Por Marco Vasques, para Desacato.info.
Filho mais novo de uma prole composta por doze irmãos, Justino sempre foi uma espécie de silêncio no Casarão dos Pereira. Na verdade, se tratava apenas de uma casa grande com cômodos suficientes para abrigar Antônio, Luiza e a dúzia de filhos que coloriam o mundo. Uma casa grande para os padrões de um bairro rural de uma pequena cidade litorânea, mas muito distante de um casarão. Contudo, para os moradores da pequena vila, por se tratar de uma das maiores residências já vistas nas redondezas, havia quem se referisse à casa de paredes externas brancas que emolduram janelas e portas de um laranja gritante como o Casarão dos Pereira.
Justino, muito desajeitado, não conseguia tirar leite das vacas nem manusear o machado para cortar árvores; na colheita do amendoim, corria de medo ao primeiro balanço de vento nas folhas rasteiras; não tinha habilidade na caça de pássaros; na pesca, outra atividade exercida por Antônio e seus filhos, era igualmente atrapalhado. Desde adolescente já era visto por parte da família como um estorvo, um incômodo, um peso a ser carregado. No esporte, apesar do corpo bruto, firme, também era um fracasso.
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Não demorou muito para que ele começasse a receber olhares estranhos, comentários caluniosos, especulações mirabolantes e ser evitado por boa parte dos moradores do pequeno bairro. Na escola, também não se encaixou e por isso não chegou a completar o Ensino Fundamental. Com a morte de Antônio, que carregava a família em rédeas curtas, houve uma espécie de libertação familiar e novos horizontes foram traçados pela prole.
Luiza, mulher frágil e de poucas palavras, chorava em seu quarto escuro, quieta e aos soluços. A tristeza e o pranto não aconteciam exatamente por saudades ou por amor a Antônio, já que ela nunca sentiu nenhuma espécie de prazer, ternura ou afeto por ele. Casamento arranjado. Filhos indesejados. Metade da vida grávida e com crianças no colo. E, de quebra, suportava o bafo de cachaça e o silêncio daquele corpo bruto que não pedia licença para adentrá-la. Luiza chorava porque a morte do marido significou a libertação dos seus filhos. Após um ano, os rebentos se dispersaram. Todos, exceto Rute, foram para cidades maiores à procura de emprego e de melhores condições de existência.
Justino seguiu os caminhos da maioria dos irmãos, mas continuou sua saga de inadequação. A única diferença, observou ele, é que, na cidade, como todos estão tão concentrados em si mesmos, não há tempo para colocar um estranho no centro das atenções. Foi assim que, na velocidade da urbanidade, Justino, pela primeira vez, conheceu a sensação de anonimato. Começou um trabalho numa multinacional. Trabalho desimportante, mas que garantia o mínimo para seu sustento. No emprego, conheceu Roseli, com quem logo travou namoro ao primeiro olhar. Ela, também funcionária da multinacional, era mulher silenciosa e bonita. Justino ganhou novo ânimo quando beijou e amou Roseli. O mundo parecia mais perfumando quando amanhecia ao lado dela, depois de carícias e noite intensas de sexo. Numa tarde de domingo, pediu a moça em casamento e foi aceito.
Então apertou as ideias e se pôs a trabalhar ainda mais, com o objetivo de abrigar a sua felicidade ao lado de Roseli. E assim o fez. Como um touro selvagem solto no horizonte, comprou terreno, construiu casa e mobiliou tudo com móveis da melhor qualidade. Marcou data de casamento, fez curso de noivo, renovou compromissos religiosos.
Uma semana antes da cerimônia, foi à sua casa para fazer alguns ajustes que faltavam. Queria que tudo estivesse impecável para receber Roseli. Antes de entrar, percebeu diferenças no terreno, pois havia marcas de carro na garagem. Estranhou, pois ainda não possuía carro. Ao adentrar a cozinha, nada encontrou. A cada cômodo que passava, só via o vazio que esbranquiçava seu olhar e mente. Ligou inúmeras vezes para Roseli e, para sua surpresa, o telefone estava sempre desligado. Imaginou num primeiro momento que sua amada pudesse estar sem bateria, algo natural na era digital. Contudo, aos poucos percebeu que não conseguia estabelecer contato por nenhum meio com sua noiva. Foi quando o golpe final foi dado: a mãe de Roseli, dona Rivalda, disse a Justino que a filha havia fugido com Dorval, um antigo amor da infância.
E foi dessa forma que a família viu a foto dele estampada num cartaz de desaparecido, durante o jornal do almoço. Após cinco anos do ocorrido, não há notícias das pegadas de Justino.
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Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
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