Boaventura: “Somos todos anticapitalistas”

 

Em seu novo livro, sociólogo afirma: lutas operárias já não podem libertar a sociedade; cabe à esquerda despertar múltiplos sujeitos que sistema quer manter inertes.

Por Boaventura de Sousa Santos.

–Este é um trecho de “A difícil democracia – reinventar as esquerdas”
De Boaventura de Sousa Santos, pela Editora Boitempo. O texto faz parte de entrevista conduzida por Antoni Jesús Aguiló Bonet.

161025-boaventura2Os sujeitos históricos são todos os sujeitos que fazem a história. Fazem história na medida em que não se conformam com o modo como a história os fez. Fazer história não é toda a ação de pensar e agir na contracorrente; é o pensar e o agir que força a corrente a desviar-se de seu curso “natural”. Sujeitos históricos são todos os rebeldes competentes.

No século passado, ficamos muito marcados pela ideia de que o sujeito histórico da transformação socialista da sociedade era o operariado industrial. As divisões no movimento operário e a perda de horizontes pós-capitalistas, combinadas com a emergência de movimentos sociais que se apresentavam como alternativas mais radicais tanto no plano temático como no plano cultural e organizacional, criaram a ideia finissecular de que o operariado deixara de ser o sujeito histórico teorizado por Marx e que ou o conceito deixara de ter interesse em geral ou era necessário pensar em sujeitos históricos alternativos.

Temo que, assim formulada, essa questão confunda mais do que esclareça. Se atentarmos à composição sociológica dos movimentos sociais, verificaremos que em sua base estão quase sempre trabalhadores e trabalhadoras, ainda que não se organizem como tal nem recorram às formas históricas do movimento operário (os sindicatos e os partidos operários). Organizam-se como mulheres, camponeses, indígenas, afrodescendentes, imigrantes, ativistas da democracia participativa local ou dos direitos humanos, homossexuais etc. A questão importante a fazer não é a da perda de vocação histórica dos trabalhadores. É antes a de saber por que nos últimos trinta anos os trabalhadores se mobilizaram menos a partir da identidade ligada ao trabalho e mais a partir das outras identidades que sempre tiveram.

Os fatores que podem contribuir para uma resposta são muitos. Houve transformações profundas na produção capitalista, quer no domínio das forças produtivas, quer no domínio das relações de produção. Por um lado, os avanços tecnológicos nas linhas e nos processos de produção, a revolução nas tecnologias de informação e de comunicação e o embaratecimento dos transportes alteraram profundamente a natureza, a lógica, a organização e as hierarquias do trabalho industrial. Por outro lado, o capitalismo “globalizou-se” (entre aspas, porque ele sempre foi global) para se furtar à regulação estatal das relações capital/trabalho, o que conseguiu em boa parte. Era nessa regulação que se assentava a identidade sociopolítica dos trabalhadores enquanto tal.

A desregulação da economia foi, entre outras coisas, desidentificação operária. Foi um processo dialético, pois a desidentificação causada pelas alterações no nível da produção também favoreceu o êxito da desregulação. Por sua vez, a desidentificação operária abriu espaço para a emergência de outras identidades até então latentes ou mesmo ativamente reprimidas pelos próprios trabalhadores. Progressivamente, as identificações alternativas tornaram-se mais credíveis e eficazes para canalizar a denúncia da deterioração das condições de vida dos trabalhadores, do agravamento das desigualdades de poder e da injustiça social causadas pela nova fase do capitalismo global a que se convencionou chamar “globalização” ou “neoliberalismo”.

As identificações alternativas não estavam igualmente distribuídas ou disponíveis no vastíssimo campo social do trabalho, e as assimetrias se revelaram nos tipos de demanda que adquiriram mais visibilidade e nas regiões do mundo em que se mostraram mais eficazes. Em muitos casos, nem sequer é correto falar de identidades alternativas, pois os grupos sociais que se apropriaram delas não tinham tido antes nenhuma identificação assentada nos processos e na força de trabalho. Nesses casos, estamos diante de identidades originárias que em certo momento histórico se transformam em recursos ativos de identificação coletiva e reivindicativa.

Essa mudança foi propiciada por transformações no domínio cultural que, entretanto, ocorreram e que foram, também elas, resultado de relações dialéticas. Por um lado, a mobilização política a partir das “novas” identidades revelou outras formas de opressão antes naturalizadas e dotou-as de uma carga ética e política que não tinham. Revalorizou o que era desvalorizado: as mulheres eram inferiores e menos capazes de realizar o trabalho industrial mais qualificado; os indígenas não existiam ou eram povos em extinção; os camponeses eram um resíduo histórico, e seu desaparecimento seria sinal de progresso; os afrodescendentes eram o resultado infeliz, mas marginal, de um processo histórico globalmente portador de progresso; a preocupação com o meio ambiente era reacionária, porque celebrava o subdesenvolvimento; os recursos naturais existiam na natureza, não em comunidades humanas, e eram infinitos, logo exploráveis sem limite; os direitos humanos eram uma nebulosa política duvidosa, e o que se resgatava dela eram os direitos de cidadania pelos quais o movimento operário tanto tinha lutado; os direitos coletivos eram uma aberração jurídica e política; a paz era um bem, mas o complexo industrial-militar também o era; a democracia era algo positivo, mas com muitas reservas, porque desviava as atenções e as energias necessárias para a revolução ou porque dava aos excluídos a ilusão perigosa de algum dia serem incluídos, o que, ao ocorrer, seria um desastre para a ordem social e a governabilidade.

Como afirmei, esses processos estiveram dialeticamente vinculados às transformações do capitalismo no período. Por um lado, a lógica da acumulação ampliada fez com que mais e mais setores da vida fossem sujeitos à lei do valor: dos bens essenciais para a sobrevivência (por exemplo, a água) ao corpo (homo prostheticus, prolongamentos eletrônicos do corpo, indústria do cuidado corporal, tráfico de órgãos), dos estilos de vida (consumos físicos e psíquicos “necessários” à vida na sociedade de consumo) à cultura (indústria do lazer e do entretenimento), dos sistemas de crenças (teologias da prosperidade) à política (tráfico de votos e decisões por via da corrupção, lobbying, abuso de poder). Com todas essas transformações, o capitalismo foi muito além da produção econômica no sentido convencional – passou a ser um modo de vida, um universo simbólico-cultural suficientemente hegemônico para impregnar as subjetividades e a mentalidade das vítimas de suas classificações e suas hierarquias.

A luta anticapitalista passou a ser mais difícil e precisa ser cultural e ideológica para ter eficácia no plano econômico. Por outro lado, e para surpresa de muitos, a acumulação ampliada, longe de erradicar os últimos vestígios da acumulação primitiva (as formas de superexploração, pilhagem, escravatura, confisco tornados possíveis por meios “extraeconômicos”, militares, políticos), fortaleceu-a tal como havia previsto Rosa Luxemburgo e tornou-a uma realidade cruel para milhões de pessoas que vivem na periferia do sistema mundial, tanto na periferia global (os países mais fortemente submetidos à troca desigual) como nas periferias nacionais (os grupos sociais excluídos em cada nação, inclusive nos países centrais, o que se tem chamado “Terceiro Mundo interior”). Muitos dos que vivem sob o regime do fascismo social estão sujeitos a formas de acumulação primitiva.

Esses são alguns dos fatores que vieram questionar não só o protagonismo do movimento operário, como também a própria ideia de sujeito histórico. As formas de opressão reconhecidas como tal são hoje muito numerosas, e o modo como são vividas, muito diversificado na intensidade e nas lutas de resistência que suscita. A inter-relação global entre elas é também mais visível. A pluralidade das ações e dos atores anticapitalistas e anticolonialistas é hoje um fato incontornável quando se pensa em alternativas ao capitalismo e ao colonialismo.

Não é claro o sentido hoje da expressão “alternativa socialista radical”. Primeiro, porque, como vimos, o objetivo do socialismo é vago ou contestado, e muitos dos movimentos que lutam contra o capitalismo ou contra o colonialismo não definem seus objetivos como socialismo. Segundo, porque também não é claro o que se entende por radical referido a socialismo. Uso o adjetivo “radical” quando referido à democracia porque lhe posso dar um conteúdo específico, o das lutas articuladas pela democratização em cada um dos seis espaços-tempo que citei. Além de certo limite, o êxito dessas lutas é incompatível com o capitalismo. A democracia revolucionária é a que sabe passar esse limite e impor-se além dele. Faz isso criando subjetividades, mentalidades e formas de organização tão intensamente democráticas que a imposição ditatorial do capitalismo se torna uma violência intolerável e intolerada.

O êxito das alternativas socialistas mede-se pelo grau, mais intenso ou menos intenso, com que tornam o mundo menos confortável para o capitalismo. O problema é que tal efeito está longe de ocorrer de modo linear, algo que é muito difícil de conceber em teoria e de valorizar em política. As inércias políticas e teóricas decorrem dessa dificuldade. A crença na linearidade leva-nos a continuar a acreditar em propostas e modelos há muito inviáveis, ao mesmo tempo que nos impede de identificar o valor propositivo de lutas e objetivos emergentes. As alternativas socialistas (prefiro sempre o plural) tendem a surgir de uma confluência virtuosa entre a identificação do que já não é possível e a identificação do que ainda não é possível.

Imagem: Eric Drooker

Fonte: Outras Palavras

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.