Por Marcos Hermanson Pomar.
Bois e vacas recebendo chutes na cabeça e choques elétricos nos genitais, esfolados e esquartejados ainda vivos. Condições sanitárias precárias, animais sem acesso à água e exposição prolongada ao sol.
É o que mostra um relatório recém-divulgado pela ONG Animal Equality, após investigação conduzida em três frigoríficos de pequeno e médio porte nos estados de Minas Gerais e Pará.
Mesmo sob fiscalização dos órgãos de defesa sanitária, os locais infringem uma série de dispositivos da Portaria 365/2021, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que define regras de bem-estar animal em abatedouros no país.
Os investigadores da ONG entraram nos locais disfarçados, mas as imagens foram gravadas de forma legal e com consentimento de funcionários, segundo a entidade.
Em um dos casos, registrado pela investigação por meio de imagens, o boi que seria abatido recebeu sete dardos de pistola na cabeça e seguia de pé, o que demonstra um processo inadequado de insensibilização.
Em outros casos, os bovinos eram sangrados após o tempo limite de 60 segundos estipulado pela legislação.
Da mesma forma, a esfola e a retirada de patas eram realizadas antes do tempo mínimo de três minutos definidos pela Portaria 365 – o que indica que os animais estavam conscientes e sentindo dor durante o processo.
Outros problemas no manejo, como exposição ao sol por tempo prolongado e falta de água nas baias, também foram constatados.
Risco
Para a Animal Equality, o resultado da investigação demonstra os riscos envolvidos na aprovação do PL 1293/2021, parte do chamado pacote da “Boiadinha”, que desobriga o Estado de fiscalizar plantas frigoríficas in loco, como ocorre hoje.
“Os matadouros brasileiros precisam de mais fiscais e de uma fiscalização mais rigorosa, não o oposto”, diz o relatório.
O PL 1293 já passou pela Câmara dos Deputados e pela Comissão de Agricultura do Senado, e agora segue para votação no plenário da Casa. Se aprovado, permitirá que frigoríficos e outras empresas antes fiscalizadas pelos órgãos de defesa agropecuária possam instituir seus próprios programas de autocontrole – deixando aos órgãos de fiscalização a tarefa de analisar remotamente documentos de inspeção produzidos pelas próprias empresas.
O projeto também abre a possibilidade de subcontratação, pelos frigoríficos, de empresas privadas para a inspeção dos locais.
Hoje é tarefa dos órgãos de fiscalização agropecuária federais, estaduais e municipais fiscalizar o cumprimento de normas de bem estar animal dentro de frigoríficos e outras instalações de abate, como granjas suínas e avícolas.
Sem fiscais veterinários pagos pelo Estado nesses locais, o tratamento conferido aos animais deve piorar, argumenta Carla Lettieri, diretora executiva da Animal Equality.
“Esse projeto representa um retrocesso de décadas nas normas de bem estar animal”, argumenta. “Se um fiscal de carreira aplicar uma multa a uma empresa, ele não perde o emprego. Mas, se uma empresa subcontratada fizer uma fiscalização rigorosa, o frigorífico pode simplesmente rescindir o contrato.”
Comida contaminada
Para o vice-presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical), Ricardo Aurélio Nascimento, a aprovação do projeto deve fragilizar o cumprimento das normas de segurança sanitária dentro das instalações, trazendo riscos em potencial para a comida que chega na mesa dos consumidores.
“Quando você está no frigorífico e observa uma carcaça contaminada, seja possivelmente com tuberculose ou qualquer outra doença, você age imediatamente e faz o sequestro daquela carcaça”, diz. “À distância é muito difícil para você executar essa tarefa. Você não está presente e as informações vão vir depois.”
Cenário
O número de fiscais federais agropecuários diminuiu 36% nos últimos vinte anos. Nesse mesmo período, o valor da produção agropecuária brasileira mais do que dobrou, tendo atingido R$ 1,16 trilhões em 2022.
A falta de fiscais foi o motivo elencado pela então ministra da Agricultura Tereza Cristina na apresentação do PL 1293 ao presidente da República, Jair Bolsonaro: “A incompatibilidade entre a pujança do agronegócio e a capacidade estatal de resposta pode limitar as exportações das commodities e precarizar a fiscalização agropecuária.”
Mas aparentemente a aprovação do PL na Comissão Agropecuária foi comemorada mesmo pelos empresários impactados pela medida.
O presidente da Associação Catarinense de Avicultura, Ricardo Faria, declarou que “a agroindústria brasileira tem reconhecimento internacional pela segurança de seus processos” e que a instituição do autocontrole demonstrava “a maturidade de nossas cadeias produtivas”.
Já mostramos aqui no Joio que a granja dele, a Ares do Campo, acumula violações trabalhistas e de bem-estar animal.
O senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), relator do PL 1293 no Senado, foi procurado pelo Joio mas não se manifestou até o fechamento da reportagem. Caso ele envie resposta, ela será incluída no texto.
—