Biografias interiores para geografias imperfeitas (XVI): Roan. Por Marco Vasques.

Foto: Bessi em Pixabay

Por Marco Vasques, para Desacato.info.

ROAN

O escuro. O apagar dos olhos. A hora exata de dormir. Quando pensa em dormir, Roan pensa na morte mesmo, na saída final, no último desenho de seu corpo no olhar de outros viventes. A sua má sorte com as mulheres começou já ao nascer, pois Norma, sua mãe, carregou por toda vida um ódio aterrador por ele. Nada explicava tanto desamor. Deitado em sua cama, no escuro, ele olha fixo para o teto, como se enxergasse nuvens que expressassem suas angústias. Pensou na sua vida conflituosa com sua genitora. Depois, passou pela imagem de Vanessa, sua primeira namorada, segundo alguns familiares, o motivo da perdição de Roan, já que, embora o amasse, não nascera para ser dominada. Ela sempre foi uma espécie de égua ou cavalo selvagem a experimentar o mundo. Transou com mulheres, com homens, com homem e mulher juntos e, para a infelicidade de Roan, também com Júlio, seu irmão.

Na rua, quando via um casal de mãos dadas, Roan se perguntava o que havia de errado com ele, já que seus amores acabavam fugindo de seus braços, quase sempre sem explicação razoável ou motivo aparente. Quando era convidado para alguma festa familiar, ficava horas pensando em como seus primos, todos destituídos de grandes luzes, conseguiram assentar o coração e as certezas ao lado de suas esposas.

Como eles alcançavam tanta constância? Que tipo de amor imperava entre esse casais? O que une essas carnes? Em alguns casos, Roan sabia das repostas. Sua prima Marta, por exemplo, suportava os porres, as brigas e as traições de Eduardo, porque não casara com ele, mas com a conta bancária e o conforto que proporcionava a ela. João Antônio também nunca amou Sabrina, mas casou-se porque o pai de Sabrina não aceitaria, em hipótese alguma, filha solteira e com filho em casa. Já Manoel e Albertina se amavam intensamente. Roan via nos gestos, nos olhares, nos cuidados como ambos se cotejavam. E assim passava os dias, as semanas e os meses a especular sobre o que unia as pessoas e o que fazia com que a sua solidão só aumentasse.

Num momento de desespero e de desesperança, teve uma ideia que lhe parecia interessante. Apesar de não ter nenhuma propensão religiosa, passou a frequentar a igreja ao lado de sua casa. Em princípio foi por causa das mulheres, disse a uma prima, pois nunca foi dado a hipocrisias. Aos poucos foi tomado por uma energia estranha, sobretudo nos momentos de cantoria. A coisa ficou tão séria, que Roan, um agnóstico clássico, passou a crer que há mundo além-mundo. O que antes para ele não passava de ficção, mitologia, autoajuda ou engodo, passou a ser real. Sua fé aumentava e sua reputação entre os religiosos se avolumava, já que sempre teve o dom da oratória, leu muitos livros e frequentou o curso de sociologia por dois anos.

Com essas características é sabido o roteiro. Em pouco mais de três anos, Roan pregava, era respeitado no bairro e, com o poder alcançado, era disputado pelas mulheres, que admiravam sua força vocal e a veemência de seus gestos. Foi então que Margarida, uma beata linda e exuberante, tomou coragem e entregou seus corpo e seu coração para Roan, ali mesmo, dentro da igreja. Eles se amaram como se estivessem num altar rodeado por coro de santos e querubins.

Roan agradeceu aos céus por tamanha dádiva. Amaram-se aos borbotões, para tristeza e irritação de uma boa parte das mulheres, que, na hora do culto, pensavam mais em Roan que nas preces e canções. Margarida engravidou. A sina de Roan parecia ter sido rompida. Contudo, durante o parto, ela foi vítima de eclâmpsia e faleceu. Emmanuelle, a filha, resistiu. Assim que pôde levá-la para casa, Roan colocou um balde transparente, cheio de água, sobre a mesa e, num ato desmedido, afogou a criança até que ela figurasse no fundo, feito pedra jogada ao mar. No escuro de seu quarto, o som de um tiro, iluminou as sirenes dos carros da polícia e da ambulância. O escuro. O apagar dos olhos. A hora exata de dormir.

Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.