Por Paula Guimarães.
“O meu boi morreu, o que será de mim?”. O trecho da cantiga popular marca o momento mais dramático do festejo do boi. Cantor e compositor, o artista múltiplo Marcoliva Lives, idealizador da Organização Crescendo com Arte (OCA), interpreta o dono do boi que, ao ver o animal desfalecido, fica desolado e cai em prantos. Neste ponto desenrola-se o drama, em tom de comédia, para curar ou ressuscitá-lo. A apresentação durante a Teia Catarina – evento que reuniu em Florianópolis os pontos de cultura de Santa Catarina – trouxe a magia e o mistério envoltos nesse personagem épico com cantoria, dança e encenação, típicos da brincadeira.
“A verdade e a fantasia se misturam. O boi é quimera: arte e verdade”, define o artista, apaixonado pelo folguedo desde o nascimento da filha Stella Machado de 14 anos que também participou da encenação nos papéis de vaqueiro e fada. “Foi através dos olhos dela que tudo começou. A sua paixão pela brincadeira do boi nos fez virar criança novamente”, conta.
Sobre as crianças, a brincadeira exerce um fascínio especial que mistura medo e encanto. Concentrados em cada movimento, os pequenos recuam sob o iminente avanço do protagonista da festa. Com a aparição da Bernunça, personagem criado no interior de Itajaí em 1926, são eles que entram e saem para dar vida ao ser “comedor de criancinhas”, uma espécie de Bicho Papão.
Maitê de dois anos seguiu ansiosa pelo desfecho, no colo da mãe, a paulista Rachel Palhares Alcântara. Casada com um manezinho, Rachel se emociona ao falar do festejo lúdico. “Eu amo essa apresentação que traz a mensagem da cultura local. Sinto uma alegria imensa e ao mesmo tempo uma vontade de chorar”, conta ela que já morou na ilha e atualmente vive no Rio Grande do Sul.
“O boi-de-mamão está no sangue. Revivo a infância a cada apresentação. É gratificante fazer parte desta manifestação artística”, revela com carinho o mané Roberto Richard, que interpretou o cavalinho.
O sentimento é de nostalgia para Airton Perrone, da Escola Livre de Música, que desde criança participa como brincante e à frente do instrumento “surdinho”, integrou a formação de artistas. “O boi é uma forma de permanência da cultura local, que hoje está institucionalizada, limitada a eventos formais. Neste festejo, a cultura é vivenciada de maneira informal, assim como era antes”, assinala.
O enredo e seus personagens
Folclore distintivo do estado, o Boi-de-Mamão manifesta por meios de seus personagens, cantigas e figurinos os costumes e experiências dos povos que aqui viveram, especialmente no litoral. O festejo que já foi chamado de “Boi-de-Pano” recebeu esse nome em alusão ao uso do mamão verde para representar a cabeça do boi. “O boi chega à Santa Catarina com a guerra do Paraguai, por volta de 1860, trazido pelos soldados, vindos das regiões norte e centro-oeste do país. Aqui a brincadeira foi transformada e adaptada à cultura local”, explica Ivan Serpa, historiador e pesquisador.
No Brasil, os festejos do boi se distinguem de acordo com cada região, entretanto está no enredo – que remete a uma história ocorrida numa fazenda durante o Brasil Colonial – o ponto em comum entre todos: o adoecimento ou morte e ressurreição do boi, no qual os personagens coadjuvantes são envolvidos.
Primeiro a entrar em cena, o urubu cisma em rodeá-lo à espera de sua morte e é logo espantado pelo cavalinho. Há personagens que variam de acordo com a história e cultura específicas de determinadas regiões do estado. Em alguns enredos, chama-se o veterinário, em outros o curandeiro, o pajé, ou mesmo o padre para reavivar o animal. A gigante caricata, por vezes é chamada de Tirolesa e de Maricota ou Negra Mariana, em memória, respectivamente, à colonização italiana e à escravidão.
“O enredo aborda em tom de farsa o conflito social: opressores e oprimidos. Quando o boi finalmente revive, o drama tem o seu ápice, resultando numa grande celebração”, explica Rogério Andrade Barbosa, escritor e folclorista, autor do livro infanto-juvenil “O Boi-de-Mamão”.
A arte que preserva
A arte está presente muito antes da apresentação: na confecção dos bonecos pelos participantes das oficinas de preparação do boi oferecidas à comunidade, desde 2006, pela OCA. As oficinas ensinam também técnicas de teatro, música e dança tendo como fio condutor o folguedo. “O trabalho começa na colheita do bambu e segue com a confecção das cabeças em argila, das tramas e da cobertura de tecido para os bichos de pano”, explica Marcoliva.
O Boi-de-Mamão é praticamente desconhecido no Brasil e mesmo no estado de origem há quem ainda nunca tenha ouvido falar da brincadeira, o que justifica ainda mais o trabalho de memória e educação cultural proposto pela organização.
Fontes consultadas: depoimentos de Ivan Serpa extraídos do documentário “Boi-de-Mamão na cultura de Itajaí” disponível no Youtube.
Fotos: kélen Oliveira