Biografias interiores para geografias imperfeitas (VIII). Por Marco Vasques.

Foto: Quang Nguyen vinh por Pixabay

Por Marco Vasques, para Desacato.info.

RINALDO

A vida dá muitas voltas, diz o populacho. Não é de se estranhar, já que, apesar de muitos negarem, a terra é redonda, tal quais muitos planetas, astros e satélites naturais. Rinaldo sempre amargou o fato de ser o menos abastado da família. Nunca entendeu os motivos pelos quais seus três irmãos e suas duas irmãs amealharam maior riqueza. Homem simples e de poucos estudos, não conseguiu passar de sua casinha de madeira e da vida modesta de pescador.

Já seus irmãos esbanjavam nobreza em seus carros novos e faziam competições esquisitas todos os anos. Em janeiro, a corrida às concessionárias era grande, pois o primeiro a trocar o carro se exibiria visitando todos os irmãos em um único final de semana, com objetivo de ostentar sua nova aquisição.

Rinaldo, quando visitava um irmão ou irmã, costumava levar peixes, e Margarete, sua esposa, preparava uma sobremesa para compor o almoço. O casal não tinha pressa e, via de regra, passava o domingo conversando caso o dono da casa demonstrasse conforto com a visita. Como gente rica está sempre com pressa, quase sempre Rinaldo e a esposa eram convidados a se retirar, pois sempre havia um compromisso inadiável esperando seus familiares. Intimamente Rinaldo nunca entendeu essa ânsia por viver acelerado. Na pescaria, aprendeu que a paciência, a calma e a serenidade são atributos necessários para a obtenção de resultados maiores.

Outro mantra de Rinaldo, talvez para apaziguar o sentimento de que não teve sucesso, era o de que nessa vida se nasce sem nada e também se morre sem nada. Comida boa nunca lhe faltou e tinha onde morar, ainda que num canto modesto. Orgulhava-se de ser dono de seu terreninho e de sua casa. Não devia nada para ninguém e dormia com a consciência tranquila – dizia a si mesmo e aos amigos da pescaria. Quando soube que Lorêncio, seu irmão mais rico, foi diagnosticado com câncer no intestino ficou muito triste. Chorou e, como todo devoto, rezou muito para ver o irmão recuperado.

Tudo em vão. Lorêncio morreu esquálido e sem poder se alimentar. Aquilo, é preciso dizer, cortou o coração de Rinaldo. No entanto, também fez com que se conformasse, de uma vez por todas, com sua vida, que, apesar de não muito abastada, estava em ordem.

Sempre que via um primo ou irmão rico se vangloriar ou espezinhar alguém, era com amargor e dor no coração que dizia: riqueza é ter estômago para comer, riqueza é ter saúde. Lorêncio podia comprar toda a comida de um supermercado e morreu de fome, pobre coitado. Rinaldo não falava por maldade e nem por arrivismo de classe, pois tinha plena consciência de que a doença que levou seu irmão rico também havia levado seu pai, homem pobre e trabalhador. E concluía sorrindo: bem, vamos sorrir enquanto ainda temos dentes!

ROGÉRIO

Escolheu a melhor roupa que tinha, apesar de não possuir sequer um guarda-roupas. Vestiu-se, ainda assim, com o que tinha de melhor em seu pequeno varal feito com arame colhido do lixo e estendido por dois pregos enferrujados. No quarto de pensão em que vive, apenas a cama de solteiro, uma mesa esmurrada pelo tempo e uma cadeira. Além, claro, da tintura envelhecida e descascada. Rogério, um senhor de quase 70 anos, trabalhou a vida inteira na construção civil. Trabalhou em muitos prédios da cidade, que hoje abrigam centenas de famílias, contudo, com o salário de servente de pedreiro, nunca conseguiu comprar um cantinho para acalmar sua velhice.

Tinha consciência de que isso não era justo, mas aprendeu a se conformar desde cedo. Então pensava: é a vida. O que está feito, está feito. Mas naquele domingo ensolarado, Rogério acordou, sentou-se na única cadeira existente em seu quarto de pensão, foi até a cozinha comunitária e percebeu que, na geladeira enferrujada e suja, havia apenas água para o café da manhã. Vestiu-se com o que tinha de melhor e se dirigiu ao supermercado do bairro com passos firmes e determinados.

O primeiro pensamento foi assaltar a seção de carnes e colocar um quilo de arroz entre as calças. Refletiu e se lembrou dos ensinamentos de sua finada mãe, que sempre disse que pedir é menos vergonhoso que roubar. Chegou no supermercado e pegou um carrinho de compras. Pensou mais uma vez que seus cabelos grisalhos, seu corpo alquebrado e a velhice pudessem ajudar, mas se já não foi visto e observado com interesse quando jovem, agora, que estava velho, se sentia um ser invisível. A única coisa visível à sua frente era a morte que se aproximava. E, confessou a um amigo, havia dias que se queixava pela demora de sua desaparição, porque sofrimento é coisa que não se deve prolongar.

Foi pensando nisso tudo e em mais algumas coisas que Rogério perambulou pelo supermercado enchendo o carrinho com tudo o que via de melhor à sua frente. Rogério escolheu os melhores pães, queijos, carnes. Era um apaixonado por geleias e jogou logo umas dez dentro do carrinho. Depois foi à seção de bebidas e escolheu duas garrafas de vinho, que jamais sonhou em tomar. Rogério passeava com altivez pelo supermercado. Ficou cerca de duas horas. Parou. Olhou para o carrinho abarrotado de víveres e sorriu como se estivesse num sonho possível. Rogério abandonou o carrinho em um dos corredores, voltou para o seu quarto de pensão e se enforcou no varal feito com o arame colhido no lixo. Ficou ali, morto, dependurado, feito uma roupa velha imprestável para uso.

Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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