Por Marco Vasques, para Desacato.info.
MIROEL
Os pés descalços não sentem o fervor do sol que escalda o cimento das calçadas. Miroel gesticula como se estivesse num ringue, numa luta insana com demônios ou anjos. A cidade passa por ele como se fosse um simples pau seco esturricado na beira da estrada. Seu corpo já nem se revolta com as roupas pesadas de sujeira, com as moscas que o circundam por conta da falta de asseio, com os dentes inchados de farelo de pão e cuspe. A face, como se pode intuir, só sulco e rugas. Miroel se sabe um pária e, por isso, se debate.
Em sua força gestual estaria algum sonho? Alguma imagem da infância? Estaria, a seu modo, solicitando a ajuda dos passantes que o ignoram com se pedra fosse?
Ao amanhecer, ele se levanta e insiste em sua luta, aos espasmos, com o espaço vazio, com o vão, com o nada. Parece também ter desistido de se comunicar, de se entender verbalmente com o mundo. Quando, muito raramente, alguém o olha e faz um mínimo gesto, como quem insinua que deseja prestar algum tipo de auxílio, alguma ajuda imediata ou mesmo apenas estabelecer comunicação, Miroel insufla o peito e grita uma espécie de língua jamais catalogada entre os humanos. E é com força que se insurge diante de qualquer abordagem. Ele coloca um grau de tensão e animalidade em suas expressões capaz de afugentar cães e leões famintos.
A essa revolta ou sentimento os passantes reagem com desaprovação. E quanto mais desaprovada é sua fúria, maior o transe de Miroel. Seus olhos esbugalhados chegam a sugerir estar possuído por multidões de espíritos confusos e raivosos. Ao final da tarde, ele volta a se aconchegar em meio a papelões, como se tivesse cumprido seu turno de trabalho. Assim passa os dias, exibindo, de dentro de si, um força hercúlea incapaz de mobilizar o mais sensível morador da cidade.
De tanto agachar ao chão, certa manhã decidiu andar de quatro, como se animal fosse. Adocicou seus modos de andar e passou a bajular, com o focinho, os passantes das calçadas. Não tardou muito, uma fila se formou, os carinhos se multiplicaram e, pela primeira vez, em anos, Miroel viu banho, comida e moradia. Dizem que não cogita, nesta vida e muito menos em outra, voltar ao mundo na representação de um humano.
OLÍVIA E VADINHO
Mesmo arcada e pesada, Vadinho pedala, firme, sua bicicleta descascada e surrada de ferrugem. Olívia, na bagageira, o segura pela cintura com ternura e força. Segura firme, mas a imagem mais serena e terna se dá no seu rosto deitado nas costas do companheiro. Ele, com um saco de lata de refrigerantes de um lado e, de outro, um saco imenso de garrafas de plástico, mal consegue se equilibrar. Vadinho faz um esforço tremendo para tornar o sacolejo da estrada esburacada o mais suave possível. Olívia parece dormir sobre o lombo do companheiro.
Ele segue determinado, segurado pela cintura. Olívia parece acariciar seu corpo, embora demonstre uma expressão extenuada, cansada. Na esquina, chegam ao galpão de reciclagem. Ela desce, apanha os sacos. Dá um sorriso para Vadinho, que fica ali, parado, à sua espera.
Olívia volta, acaricia o braço de Vadinho. Sobe na garupa e o agarra com a mesma força de antes. Ambos somem na paisagem e deixam a sensação de satisfação no horizonte.
Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
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Olha Marcos,
Vc escreve de verdade. Belos é surpreendentes textos. Continuo seu leitor e admirador.
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