Por Marco Vasques, para Desacato.info.
VALDELICE
O corpo de Valdelice se movimenta como a sua voz. Sim, ela fala, e o corpo expressa o desejo proferido pelos lábios. Se seus lábios se cerram, toda sua fisionomia fica estanque, estática. (Antes de continuar, é preciso dizer que o nome de Valdelice sempre rende piadas desnecessárias; foi ela mesma quem confessou). Mulher negra, obesa e com pouquíssimos dentes, é de se surpreender com o tamanho de sua alegria, já que ela é uma metralhadora a disparar suas agruras ao primeiro que pare e lhe dê alguns momentos de genuína atenção.
Valdelice se despe por inteiro e fala da infância dura, da morte de duas irmãs, da vida difícil na infância, da vida sofrida na adolescência e da dureza dos dias de labuta, sob o sol escaldante na Praia da Daniela, na banquinha ilegal que montou com a filha para vender cerveja, água e refrigerante. Ela sabe que está na ilegalidade, mas tem espírito de sobrevivência; por isso, para vender suas bebidas sem ser perturbada, carrega nas mãos o cardápio de dois restaurantes que ficam distantes da praia.
Valdelice oferece as porções, que são solicitadas por ela mesma via celular. O arranjo é curioso, mas ela sabe que os tempos são difíceis, que a pandemia desempregou muita gente, que tudo está pela hora da morte, e, sobretudo, que é preciso comer. Então ri alto e manda às favas a tal da ilegalidade. Ela é firme, forte e seu olhar se impõe sobre seus clientes. É impossível não comprar algo de Valdelice, que já metralha, de supetão, que precisa vender durante a temporada e fora dela, pois planeja estudar.
Ao ser indagada sobre o que quer seguir, diz que tem obsessão por gente morta, notadamente por cadáveres mutilados. Num primeiro momento se pensa que ela é dada à tanatopraxia e tem o sonho de embelezar a face pálida da morte, mas não. Valdelice diz, se expressando com gestos agigantados, que gosta mesmo é de ver o corpo morto, de juntar pedações de corpos e amontoá-los.
Ela abre o sorriso e diz que estar numa guerra rodeada de pernas, braços, cabeças, dedos, pés, mãos e troncos por todos os lados seria como estar no paraíso. E fala tudo com alegria. Promete a si mesma que um dia ingressará em algum Instituto Geral de Perícia, local em que acredita está sua felicidade. Vasculhar e manusear pedaços de gente sem vida traz um sorriso terno no rosto de Valdelice, que atravessa a praia servindo gente inteira e viva, talvez escondendo o desejo de que uma bomba exploda em determinado momento para que ela possa, de uma vez por todas, realizar o sonho de juntar cadáveres.
MARINA
No começo ela não entendeu direito, mas sua tenra idade já intuía que o que seu tio fazia com o seu corpo era invasivo e causava desconforto. Marina começou a ser abusada sexualmente, de forma perversa, pelo irmão de sua mãe, quando tinha apenas seis anos de idade. Ela sequer sabia verbalizar o que sentia, mas repugnava e tinha asco do toque invasivo. Quando ele se aproximava dela nos almoços dos finais de semana, seus olhos sangravam, ela não conseguia comer e tremia ao mínimo movimento feito pela criatura que a despia às escondidas.
Marina foi crescendo assim, sendo violada. Não conseguia estudar, mijava na cama quase todas as noites e não conseguia ficar em espaços pequenos em que houvesse a presença de homens. Aos 12 anos, quando já conseguia racionalizar e entender o que de fato acontecia, tentou falar com seus pais, que, para desespero dela, não acreditaram em suas palavras.
Era impossível não acreditar em Marina, pois seu corpo demostrava que algo de errado se passava em sua vida, cada vez mais reclusa. Era evidente que não estava alegre e livre, como normalmente são as crianças dessa idade. Aos 15, Marina seguia sendo estuprada por seu tio e resolveu acabar de uma vez por todas com tal sofrimento. Num primeiro momento pensou em arrancar a própria vida, porém não achou justo. Depois, pensou em fugir, em sumir, mas não dispunha de meios financeiros e legais para isso. Assim logo seria capturada e teria que retornar ao lar.
Desejou mais um vez sentar com os pais e obter a confiança e o apoio de ambos, mas já tinha percebido que a tacanhice, o falso moralismo e a cegueira haviam tomado conta do núcleo familiar. Imaginou encontrar alguém com quem pudesse fugir, se casar, contudo, isso também não garantiria sua salvação.
Marina tentou, em seu cérebro acelerado pelo medo, buscar milhares de alternativas, mas todas eram inexequíveis. Não teve dúvidas. Esperou seu tio Rômulo entrar no quarto e se aconchegar ao seu corpo como se estivesse se habituado ao ritual. Esperou que ele se despisse por completo e a tocasse. Depois, com o facão de seu avô Ronaldo, que o afiava todos os dias, desferiu golpes no escuro até ter a certeza de que só havia uma respiração no quarto. E foi assim, com uma cama enlameada de sangue e com o corpo nu de Rômulo todo lanhado e sem vida que a palavra de Marina se fez verdade.
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Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
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