Por Marco Vasques, para Desacato.info.
RODRIGO
Há mais de três anos sem falar com sua mãe, ele não sabe como se reaproximar. A verdade é que a relação entre Rodrigo e Marina, sua genitora, nunca foi permeada por grandes afetos e arroubos. Os beijos sempre foram minguados. Os carinhos raros, muito raros. Ele mesmo quem afirma, numa tentativa de justificar a decisão de se manter em silêncio por tanto tempo. Ele nunca se sentiu abraçado e afagado. Pelo contrário, os olhares tensos, irritados, quase que com fogo nas íris, muito amedrontaram sua infância e juventude. E as sucessivas surras sofridas, das mais variadas formas, são lembranças constantes nas cicatrizes que carrega no rosto, nos braços, nas perdas, na bunda e nas costas. Como perdoar tanta agressão? O que pode uma criança fazer para merecer tanto sofrimento físico? E o rosário de sofrimento de Rodrigo é imenso e pesado, que tanta crueldade não cabe na literatura.
Dorval, seu pai, reforçava tudo com o peso de sua mão e com surras enfurecidas provocadas pelo uso abusivo de álcool e drogas. Com o pai, Rodrigo já fez seu acerto de contas, desferindo, em sua cabeça, os oito tiros Magnum calibre 22. Mas com Marina não. Marina ainda continua com uma dor estúpida que preenche seus dias, sobretudo os dias de chuva. Quando chove, tudo em Rodrigo fica mais pulsante, mais terroso, mais passível de sensibilidade e escavações. Sua mãe, embora magoada, também não acenou para o perdão e, quando se encontravam pelas ruas do bairro, ela apenas olhava para medir o corpo do filho e verificar se existia alguma alteração física que pudesse denotar doença ou abatimento.
Dos poços de sofrimento de Marina pouco se sabe. A genealogia das suas dores nunca foi escancarada, porque ela aprendeu, ainda na infância, que a vida privada se resolve no silêncio das paredes familiares. O problema é que as paredes da casa de Marina não guardavam apenas silêncios, mas sangues, espancamentos, socos, estupros, porradas e muita violência psicológica. Sem leveza é impossível viver novas realidades.
E foi no embrutecimento de cinco gerações marcadas por homens agressivos, possessivos, brutos e com um gosto peculiar por espancar as crianças, quebrar a casa e, sobretudo, machucar suas mulheres que Marina foi criada e educada. Não apanhar em sua família, ainda hoje, em pleno século XXI, se constitui a exceção. A regra continua uma fábrica de cicatrizes externas e internas. E Rodrigo, por mais cruel que tenha sido sua mãe, que havia suportado tanta dor, tanto abuso, tanto esquecimento, resolveu, numa tarde de domingo chuvoso, abraçá-la com todas as suas forças, com todo o seu coração. Ela estava ali, estática, parada, imóvel em seu longo vestido coberto por flores vermelhas. E ele, como se pedisse perdão, ajoelhado, com os braços apertando firme na cintura de sua mãe, beijava as flores e, em silêncio, pedia para conhecer, pelo menos uma vez, o amor que um dia preencheu os olhos e o coração de Marina.
MARTINHO
Martinho correu feito besta bruta pelas ruas com o filho morto no colo. A criança, que nascera sem suspirar ou chorar, ainda banhada em sangue, avermelhava os braços de Martinho. Com muita pressa, chegou à igreja aos berros. Gritou mais que sua mulher, Matilde, que expeliu o natimorto sem a ajuda de um profissional habilitado e preparado. O padre Osmar, com a complacência inerente a um padre, abriu a porta como se o mundo estivesse na mais absoluta ordem. Martinho jogou o rebento no altar da igreja e disse ao padre que procurava Deus.
Caso ele não apareça e não dê vida ao meu filho, saiba o senhor que seu Deus está morto. Mais morto que este pequeno corpo azulado tingido de sangue que carreguei em meus sonhos. E como o pequeno Matias permaneceu inerte, Martinho ateou fogo na pequena igreja de madeira do pequeno sítio em que vivia. Quando as chamas se avolumaram a não mais poder arder, correu para dentro do coração de seu filho e lá se incinerou.
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Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
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