O tema “bolivarianismo” voltou às manchetes, sempre carregado de preconceitos e desconhecimentos, exatamente como quando Hugo Chávez, usando esse conceito, começou um processo de transformações na Venezuela que acabou repercutindo em toda a América Latina. Chávez era um milico, um membro das Forças Armadas venezuelanas que, desde seus primeiros passos no quartel, aprendeu a buscar na história do seu país as possibilidades de mudança no seu presente. Foi aí que encontrou um dos mais ilustres filhos da Venezuela, Bolívar, também um soldado.
Chávez era ainda um menino quando começou a se preencher com toda a promessa contida no sonho bolivariano de Pátria Grande. Uma América Latina unida, soberana, onde os países se amparassem e construíssem juntos um novo amanhã. Um espaço onde o desejo das gentes falasse mais alto do que o desejo de poder dos governantes.
O próprio Bolívar demorou para consolidar em si mesmo esse pressuposto da Pátria Grande. Quando bem jovem partiu para a Itália em busca de saberes, nem imaginava que iria voltar e fazer uma revolução. Simón poderia ser considerado um “coxinha” da época, filho da aristocracia, cheio da grana, disposto a se empapar de europeísmo. Era maçom e professava as verdades liberais. Mesmo no Monte Sacro, quando jurou, junto com Simón Rodríguez, libertar sua terra do domínio colonial espanhol, era só um branco bem nascido que queria mais liberdades individuais, bem ao gosto da doutrina nascente.
Quando voltou à Venezuela e se integrou as forças de Francisco de Miranda, foi derrotado. E não foi por acaso. Simón era mais europeu que venezuelano. Não havia entendido que sem os índios e os negros, nada lograria. Foi desterrado e encontrou guarida no revolucionário Haiti, dirigido por Petión. O grande general negro foi quem instruiu Bolívar e o jogou nas águas revoltas de uma novidade: uma Venezuela livre, mas também para os negros, os índios, os pobres. Uma Venezuela para todos. Assim, Bolívar voltou outro homem. Seu primeiro ato foi buscar os famosos “llaneros”, os mesmos que lhe impuseram dolorosa derrota no primeiro levante. E, com eles, passou a construir a libertação não só da Venezuela, mas de toda a América hispânica.
Bolívar não teve tempo de ser “bolivariano”. Morreu cedo, com 46 anos, abandonado pelos generais que ele mesmo elevara. Os velhos companheiros não queriam uma “Pátria Grande”, soberana e unida, queriam ser coronéis nos seus quintais. E assim foi. Com o desaparecimento de Bolívar, o sonho da integração solidária, generosa e popular se esvaiu.
Em 1998 Hugo Chávez recolocou as ideias de Bolívar em evidência. Eleito presidente quando toda a estrutura política do país já estava carcomida, ele reergueu a Venezuela inaugurando uma quinta república. De Simón recuperou as propostas de Pátria Grande, unificação e soberania. E, para fazer isso acontecer, aliou-se ao povo empobrecido, desde sempre fora de todas as políticas locais. Com as gentes, criou as famosas “misiones”, que nada mais eram – e são – que espaços de organização popular para aplicação de políticas públicas.
Com aqueles que realmente sofrem as políticas governamentais, Chávez foi conhecendo a realidade e distribuindo as verbas conforme as necessidades. Educação, moradia, saúde, cultura, tudo passou a ser discutido pelas pessoas comuns e elas começaram a definir onde, como e quando as coisas deviam acontecer. Isso não tirou poder da Assembleia Nacional, onde estão os deputados. Pelo contrário. Deu aos legisladores mais claridade para compreender o país, para saber onde deveriam ser aplicadas as políticas públicas e os recursos.
A proposta das missões da Venezuela é parte do que depois passou a ser chamado de “bolivarianismo”. Digo parte porque não é só isso. A participação popular se expressa em vários outros espaços e foi estimulada num longo e conflituoso processo de alfabetização. Assim que essa palavra tão abominada hoje no Brasil tem muito mais de Chávez que de Bolívar, já que Bolívar não viveu para implementar o governo que sonhara. Chávez pode mais. Em 13 anos de governo consolidou esse processo de construção popular com duas vias, governo e povo, povo e governo.
É certo que também na Venezuela essa forma de governar encontrou resistência. Aqueles que, por séculos, encheram seus bolsos com a grana do petróleo, excluindo a maioria da população, não podiam suportar que velhos, negros, jovens, trabalhadores, gente “comum”, passassem a dar palpite no andar das coisas, na aplicação dos recursos, no uso do lucro petroleiro. Aquilo apareceu como uma aberração à encruada oligarquia, useira e vezeira de governar sozinha, numa espécie de olimpo. A participação popular e a ideia de uma união entre os países era a própria imagem do demônio. Com a ajuda dos Estados Unidos, que também não via com bons olhos essa coisa de pobre pensar que é gente, a elite venezuelana apostou num golpe, perdeu, mas segue ainda buscando desestabilizar o país para que tudo volte como antes. Um pequeno grupo dominando o estado, e os pobres no “seu lugar”.
É importante que se diga que todo o processo venezuelano tampouco é um mar de rosas. Há problemas, há falhas, há erros. Mas, uma coisa é certa. Depois de Chávez a participação popular é uma realidade. E isso muda de forma radical a maneira de fazer política. Quem vive um processo assim não pode sair ileso. E é por isso que apesar de todos os problemas os venezuelanos resistem e seguem tentando encontrar um caminho.
Os conselhos populares no Brasil
No Brasil, uma proposta de conselhos populares, em pleno “dia seguinte” à derrota de uma parte expressiva da oligarquia local, ocupou as páginas dos jornais, as telas de TV e as redes sociais. O decreto Nº 8.243, editado em 23 de maio de 2014 pela presidente Dilma Roussef, foi derrubado na Câmara dos Deputados, numa clara articulação das forças opositoras para mostrar poder. A partir daí, a desinformação nadou de braçada.
O decreto derrubado instituía uma Política Nacional de Participação Social – PNPS, bem como o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS, e nele, vinha uma tentativa, ainda tímida, de iniciar a população num processo de alfabetização participativa. Segundo reza o artigo primeiro, a Política Nacional de Participação Social (PNPS) teria como objetivo fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil, na formulação, execução, monitoramento e avaliação de programas e políticas públicas e no aprimoramento da gestão pública.
As instâncias envolvidas seriam a sociedade civil – composta por cidadãos, coletivos, movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações; os conselho de políticas públicas que seriam instâncias colegiadas temáticas permanentes de diálogo entre a sociedade civil e o governo para promover a participação no processo decisório e na gestão de políticas públicas; as comissão de políticas públicas, que seriam responsáveis pelo diálogo entre a sociedade civil e o governo em torno de objetivos específicos, com prazo de funcionamento vinculado ao cumprimento de suas finalidades; a conferência nacional, uma instância periódica de debate, de formulação e de avaliação sobre temas específicos e de interesse público, com a participação de representantes do governo e da sociedade civil, podendo contemplar etapas estaduais, distrital, municipais ou regionais, para propor diretrizes e ações acerca do tema tratado.
Também haveria a ouvidoria pública federal, que cuidaria do controle e participação social responsável pelo tratamento das reclamações, solicitações, denúncias, sugestões e elogios relativos às políticas e aos serviços públicos, prestados sob qualquer forma ou regime, visando aprimorar a gestão pública; a mesa de diálogo, um mecanismo de debate e de negociação com a participação dos setores da sociedade civil e do governo diretamente envolvidos no intuito de prevenir, mediar e solucionar conflitos sociais; o fórum interconselhos, para o diálogo entre representantes dos conselhos e comissões de políticas públicas, no intuito de acompanhar as políticas públicas e os programas governamentais, formulando recomendações para aprimorar sua intersetorialidade e transversalidade.
Outro elemento seria a audiência pública, participação de caráter presencial, consultivo, aberto a qualquer interessado, com a possibilidade de manifestação oral dos participantes, cujo objetivo é subsidiar decisões governamentais; a consulta pública, outra maneira de participar em prazo definido, de caráter consultivo, aberto a qualquer interessado, que visa a receber contribuições por escrito da sociedade civil sobre determinado assunto, na forma definida no seu ato de convocação; e o ambiente virtual de participação social – mecanismo de interação social que utiliza tecnologias de informação e de comunicação, em especial a internet, para promover o diálogo entre administração pública federal e sociedade civil.
Ou seja, tudo o que as pessoas reivindicam e que também foram palavras de ordem dos protestos de junho: formas claras e reguladas de participação, elemento básico da democracia e nada muito diferente do que propõem as premissas liberais. É o reconhecimento da participação social como um direito que vai além do voto, é o início da construção de uma expressão da autonomia popular. Com essa política o governo pretendia dar concretude aos pressupostos mais elementares da vida republicana, tais como a solidariedade, a cooperação, o direito à diversidade, a informação, autonomia, e ampliação dos mecanismos de controle por parte da maioria da população. Uma democracia mais participativa, fora da lógica da representação que, hoje, na verdade, apenas representa a grupos economicamente fortes capazes de eleger deputados e senadores para a defesa de seus interesses. Uma boa olhada no Congresso recém eleito podemos observar que foi formada uma gigantesca bancada de representação do agronegócio e do latifúndio, uma grande bancada evangélica, e uma bancada mínima representando os interesses dos trabalhadores.
De certa forma, a proposta do governo muito pouco avança em relação aos modelos já existentes como os conselhos de saúde e de educação, por exemplo, e, em nada fere a ordem republicana dos três poderes. Por isso mesmo pouco tem em comum com a proposta bolivariana que está ancorada num poder regulamentado pela constituição que é o Poder Popular. Na Venezuela a república se ampara em cinco poderes distintos, o Legislativo, o Judiciário, o Executivo, o Eleitoral e o Popular, sendo que esse último é o que mais tem força. Logo, chamar de “bolivariano” o modelo brasileiro é desconhecer completamente o legado de Bolívar e também toda a nova organização política da Venezuela. No Brasil, não existe o Poder Popular constitucionalmente estabelecido e esses conselhos teriam carátermeramente consultivo.
Sendo assim, a demonização dos conselhos pela mídia comercial teria apenas duas causas: ou a completa ignorância dos seus jornalistas e articulistas – o que não é crível – ou apenas a já conhecida manipulação das informações para a construção de um consenso antipopular, antidemocrático e antilibertário, baseado na mentira. E, com certeza, a segunda opção é a que está valendo. Mesmo com o governo do PT se rendendo aos reclamos da velha direita, promovendo apenas alguns ajustes via políticas públicas, a insaciável elite nacional não admite qualquer aprofundamento de participação popular porque isso poderia colocar em andamento processos que eles podem não controlar.
O que realmente se pode depreender da proposta dos conselhos é que eles seriam mesmo um início, uma alfabetização participativa num país marcado pelo autoritarismo. Mas, nada que pudesse, por enquanto, colocar em questão a autoridade do legislativo nacional. Seria necessário uma nova Constituição, com a demarcação de um Poder Popular, tal qual aconteceu na Venezuela, para que essa proposta pudesse apenas se aproximar do chamado “bolivarianismo”. Isso porque qualquer pessoa de média inteligência sabe que os processos vividos em uma país não podem nem devem ser transplantados a outro. Cada país tem sua própria história, formação e tradição e é desse caldo que brotam as propostas de transformação.
O Congresso Nacional derrubou a proposta dos conselhos, não porque não saiba tudo isso que expliquei acima. É que os deputados, na sua maioria, representam interesses muito específicos, ligados a classe dominante e qualquer proposta que represente um mínimo passo em direção a uma soberania popular lhes aparece como assustadora. O que é óbvio. estão defendendo a si mesmos. Se o povo decidir eles perdem os privilégios de serem os capachos dos que mandam. Além disso, era preciso mostrar que eles seguem no comando e que o governo precisará rebolar para costurar acordos e consensos.
O ódio aos conselhos populares que se registra numa parte da classe média também não é novidade. Historicamente a classe média sempre pendeu para o lado conservador, buscando conservar os ganhos que o sistema meritocrático, por vezes, se lhes oferece. Há uma construção histórica de ódio aos pobres e muitas vezes até aqueles que vêm das camadas subalternas assumem esse ódio como uma tentativa de negar quem são.
O fato é que a proposta petista tem pouco de Bolívar e pouco de Chávez. Ainda não é uma proposta socialista ou coisa que o valha. É só a regulamentação do que já existe com a proposta singela de um início de alfabetização participativa. Um mínimo do que os velhos liberais apregoavam como válido e bom para a democracia. Mas, para o reacionarismo nacional, é importante que se apague imediatamente essa chama, para que não venha o “demônio comunista”. Um discursos rançoso, atrasado, mas que não deve jamais ser minimizado. Na classe dominante, o medo do povo pobre é natural e necessário. Porque os pobres são muitos e podem mudar a face de um país, desde que compreendam a força que têm. Por isso a guerra midiática e cultural através das palavras. É preciso derrotar a maioria também no campo semântico, para que as palavras que andam sejam demonizadas. É assim que mesmo os empobrecidos começam a odiar a si mesmos.
Elaine Tavares é jornalista no Iela.