagrante continuísmo do sistema desigual e predatório desenvolvido no Brasil, tanto na sua dimensão social como ecológica. Não faltam fatos históricos desta continuidade, tanto na repressão às periferias urbanas como no meio rural. Ao exemplo do avanço das commodities para o centro-oeste e Amazônia sob o mesmo modelo predatório e violento ocorrido na Mata Atlântica no século retrasado. O crime ambiental de Mariana completa um ano e meio sem qualquer solução. Acompanhamos a entrega dos recursos naturais e minerais, especialmente após a crise do sistema capitalista ocorrida em 2008, a exemplo da Petrobrásxxix. A tragédia farsesca vira piada geopolítica, uma das empresas mais importantes do mundo desmantelada e entregue aos mesmos imperialistas de sempr – estes sim, plenamente “aptos” a explorar recursos encontrados por pesquisa e tecnologia brasileirasxxx.
Por sua vez, a questão racial nunca foi enfrentada com o devido vigor;0, ao contrário, piorou ao longo do tempo. A condenação ao Rafael Braga por tráfico de drogas com provas que expõem duvida não é nada diferente do que já ocorria em finais do século XIX como método de controle das comunidades marginalizadasxxxi, ou mesmo com o aumento da violência nas periferias urbanas, em Terras Indígenas ou em comunidades camponesas durante a ditadura civil-militar. As “provas” da condenação — 0,6 g de maconha e 9,3 g de cocaína – estão sendo usadas neste momento por qualquer pessoa das classes médias e altas no Brasil. É uma amostra do racismo institucional instalado na era Vargas e mantido até os dias atuais sob o mito da democracia racial. Quando não reproduzido, esse mito é simplesmente enterrado do amplo debate intelectual e social crítico, com raríssimas exceçõesxxxii. Desta forma, compreende-se o porquê de boa porção da sociedade brasileira não se chocar com Claudias sendo arrastadas por camburões, torturas aos Amarildos, assassinatos de Marias Eduardas em escolas, jovens indo comprar lanche e sendo alvejados por 111 tiros, cento e onze tiros, CENTO E ONZE TIROS. Todos sob o jugo da força estatal de segurança. O círculo vicioso da violência institucional segue instrumentalizada pela lógica do soldado e do apartheid socialxxxiii.
A fala do deputado federal pelo Partido Social Cristão (PSC) e capitão da Reserva do Exército no Clube Hebraica do Rio foi chocante, o que não é novidade. O fato a ressaltar é como a divulgação dessa palestra foi tratada como banalidade pela maior parte das instituições e organizações, públicas ou privadas, civis ou militares. Muitas dessas comportam pessoas pretas como quadros e não foram capazes de emitir qualquer nota oficial em condenação. Nada de diferente da ideia de sociedade que se moldou historicamente. Numa das pesquisas eleitorais elaboradas pelo Datafolha, o deputado tem os melhores percentuais de intenções de votos entre as camadas mais ricas e com maior escolaridadexxxiv. Outro ponto a ser ressaltado é o local onde a palestra ocorreu, demonstrando que as contradições geradoras da exclusão e da desigualdade ocorrem em todos os meios políticos e instituições, incluindo as representantes dos povos que já sofreram com o preconceito e o fascismo.
A atenção dada pelo deputado à possibilidade de “uso econômico” de Terras Indígenas ocorre em paralelo ao recente aumento da violência no campo, como observado no Maranhão com a comunidade indígena Gamelaxxxv. Há o avanço contra a legislação voltada ao licenciamento ambiental e à estrutura estatal de proteção à biodiversidade, a exemplo das propostas de redução de unidades de conservação, além da criminalização de antropólogos, indígenas e procuradores dos Ministérios públicos com o relatório da CPI da Fundação Nacional do Índio elaborada pela bancada ruralistaxxxvi. Recentemente, um edital foi liberado pelo Ministério do Meio Ambiente para a contratação de empresas privadas com o objetivo de gerar informações espaciais da Amazônia, trabalho este já realizado pelo competente Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) há cinco décadasxxxvii. Em adição, discute-se a aprovação do Projeto de Lei n0 6442/2016, com o objetivo de reduzir a legislação trabalhista do meio ruralxxxviii para um modelo típico de relações pré-capitalistas, com o pagamento parcial do trabalho via alimentação, a possibilidade de venda das férias e dias descanso ao empregador, o aumento das horas trabalhadas, a participação no prejuízo em ano de colheita ruim, etc. Tal sistema se traduziria em termos concretos na volta ao regime de escravidãoxxxix.
Mesmo a finda fase progressista não passou de uma ilusão com enorme urgência de ser superadaxl. A estruturação das políticas sociais e de um Estado mais funcional foram pontos muito positivos, especialmente às comunidades pretas que se viram pela primeira vez como parte da agenda governamental no âmbito do governo federal. A implantação da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e das cotas raciais para concursos públicos são alguns exemplos virtuosos. Contudo, nada justifica um governo pretensamente progressista aprovar a Lei Antiterrorismo. Sem falar na miopia direcionada à dimensão ambiental. Relembremos da aprovação de um “Código Florestal Ruralista” e da pouca atenção dada às reivindicações de movimentos ambientalistas e de comunidades afetadas por grandes obras. Junte tal contexto à ausência da formação política de base e temos a janela de oportunidade à reação elitista, operacionalizada pela porção fascista da classe média, esta acompanhada de elevada carga de ódio às minorias majoritárias, movimentos de esquerda e comunidade LGBT. O resultado foi (mais um) golpe com relevantes perdas das poucas conquistas populares e da insuficiente estrutura estatal que se formara.
Porém, o sistema político brasileiro é cindido na origem. Ora é puxado pelo populismo no executivo, ora pelo parlamentarismo conservador elitista, este último com apoio do judiciário e das forças armadas quando necessário. Mestre Celso Furtado já nos alertava sobre a característica inata de um legislativo que, controlado pelas oligarquias rurais desde a época colonial, impediria quaisquer tipos de reformas de basexli. Aliás, todas as mudanças institucionais importantes no país se deram por meios elitistas, sejam eles políticos ou econômicos, incluindo a Constituição Federal de 1988xlii. Do outro lado do abismo, os “mestiços” que batalham diuturnamente, os verdadeiros construtores desta nação incompleta, são feitos de tolos pelas “meritocráticas” classes médias e altas que os exploram sistematicamente. Ainda assim, esses batalhadores tentam vencer todos os tipos de obstáculos, preconceitos, violências e assimetrias de acesso às condições básicas de uma vida dignaxliii. Como bem afirma Jessé Souza, no Brasil poucos são os heróis que superam esse enorme quadro de adversidades.
Já o racismo é parte de um sistema maior de dominação e, seja nas antigas metrópoles ou nas antigas colônias, todo país com tal herança é um país racistaxliv. Entretanto, no Brasil a questão racial é uma construção social que permeia a sociedade em sua totalidade. Dificilmente surgirão quaisquer perspectivas de mudança sem o amplo reconhecimento desse problema. Só resta saber quando os campos ditos progressistas conseguirão alcançar tal nível de autocrítica e humildade para reconhecerem suas falhas históricas em relação ao tema. Em paralelo, a destruição ambiental e o círculo vicioso do desenvolvimento-subdesenvolvimento mostra que a sobre-exploração humana não está dissociada da sobre-exploração da biodiversidade. Assim como não há separação entre o potencial controle social com o controle territorial dos recursos naturais. Essa é a base para a lógica de manutenção da complexidade ecológica ao mesmo tempo em que esta sirva às necessidades humanas básicas. A questão ambiental perpassa as dimensões socioculturais, ecológicas, político-institucionais e econômicas. Ou seja, a questão ambiental é fundamentalmente uma problemática humana.
Não há evidência de mudança estrutural positiva neste quadro, mas o caminho parece ser o trabalho no cotidianoxlv direcionado aos excluídos deste debate, conjuntamente à construção crítica da política alçada ao plano regional e internacional, visando à superação dos sistemas coloniais de sempre, bem como suas variações pós-modernas. Talvez, a busca por um verdadeiro universalismo passe pela relação recíproca em respeito às diversas expressões culturaisxlvi e pelos princípios ecossocialistasxlvii.
Fonte: Outras Palavras.
Fonte Imagem de Capa: Jean-Baptiste Debret.